Santos: A História da Igreja de Jesus Cristo nos Últimos Dias, Volume 2, Nenhuma Mão Ímpia, 1846–1893

Volume 2, Nenhuma Mão Ímpia, 1846–1893

Volume 2

Santos

A História da Igreja de Jesus Cristo nos Últimos Dias

Nenhuma Mão Ímpia

1846–1893

Publicado por

A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias

Salt Lake City, Utah

Colaboradores

Santos
A História da Igreja de Jesus Cristo nos Últimos Dias

Historiador e registrador da Igreja
Diretor executivo, Departamento de História da Igreja

Élder LeGrand R. Curtis Jr.

Diretor executivo assistente, Departamento de História da Igreja

Élder Kyle S. McKay

Diretor administrativo, Departamento de História da Igreja

Matthew J. Grow

Diretor, Divisão de Publicações

Matthew S. McBride

Historiador administrativo

Jed L. Woodworth

Gerente de produto

Ben Ellis Godfrey

Gerente editorial

Nathan N. Waite

Volume 2
Nenhuma Mão Ímpia
1846–1893

Editores gerais

Matthew J. Grow

Jed L. Woodworth

Scott A. Hales

Lisa Olsen Tait

Escritores

Scott A. Hales

David C. Nielsen

Angela Hallstrom

Dallin T. Morrow

James Goldberg

Editores

R. Eric Smith

Leslie Sherman Edgington

Kathryn Tanner Burnside

Nathan N. Waite

Stephanie Steed

Alison Palmer

Alison Kitchen Gainer

mapa geral do mundo

Parte 1

Levantai e ide

Outubro 1845–agosto 1852

Oh! A poderosa hoste de Jacó

Acampados na costa ocidental

Do nobre Mississipi,

O qual atravessaram;

No último dia de amanhecer do inverno,

Presos em gelo e envoltos em neve:

Dai ouvidos! Avançai, avançai!

Acampamento de Israel! Levantai e ide.

Eliza R. Snow, “Song for the Camp of Israel” [Canção para o Acampamento de Israel]

mapa da trilha dos pioneiros, missões do pacífico

Capítulo 1

Reunir uma companhia

grande navio cruzando o mar

“Quero lhes falar sobre os mortos.”

Milhares de santos dos últimos dias se calaram quando a voz de Lucy Mack Smith ecoou no grande salão de reuniões, no andar térreo do Templo de Nauvoo que estava quase terminado.

Isso aconteceu na manhã de 8 de outubro de 1845, o terceiro e último dia da conferência de outono de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Sabendo que ela não teria outras oportunidades de falar aos santos — principalmente porque eles planejavam partir de Nauvoo para um novo lar no longínquo Oeste —, Lucy falou com uma força que estava bem além de seu frágil corpo de 70 anos de idade.

“Completaram-se 18 anos, no dia 22 de setembro passado, desde que Joseph retirou as placas do chão”, testificou ela, “e fez 18 anos, segunda-feira passada, que Joseph Smith, o profeta do Senhor —”1

Ela fez uma pausa, lembrando-se de Joseph, seu filho martirizado. Os santos presentes já sabiam como um anjo do Senhor o havia conduzido até um conjunto de placas de ouro enterradas em um monte chamado Cumora. Sabiam que Joseph tinha traduzido as placas pelo dom e poder de Deus e publicado o registro com o título de O Livro de Mórmon. Mesmo assim, quantos dos santos ali presentes na reunião o conheciam realmente?

Lucy ainda se lembrava de quando Joseph, com 21 anos na época, contara-lhe que Deus confiara as placas a ele. Estivera ansiosa a manhã inteira, com receio de que ele voltasse do monte de mãos vazias, como havia acontecido nos quatro anos precedentes. Mas, quando chegou, ele rapidamente a acalmou. “Não se preocupe”, disse ele. “Tudo está bem.” Joseph então entregou a ela os intérpretes que o Senhor havia providenciado para a tradução das placas, embrulhados num lenço, como prova de que tivera sucesso em obter o registro.

Naquela época, havia apenas um pequeno grupo de fiéis, a maioria deles da família Smith. Agora mais de 11 mil santos da América do Norte e da Europa moravam em Nauvoo, Illinois, onde a Igreja se reunira nos seis anos precedentes. Alguns deles eram novos na Igreja e não tiveram a chance de conhecer Joseph ou seu irmão Hyrum antes que uma turba assassinasse ambos a tiros, em junho de 1844.2 Era por esse motivo que Lucy queria falar sobre os falecidos. Desejava testificar sobre o chamado profético de Joseph e o papel da família dela na Restauração do evangelho antes que os santos se mudassem para longe.

Por mais de um mês, vários grupos de justiceiros vinham incendiando as casas e os estabelecimentos comerciais dos santos nos assentamentos vizinhos. Temendo pela própria vida, muitas famílias tinham fugido para a relativa segurança de Nauvoo. Mas as turbas foram aumentando e se tornando mais organizadas com o passar das semanas, e logo irromperam lutas armadas entre eles e os santos. O governo estadual e o nacional, nesse ínterim, nada fizeram para proteger o direito dos santos.3

Acreditando que era apenas uma questão de tempo até que as turbas atacassem Nauvoo, os líderes da Igreja tinham negociado uma frágil paz ao concordarem em retirar os santos do condado na primavera.4

Guiados por revelação divina, Brigham Young e os outros membros do Quórum dos Doze Apóstolos estavam planejando levar os santos para mais de 1.600 quilômetros a Oeste, além das Montanhas Rochosas, fora das fronteiras dos Estados Unidos. Como quórum presidente da Igreja, os Doze tinham anunciado essa decisão aos santos no primeiro dia da conferência de outono.

“O Senhor planeja nos conduzir para um campo de ação mais amplo”, havia declarado o apóstolo Parley Pratt, “no qual podemos desfrutar os puros princípios da liberdade e da igualdade de direitos”.5

Lucy sabia que os santos a ajudariam a fazer essa jornada caso ela desejasse partir. As revelações tinham ordenado que os santos se reunissem em um único lugar, e os Doze estavam determinados a cumprir a vontade do Senhor. Mas Lucy estava idosa e acreditava que não viveria muito. Quando morresse, ela queria ser enterrada em Nauvoo, perto de Joseph, Hyrum e outros familiares que haviam falecido, inclusive o marido, Joseph Smith Sr.

Além disso, a maioria de seus familiares vivos iria ficar em Nauvoo. Seu único filho sobrevivente, William, tinha sido membro do Quórum dos Doze, mas rejeitara a liderança deles e se recusara a ir para o Oeste. Suas três filhas — Sophronia, Katharine e Lucy — também haviam decidido ficar. O mesmo fizera sua nora Emma, a viúva do profeta.

Ao falar para a congregação, Lucy instou os que a ouviam a não se afligirem com a jornada que tinham pela frente. “Não fiquem desanimados nem digam que não conseguirão obter carroções e outras coisas”, disse ela. A despeito da pobreza e da perseguição, sua própria família tinha cumprido o mandamento do Senhor de publicar o Livro de Mórmon. Ela os incentivou a darem ouvidos a seus líderes e a se tratarem bem.

“Como disse Brigham, vocês todos precisam ser honestos caso contrário não chegarão lá”, disse ela. “Se ficarem irados, terão problemas.”

Lucy falou mais sobre sua família, a terrível perseguição que sofreram no Missouri e em Illinois, e as provações que os santos teriam pela frente. “Oro para que o Senhor abençoe os líderes que dirigem a Igreja, o irmão Brigham e todos”, disse ela. “Quando eu for para o mundo vindouro, quero encontrar vocês todos lá.”6


Pouco mais de um mês mais tarde, Wilford Woodruff, apóstolo e presidente da missão britânica da Igreja, recebeu uma carta de Brigham Young em seu escritório em Liverpool, Inglaterra. “Tivemos muitas tristezas e problemas aqui neste outono”, disse Brigham a seu amigo. “É, portanto, aconselhável que nos retiremos como única condição de paz.”7

Wilford ficou alarmado, mas não surpreso. Tinha lido nos jornais a notícia dos ataques de turbas nos arredores de Nauvoo. Mas não sabia até então o quanto a situação estava ruim. “Vivemos numa época muito estranha”, pensou Wilford após ler a carta. O governo dos Estados Unidos afirmava proteger pessoas oprimidas e abrigar exilados, mas Wilford não se lembrava de uma ocasião em que o país tivesse ajudado os santos.

“O estado de Illinois e todos os Estados Unidos encheram sua taça de iniquidade”, escreveu ele em seu diário, “e fazem bem os santos de saírem do meio deles”.8

Felizmente, a maioria da família de Wilford estava fora de perigo. Sua esposa, Phebe, e seus filhos mais novos, Susan e Joseph, estavam com ele na Inglaterra. Sua outra filha, Phebe Amelia, estava na casa de parentes no leste dos Estados Unidos, a mais de 1.600 quilômetros do perigo.

Seu filho mais velho, Willy, porém, ainda estava em Nauvoo, sob os cuidados de amigos próximos. Em sua carta, Brigham mencionou que o menino estava seguro, mas Wilford ainda assim ficou ansioso em reunir a família.9

Como presidente do quórum, Brigham deu instruções a Wilford sobre o que fazer em seguida. “Não envie mais emigrantes para cá”, aconselhou ele, “mas faça com que esperem na Inglaterra até que possam navegar pelo oceano Pacífico”. Quanto aos missionários que serviam na Inglaterra, ele queria que os que ainda não tinham recebido suas ordenanças do templo retornassem imediatamente para Nauvoo a fim de recebê-las.10

Nos dias que se seguiram, Wilford enviou cartas para os élderes americanos que pregavam na Inglaterra, informando-os da perseguição que ocorria em Nauvoo. Embora ele e Phebe já tivessem recebido suas ordenanças, eles decidiram voltar para casa também.

“Tenho parte de minha família espalhada pelos estados, separados por mais de 3 mil quilômetros uns dos outros”, explicou Wilford numa mensagem de despedida para os santos britânicos. “Parece-me que no momento presente tenho o dever de retornar para lá e reunir meus filhos para que possam partir com o acampamento dos santos.”

Wilford designou Reuben Hedlok, o antigo presidente da missão, a presidir novamente na Inglaterra. Embora Wilford não tivesse plena confiança em Reuben, que tinha administrado mal os fundos da Igreja no passado, ninguém mais na Inglaterra tinha mais experiência na liderança da missão. E Wilford tinha pouco tempo para encontrar um substituto melhor. Depois de se reunir com o Quórum dos Doze, ele recomendaria o chamado de outro homem para tomar o lugar de Reuben.11


Quando Wilford e Phebe se preparavam para retornar a Nauvoo, Samuel Brannan, o élder presidente da Igreja na cidade de Nova York, ouviu um rumor de que o governo dos Estados Unidos preferiria desarmar e exterminar os santos do que permitir que deixassem o país e possivelmente se aliassem ao México ou à Inglaterra, duas nações que reivindicavam vastas regiões no Oeste. Alarmado, Sam escreveu imediatamente a Brigham Young para informá-lo do perigo.

A carta de Sam chegou a Nauvoo em meio a novos perigos. Brigham e outros apóstolos tinham recebido um mandado legal convocando-os a se apresentarem perante um tribunal, sob a falsa acusação de falsificação, e havia então homens da lei procurando prendê-los.12 Depois de ler a carta de Sam, os apóstolos oraram por proteção, pedindo ao Senhor que conduzisse os santos em segurança para fora da cidade.13

Pouco tempo depois, o governador Thomas Ford, de Illinois, pareceu confirmar as informações de Sam. “É bem provável que o governo de Washington, D.C., interfira para impedir que os mórmons rumem para o oeste das Montanhas Rochosas”, advertiu ele. “Muitas pessoas inteligentes acreditam sinceramente que eles se aliarão aos ingleses se forem para lá e que haverá mais problemas do que nunca.”14

Em janeiro de 1846, Brigham se reuniu frequentemente com o Quórum dos Doze e com o Conselho dos Cinquenta, uma organização que supervisionava os assuntos temporais do reino de Deus na Terra, a fim de planejar a melhor e mais rápida maneira de deixarem Nauvoo e de estabelecerem um novo local de reunião para os santos. Heber Kimball, seu companheiro entre os apóstolos, recomendou que eles liderassem uma pequena companhia de santos até o Oeste o mais breve possível.

“Reúna uma companhia que possa se preparar”, aconselhou ele, “para estar pronta a qualquer momento em que for conclamada a partir e preparar um lugar para sua família e para os pobres”.

“Se houver uma companhia de vanguarda para ir e semear os campos na primavera”, salientou o apóstolo Orson Pratt, “ela terá que partir no dia primeiro de fevereiro”. Ele se perguntou se não seria mais sábio se estabelecerem num lugar mais próximo, o que permitiria que semeassem os campos mais cedo.

Brigham não gostou da ideia. O Senhor já tinha instruído os santos a se estabelecerem perto do Grande Lago Salgado. O lago fazia parte da Grande Bacia, um imenso vale incrustado nas montanhas. Grande parte da bacia tinha solo desértico e seco, difícil de cultivar, tornando-a indesejável para os muitos americanos que se dirigiam para o Oeste.

“Se ficarmos entre as montanhas e o lugar cogitado”, argumentou Brigham, “não suscitaremos inveja em nenhuma nação”. Brigham sabia que a região já era habitada por povos nativos. Mas estava esperançoso de que os santos conseguissem se estabelecer pacificamente entre eles.15

Ao longo dos anos, os santos tinham tentado compartilhar o evangelho com os índios americanos dos Estados Unidos e planejavam fazer o mesmo com os povos nativos do Oeste. Como a maioria das pessoas brancas dos Estados Unidos, muitos dos santos brancos consideravam sua cultura superior à dos índios e pouco sabiam sobre a língua e os costumes deles. Mas também viam os índios como membros da casa de Israel, tal como eles próprios, e aliados em potencial, esperando fazer amizade com os utes, com os shoshones e com outras tribos do Oeste.16

Em 13 de janeiro, Brigham se reuniu novamente com os conselhos para saber quantos santos estavam prontos para partir de Nauvoo no prazo de seis horas. Estava confiante de que a maioria dos santos estaria segura na cidade até o prazo marcado na primavera. Para garantir uma viagem rápida, queria que o mínimo possível de famílias partisse com a companhia de vanguarda.

“Todos aqueles homens que estiverem em perigo e que provavelmente serão caçados com mandados de busca”, disse ele, “devem partir, levando a família”. Todos os outros deveriam esperar até a primavera para a viagem ao Oeste, depois que a companhia de vanguarda tivesse chegado às montanhas e fundado o novo assentamento.17


Na tarde de 4 de fevereiro de 1846, com a luz do sol banhando o porto de Nova York, uma multidão se amontoava no cais para se despedir do Brooklyn, um navio de 450 toneladas que partia rumo à baía de São Francisco, na costa da Califórnia, uma região pouco povoada do noroeste do México. No convés do navio, acenando para os parentes e amigos abaixo, estavam mais de 200 santos, a maioria deles pobres demais para viajar para o Oeste em carroções.18

Liderando-os estava Sam Brannan, de 26 anos de idade. Depois da conferência de outubro, os Doze tinham instruído Sam a fretar um navio e levar uma companhia de santos do Leste para a Califórnia, onde se encontrariam com o corpo principal da Igreja em algum lugar do Oeste.

“Fujam de Babilônia!”, advertiu-os o apóstolo Orson Pratt. “Não queremos que nenhum santo seja deixado nos Estados Unidos.”19

Pouco depois, Sam fretou o Brooklyn a um preço razoável, e 32 pequenas cabines foram construídas para acomodar os passageiros. Ele fez com que os santos levassem arados, pás, enxadas, ancinhos e outras ferramentas de que necessitariam para as plantações e para a construção de casas. Sem saber o que os aguardava, juntaram muitas provisões e alimentos, alguns animais, três moinhos de cereais, mós, tornos, pregos, uma prensa gráfica e armas de fogo. Uma sociedade de caridade também doou livros suficientes para formar uma boa biblioteca no navio.20

Quando Sam se preparava para a viagem, um político que ele conhecia em Washington o alertou que os Estados Unidos ainda estavam decididos a impedir que os santos partissem de Nauvoo. O político também disse a Sam que ele e um comerciante com interesses na Califórnia estavam dispostos a influenciar o governo a favor da Igreja em troca de metade das terras que os santos adquirissem no Oeste.

Sam sabia que os termos do acordo não eram bons, mas acreditava que os homens eram seus amigos e poderiam proteger os santos. Poucos dias antes de embarcar no Brooklyn, Sam mandou preparar o contrato e o enviou a Brigham, pedindo que ele o assinasse. “Tudo ficará bem”, prometeu ele.21

Também informou a Brigham seus planos de estabelecer uma cidade na baía de São Francisco, talvez um novo lugar de reunião para os santos. “Vou escolher o lugar mais adequado”, escreveu ele. “Antes que você chegue lá, se for a vontade do Senhor, vou estar com tudo preparado para você.”22

Quando o Brooklyn levantou âncora, Sam estava certo de que havia garantido a segurança dos santos que partiam de Nauvoo e uma viagem tranquila para sua companhia. O curso do navio seguiria as correntes oceânicas que contornavam a extremidade meridional da América do Sul indo para o meio do Pacífico. Quando chegassem à Califórnia, fundariam uma cidade e começariam uma nova vida no Oeste.

Quando um reboque a vapor guiava o Brooklyn para longe do cais, a multidão de entes queridos no embarcadouro deu três hurras aos santos, que responderam com outros três hurras. O navio então seguiu para a estreita saída do porto, enfunou as velas e pegou a brisa que o levou para o meio do oceano Atlântico.23


No mesmo dia em que o Brooklyn zarpava para a Califórnia, 15 carroções da companhia de vanguarda dos santos cruzaram o rio Mississippi para dentro do território de Iowa, a oeste de Nauvoo, montando acampamento às margens do riacho Sugar Creek.

Quatro dias depois, Brigham Young se reuniu pela última vez com os apóstolos no Templo de Nauvoo.24 Embora o templo como um todo permanecesse sem ser dedicado, eles já tinham dedicado o piso superior e administrado ali a investidura para mais de 5 mil santos ávidos. Também tinham selado aproximadamente 1.300 casais para esta vida e para a eternidade.25 Alguns desses selamentos eram casamentos plurais, que alguns santos fiéis tinham começado a praticar confidencialmente em Nauvoo, seguindo um princípio revelado pelo Senhor a Joseph Smith no início da década de 1830.26

Brigham tinha planejado parar de administrar as ordenanças em 3 de fevereiro, a véspera da partida dos primeiros carroções da cidade, mas os santos tinham se apinhado o dia inteiro no templo, ansiosos por receber as ordenanças antes de partirem. A princípio, Brigham lhes dissera que fossem embora. “Vamos construir mais templos e teremos mais oportunidades de receber as bênçãos do Senhor”, insistiu ele. “Neste templo já fomos abundantemente recompensados se nada mais recebermos.”

À espera de que a multidão se dispersasse, Brigham começou a caminhar para casa. Antes de se afastar muito, voltou e encontrou o templo lotado de pessoas que tinham fome e sede da palavra do Senhor. Naquele dia, outros 295 santos receberam suas bênçãos do templo.27

Então, com o trabalho de ordenanças do templo concluído, os apóstolos se ajoelharam ao redor do altar do templo e oraram por uma jornada segura para o Oeste. Ninguém podia prever as provações que enfrentariam nas semanas e nos meses que viriam. Os livros-guia e mapas descreviam trilhas não demarcadas em grande parte do caminho até as montanhas. Havia muitos rios e riachos pelo caminho, e muitos búfalos e animais de caça vagavam pelas planícies. Mas o terreno em nada se assemelhava a qualquer rota que os santos já tivessem percorrido até então.28

Sem querer deixar ninguém em perigo, os santos tinham feito um convênio mútuo de ajudar qualquer pessoa que quisesse viajar para o Oeste — especialmente as pessoas pobres, enfermas ou viúvas. “Se forem fiéis a esse convênio”, prometeu Brigham aos santos no templo, na conferência de outubro, “faço agora uma profecia de que o grande Deus proverá o que for necessário a este povo para que cumpra com exatidão tudo o que lhes for pedido”.29

Em 15 de fevereiro, o fardo desse convênio pesava muito nas costas de Brigham ao cruzar o Mississippi. Naquela tarde, ele puxou e empurrou carroções ladeira acima, por estradas enlameadas até uma distância de seis quilômetros a oeste do rio. Quando restavam apenas algumas horas de luz do dia, antes que a noite escurecesse o caminho à frente, Brigham continuava determinado a não descansar até que todos os carroções de santos dos últimos dias a oeste do rio chegassem em segurança a Sugar Creek.30

A essa altura, o plano de enviar uma pequena companhia à frente para as montanhas naquele ano já havia sido adiado. Brigham e outros líderes da Igreja tinham saído da cidade mais tarde do que o planejado, e alguns santos — ignorando o conselho de permanecerem em Nauvoo — tinham cruzado o rio e acampado com a companhia de vanguarda, em Sugar Creek. Depois de fugirem da cidade tão rapidamente, muitas famílias na trilha estavam desorganizadas, mal preparadas e mal equipadas.

Brigham ainda não sabia o que fazer. Aqueles santos sem dúvida atrasariam os outros. Mas ele não queria enviar os santos de volta para a cidade, uma vez que já haviam saído. Em sua mente, Nauvoo se tornara uma prisão, e não um lugar para o povo de Deus. A estrada para o Oeste significava liberdade.

Ele e os Doze simplesmente tinham que seguir em frente com firmeza, confiando que o Senhor os ajudaria a encontrar uma solução.31

Capítulo 2

Glória suficiente

mulheres observando enquanto homens marcham para longe

Um vento gélido soprava quando Brigham Young chegou a Sugar Creek, no entardecer de 15 de fevereiro de 1846. Espalhados pelo bosque coberto de neve, a pouca distância do riacho congelado, centenas de santos tremiam de frio, tendo apenas casacos e cobertores úmidos para cobri-los. Muitas famílias se reuniam em torno de fogueiras ou sob tendas improvisadas com colchas e lençóis ou lonas de carroção. Outros se aninhavam nas carroças e nos carroções para se aquecerem.1

Brigham percebeu de imediato que precisava organizar o acampamento. Com a ajuda de outros líderes da Igreja, dividiu os santos em companhias e chamou capitães para liderá-las. Advertiu-os dizendo que não voltassem desnecessariamente a Nauvoo, não ficassem ociosos nem pegassem coisas emprestadas sem permissão. Os homens deviam proteger o acampamento constantemente e monitorar as condições de limpeza, e cada família devia orar junta pela manhã e à noite.2

Em pouco tempo, um bom espírito se fez sentir por todo o acampamento. Tendo saído em segurança de Nauvoo, os santos se preocuparam menos com as turbas ou com as ameaças feitas pelo governo de impedir o êxodo. À noite, uma banda de metais tocava músicas animadas enquanto homens e mulheres dançavam. Os santos que praticavam o casamento plural também ficaram menos cautelosos e começaram a falar abertamente sobre o princípio e sobre como ele unia as famílias.3

Brigham, enquanto isso, passava horas melhorando os planos para a mudança para o Oeste.4 Enquanto jejuava e orava no templo, pouco antes de partir de Nauvoo, ele tivera uma visão de Joseph Smith apontando para uma bandeira hasteada no topo de uma montanha. “Edifique sob este estandarte”, instruiu-o Joseph, “e prosperará e terá paz”.5 Brigham sabia que o Senhor tinha um lugar preparado para a Igreja, mas seria uma tarefa monumental guiar milhares de santos até lá.

Nessa época, chegaram ao acampamento cartas de Sam Brannan, que estava navegando para a Califórnia no navio Brooklyn. Entre as cartas, estava o contrato que prometia um êxodo tranquilo para os santos em troca de terras no Oeste. Brigham leu o contrato cuidadosamente com os apóstolos. Se não o assinassem, sugeria a carta de Sam, o presidente dos Estados Unidos poderia ordenar um desarmamento dos santos e proibi-los de se reunirem.6

Brigham não se convenceu. Por mais preocupado que estivesse com o governo, já se decidira a trabalhar com ele, em vez de contra ele. De fato, pouco antes de sair de Nauvoo, ele havia instruído Jesse Little, o novo élder presidente nos estados do Leste, a procurar influenciar os políticos em favor da Igreja e a aceitar qualquer oferta honrosa do governo federal para auxiliar o êxodo dos santos. Brigham e os apóstolos rapidamente perceberam que o contrato nada mais era do que um estratagema elaborado para favorecer os homens que o haviam redigido. Em vez de assinar o contrato, os apóstolos decidiram confiar em Deus e buscar Sua proteção.7

À medida que os meses se passaram, a temperatura caiu abaixo de zero, e a superfície do rio Mississippi congelou, tornando fácil sua travessia sobre o gelo. Em breve, cerca de 2 mil pessoas estavam acampadas em Sugar Creek embora alguns retornassem a Nauvoo de tempos em tempos para realizar uma ou outra tarefa.

O trânsito de ida e volta preocupava Brigham, que acreditava que aqueles santos estavam negligenciando suas próprias famílias e se concentrando demasiadamente em suas propriedades na cidade. Com a jornada para o Oeste já atrasada em relação ao que fora programado, ele decidiu que chegara o momento de os santos partirem de Sugar Creek mesmo que as companhias estivessem mal equipadas.

Em 1º de março, 500 carroções partiram rumo ao Oeste, atravessando as pradarias de Iowa. Brigham ainda queria enviar uma companhia de vanguarda para as Montanhas Rochosas naquele ano, mas os santos precisavam primeiro usar todos os recursos necessários para mover o acampamento para mais longe de Nauvoo.8


Enquanto os santos estavam deixando Sugar Creek com Brigham, Louisa Pratt, de 43 anos, permaneceu em Nauvoo, preparando-se para deixar a cidade com suas quatro jovens filhas. Três anos antes, o Senhor havia chamado seu marido, Addison, numa missão nas ilhas do Pacífico. Nesse período, o precário serviço postal entre Nauvoo e Tubuai, a ilha da Polinésia Francesa onde Addison estava servindo, tornara difícil manter contato com ele. A maioria das cartas dele tinha sido escrita vários meses antes de sua entrega, e outras tinham mais de um ano.

A última carta de Addison deixava bem claro que ele não voltaria para casa a tempo de ir para o Oeste com ela. Os Doze o tinham instruído a permanecer nas ilhas do Pacífico até que eles o chamassem de volta para casa ou enviassem missionários para substituí-lo. Em certo ponto, Brigham tivera a esperança de enviar mais missionários para as ilhas depois que os santos recebessem a investidura, mas o êxodo de Nauvoo obrigara o adiamento desse plano.9

Louisa estava disposta a fazer a jornada sem o marido, mas ficava nervosa ao pensar nisso. Detestava a ideia de abandonar Nauvoo e o templo, e não gostava da ideia de viajar de carroção até as Montanhas Rochosas. Também queria ver seus pais idosos no Canadá — possivelmente pela última vez — antes de ir para o Oeste.

Se vendesse sua junta de bois, teria dinheiro suficiente para visitar os pais e comprar uma passagem para sua família num navio até a costa da Califórnia, eliminando assim a necessidade de viajar por terra.

Louisa já tinha quase decidido ir para o Canadá, mas sentiu que algo não estava certo. Decidiu escrever a Brigham Young a respeito de suas preocupações com a viagem por terra e seu desejo de ver os pais.

“Se você disser que a expedição com a junta de bois é o melhor caminho para a salvação, então eu a farei com todo o coração e força”, escreveu ela, “e creio que conseguirei suportá-la sem resmungar, tanto quanto qualquer outra mulher”.10

Pouco depois, um mensageiro chegou com a resposta de Brigham. “Venha. A salvação pela junta de bois é o caminho mais seguro”, disse-lhe ele. “O irmão Pratt se encontrará conosco no deserto onde estaremos e ficará muito desapontado se sua família não estiver conosco.”

Louisa ponderou o conselho, fortaleceu o coração para enfrentar as dificuldades que viriam e decidiu seguir com o corpo principal dos santos fosse para a vida ou para a morte.11


Naquela primavera, os santos que atravessavam o Iowa começaram a se chamar de o Acampamento de Israel, com base nos antigos hebreus que o Senhor havia tirado do cativeiro no Egito. Dia após dia, combateram os elementos enquanto a neve e a chuva implacáveis transformavam as pradarias do Iowa num atoleiro. Os rios e riachos estavam caudalosos e rápidos. As estradas de terra viraram um lamaçal. Os santos tinham a intenção de atravessar a maior parte do território em um mês, mas nesse tempo cobriram apenas um terço da distância.12

Em 6 de abril, no aniversário de 16 anos da organização da Igreja, choveu o dia inteiro. Brigham passou horas andando com lama até os joelhos, ajudando os santos ao longo da estrada, até um lugar chamado Locust Creek. Ali, ele ajudou a arranjar os carroções, armar as tendas e cortar lenha até que todos os santos estivessem assentados no acampamento. Uma mulher que o viu na lama, puxando e empurrando para desatolar um carroção, achou que ele estava tão feliz quanto um rei a despeito das dificuldades que o cercavam.

Naquela noite, uma chuva congelante e granizo bombardearam o acampamento, cobrindo-o de gelo. Pela manhã, William Clayton, secretário de Brigham e líder da banda de metais, encontrou o acampamento em polvorosa. Muitas tendas estavam caídas no solo congelado. Uma árvore tinha caído sobre um carroção. Alguns homens da banda também estavam sem provisões.13

William compartilhou com a banda o que tinha embora sua própria família tivesse pouco para comer. Sendo um dos primeiros santos a praticar o casamento plural, William viajava com três esposas e quatro filhos. Outra esposa, Diantha, ainda estava em Nauvoo, sob os cuidados da mãe dela. Estava grávida de seu primeiro filho e tinha a saúde debilitada, aumentando a ansiedade de William na trilha.

Enquanto a família Clayton repousava em Locust Creek com o Acampamento de Israel, Brigham propôs o plano de estabelecer um ponto de parada intermediário, no meio do caminho que atravessava o Iowa, no qual os santos poderiam esperar melhores condições climáticas, construir cabanas e iniciar uma plantação para os que viriam depois. Alguns santos, então, cuidariam do ponto de parada intermediário enquanto outros retornariam a Nauvoo para guiar as companhias através do Iowa. O restante do acampamento seguiria em frente com ele até o rio Missouri.14

Em 14 de abril, William passou a noite inteira reunindo os cavalos e o gado que tinham se dispersado no campo. Pela manhã, precisava dormir, mas alguém do acampamento recebeu uma carta mencionando Diantha e o nascimento do bebê. Naquela noite, William comemorou o nascimento, cantando e tocando com a banda noite adentro.

O céu estava claro na manhã seguinte, e William vislumbrou dias melhores no futuro do Acampamento de Israel. Pegando tinta e papel, escreveu um hino de encorajamento para os santos:

Vinde, ó santos, sem medo ou temor,

Mas alegres andai.

Rude é o caminho ao triste viajor,

Mas com fé caminhai.

É bem melhor encorajar

E o sofrimento amenizar;

Podeis agora em paz cantar:

Tudo bem! Tudo bem!15


A 160 quilômetros para o Leste, Wilford Woodruff estava no convés de um barco fluvial no rio Mississippi, contemplando o Templo de Nauvoo através de uma luneta. Na última vez em que tinha visto o templo, as paredes ainda não estavam terminadas. O templo agora tinha um telhado, janelas cintilantes e uma majestosa torre no alto, com um cata-vento no formato de um anjo.16 Partes do templo já tinham sido dedicadas para o trabalho de ordenanças, e logo o edifício estaria concluído e pronto para ser plenamente dedicado ao Senhor.

A viagem de Wilford para casa, vindo da Inglaterra, tinha sido arriscada. Fortes ventos e ondas tinham castigado o navio. Wilford suportara tudo com firmeza, sentindo-se muito mal com o enjoo causado pelo balanço das ondas. “Todo homem que vende sua fazenda e passa a viver no mar”, lamentou-se ele na época, “tem um gosto bem diferente do meu”.17

Phebe partira antes dele da Inglaterra, levando os filhos Susan e Joseph a bordo de um navio cheio de santos que emigravam para os Estados Unidos. Wilford tinha permanecido em Liverpool por mais algum tempo para colocar em ordem alguns assuntos financeiros, transferir a liderança da Igreja para o novo presidente de missão e solicitar doações para terminar a construção do templo.18

“A construção do templo de Deus é de igual interesse para todo santo sincero de coração, onde quer que ele resida”, relembrou ele aos santos.19 Embora o templo tivesse que ser abandonado logo após sua construção, os santos de ambos os lados do oceano Atlântico estavam determinados a terminá-lo em obediência ao mandamento dado pelo Senhor à Igreja em 1841.

“Concedo-vos um tempo suficiente para me construirdes uma casa”, declarara o Senhor por intermédio de Joseph Smith, “e se não fizerdes essas coisas, até o final do prazo, sereis rejeitados como igreja com vossos mortos, diz o Senhor vosso Deus”.20

Embora muitos santos ingleses estivessem empobrecidos, Wilford os incentivara a doar o que pudessem para ajudar a financiar a construção do templo, prometendo-lhes bênçãos por seu sacrifício. Eles haviam doado generosamente, e Wilford se sentia grato pela consagração deles.21

Ao chegar aos Estados Unidos, Wilford pegou sua filha Phebe Amelia no Maine e viajou para o Sul para visitar seus pais, a quem ele persuadiu a seguirem para o Oeste com ele.22

Depois de desembarcar em Nauvoo, Wilford voltou a se reunir com a esposa e se encontrou com Orson Hyde, o apóstolo presidente na cidade, que não tinha muitas boas notícias a relatar. Entre os santos que ainda estavam em Nauvoo, havia alguns que se sentiam inquietos e abandonados. Uns poucos até questionavam o direito dos Doze de liderarem a Igreja. Entre eles estavam a irmã e o cunhado de Wilford, Eunice e Dwight Webster.23

A notícia deixou Wilford muito triste por vários dias. Ele havia ensinado e batizado Eunice e Dwight dez anos antes. Recentemente, eles tinham sido atraídos para um homem chamado James Strang, que afirmava ter sido secretamente indicado por Joseph Smith para ser seu sucessor. A afirmação de Strang era falsa, mas seu carisma tinha conquistado alguns santos de Nauvoo, inclusive os antigos apóstolos John Page e William Smith, irmão caçula do profeta Joseph.24

Em 18 de abril, Wilford ficou muito indignado quando ficou sabendo que Dwight e Eunice estavam tentando convencer seus pais a seguir Strang em vez de ir para o Oeste. Wilford reuniu a família e denunciou o falso profeta. Depois, saiu para carregar seus carroções.

“Tenho muito o que fazer”, escreveu ele em seu diário, “e bem pouco tempo para fazê-lo”.25


Naquela primavera, os trabalhadores correram para terminar o templo antes de sua dedicação pública em 1º de maio. Construíram uma parede de tijolos ao redor da pia batismal, instalaram as peças de madeira decorativas e pintaram as paredes. O trabalho prosseguiu o dia inteiro e muitas vezes noite adentro. Como a Igreja tinha pouco dinheiro para pagar os trabalhadores, muitos deles sacrificaram parte de seu salário para garantir que o templo estivesse pronto para ser dedicado ao Senhor.26

Dois dias antes da dedicação, os trabalhadores terminaram de pintar o salão de assembleia do piso térreo. No dia seguinte, varreram os detritos e o pó do grande salão e o prepararam para o serviço. Não conseguiram terminar o acabamento de todas as salas, mas sabiam que isso não impediria o Senhor de aceitar o templo. Confiantes de terem cumprido o mandamento de Deus, pintaram as palavras “O Senhor viu nosso sacrifício” acima dos púlpitos que ficavam junto à parede leste do salão de assembleia.27

Cônscios da dívida que tinham para com aqueles trabalhadores, os líderes da Igreja anunciaram que a primeira sessão de dedicação seria um evento de caridade. Foi pedido aos que comparecessem que contribuíssem com um dólar para ajudar a pagar os trabalhadores pobres.

Na manhã do dia 1º de maio, Elvira Stevens, de 14 anos, saiu de seu acampamento, a oeste do Mississippi, e cruzou o rio para assistir à dedicação. Tendo ficado órfã quando os pais morreram pouco depois de a família se mudar para Nauvoo, Elvira morava então com sua irmã casada. Como ninguém mais do acampamento podia acompanhá-la à dedicação, ela foi sozinha.

Sabendo que se passariam anos até que outro templo fosse construído no Oeste, os apóstolos haviam administrado a investidura a alguns jovens solteiros, inclusive Elvira. Naquela ocasião, três meses mais tarde, ela subiu novamente os degraus até as portas do templo, deu sua contribuição de um dólar e encontrou um lugar para se sentar no salão de assembleia.28

A sessão começou com o coro cantando. Orson Hyde então proferiu a oração dedicatória. “Conceda que Teu Espírito aqui habite”, rogou ele, “e que todos sintam no coração a sagrada influência de que Tua mão ajudou neste trabalho”.29

Elvira sentiu poder celeste no salão. Depois da sessão, ela retornou a seu acampamento, mas voltou para assistir à sessão seguinte, dois dias depois, esperando sentir novamente o mesmo poder. Orson Hyde e Wilford Woodruff pregaram sermões sobre o trabalho do templo, o sacerdócio e a ressurreição. Antes de encerrar a reunião, Wilford elogiou os santos por terminarem o templo embora tivessem que abandoná-lo.

“Milhares de santos receberam sua investidura nele, e a luz não se apagará”, disse ele. “Essa glória é suficiente para a construção do templo.”

Depois da sessão, Elvira voltou a seu acampamento, cruzando o rio pela última vez.30 Enquanto isso, os santos de Nauvoo passaram o restante do dia e da noite arrumando e removendo cadeiras, mesas e outros móveis até que o templo ficasse vazio, deixando-o nas mãos do Senhor.31


Poucas semanas após a dedicação do templo, Louisa Pratt e suas filhas partiram para o Oeste com uma companhia de santos. Ellen tinha então 14 anos, Frances, 12 anos, Lois tinha 9 anos e Ann, 5 anos. Elas tinham duas juntas de bois, duas vacas e um carroção carregado de roupas novas e provisões.

Antes de cruzarem o rio para entrarem em Iowa, Louisa foi até o correio e encontrou uma longa carta de Addison, datada de 6 de janeiro de 1846 — cinco meses antes. Addison contou que estava, então, no Taiti com alguns amigos tubuaianos, o casal Nabota e Telii, e que estava indo ajudar seu colega missionário Benjamin Grouard no trabalho missionário que ele realizava no atol vizinho de Anaa. Ele havia enviado 60 dólares para Louisa e palavras amorosas para ela e as filhas.

Addison esperava servir em meio aos santos das ilhas ainda por muitos anos, mas não sem sua família. “Se conseguir comprar livros”, escreveu ele, “e tiver tempo livre, acho que você e as crianças deveriam estudar o idioma taitiano, porque tenho a impressão de que isso poderá ser útil para vocês daqui a alguns anos”.32

A carta deixou Louisa feliz, e ela sentiu que sua viagem para o Oeste foi surpreendentemente feliz. As chuvas de primavera haviam chegado ao fim, e ela gostou de cavalgar sob os céus límpidos, tendo contratado um homem para dirigir os carroções. Acordava cedo todas as manhãs, reunia o gado disperso e ajudava a conduzi-los durante o dia. Ocasionalmente se preocupava com a distância que a separava de seus pais e de outros parentes, mas sua crença em Sião a consolava. As revelações se referiam a Sião como um lugar de refúgio, uma terra de paz. Era isso que ela queria na vida.

“Às vezes me sinto alegre”, escreveu ela no diário, em 10 de junho. “O Senhor nos chamou e designou um lugar onde podemos viver em paz e estar livres da ameaça de nossos cruéis perseguidores!”33

Cinco dias depois, Louisa e sua companhia chegaram ao monte Pisgah, um dos dois grandes pontos de parada que os santos tinham estabelecido ao longo da trilha de Iowa. O acampamento rodeava o sopé de algumas colinas de baixa altitude coroadas de um bosque de carvalhos. Como Brigham vislumbrara, os santos moravam ali em tendas ou cabanas de madeira e plantavam para suprir alimentos para as companhias que chegariam depois. Outras áreas do acampamento serviam de pastagem para o gado.

Louisa escolheu um lugar à sombra de alguns carvalhos para sua família. O lugar era muito bonito, mas o sol fustigava os santos acampados, muitos dos quais estavam exaustos por causa das chuvas e da lama com que tinham batalhado naquela primavera.

“Que o Senhor os recompense por todos os seus sacrifícios”, pensou Louisa.34


Bem à frente na trilha, Brigham e o Acampamento de Israel pararam em um lugar chamado Mosquito Creek, a pouca distância do rio Missouri. Estavam famintos, com dois meses de atraso em sua programação e desesperadamente empobrecidos.35 Ainda assim, Brigham insistia em enviar uma companhia de vanguarda até as Montanhas Rochosas. Ele acreditava que um grupo de santos precisava terminar a jornada naquela estação, porque, durante todo o tempo em que a Igreja vagasse sem lar, seus inimigos tentariam dispersá-la ou bloquear seu progresso.36

Brigham sabia, porém, que os recursos dos santos seriam excessivamente consumidos para equipar esse grupo. Poucos tinham dinheiro ou provisões de sobra, e o Iowa oferecia poucas oportunidades de trabalho remunerado. Para sobreviver nas pradarias, muitos santos tinham vendido pertences valiosos ao longo da trilha ou trabalhado em empregos temporários para conseguir dinheiro e comprar alimentos e suprimentos. À medida que o acampamento se movia para o Oeste e os assentamentos se tornavam mais raros, essas oportunidades ficariam cada vez mais difíceis de serem encontradas.37

Outras questões também pesavam sobre os ombros de Brigham. Os santos que não fizessem parte da companhia de vanguarda precisariam de um lugar para passar o inverno. Os omahas e outros povos nativos que habitavam as terras a oeste do rio Missouri estavam dispostos a permitir que os santos acampassem ali no inverno, mas os agentes do governo estavam relutantes em permitir que eles se estabelecessem por um longo período em terras indígenas protegidas.38

Brigham também sabia que os santos enfermos e empobrecidos de Nauvoo dependiam da Igreja para irem para o Oeste. Por um tempo, ele tivera a esperança de poder ajudá-los vendendo propriedades valiosas em Nauvoo, inclusive o templo. Mas até então esse esforço não tivera sucesso.39

Em 29 de junho, Brigham ficou sabendo que três oficiais do Exército dos Estados Unidos estavam se dirigindo para Mosquito Creek. Os Estados Unidos haviam declarado guerra ao México, e o presidente James Polk havia autorizado aqueles homens a recrutar um batalhão de 500 santos para uma campanha militar na costa da Califórnia.

No dia seguinte, Brigham discutiu a notícia com Heber Kimball e Willard Richards. Brigham nada tinha contra o México, e a ideia de ajudar os Estados Unidos o incomodava. Mas o Oeste se tornaria território americano se os Estados Unidos vencessem a guerra, e o fato de auxiliar o Exército poderia melhorar o relacionamento dos santos com a nação. O mais importante era que o soldo dos homens alistados poderia ajudar a Igreja a financiar sua migração para o Oeste.40

Brigham falou com os oficiais assim que eles chegaram. Ficou sabendo que receberam aquelas ordens depois que Thomas Kane, um rapaz muito bem relacionado na costa leste, ficara sabendo da situação aflitiva dos santos e apresentara Jesse Little a importantes oficiais de Washington, D.C. Após a utilização dos devidos canais de influência, Jesse se reuniu com o presidente Polk e o persuadiu a ajudar os santos a se mudarem para o Oeste, alistando alguns deles para o serviço militar.

Vendo os benefícios do arranjo, Brigham endossou as ordens de boa vontade. “Essa foi a primeira oferta que recebemos do governo para nosso benefício”, declarou ele. “Proponho que 500 voluntários sejam reunidos e farei o máximo possível para que sua família seja bem cuidada, até onde minha influência possa ser estendida, e alimentada enquanto eu próprio tiver algo para comer.”41


Drusilla Hendricks ficou furiosa com a decisão de Brigham de cooperar com os Estados Unidos. Seu marido, James, tinha sido ferido a bala no pescoço durante uma escaramuça com os missourianos, em 1838, deixando-o parcialmente paralisado. Tal como outras pessoas do acampamento, ela ainda se ressentia com o governo por não ter ajudado os santos naquela época. Embora seu filho William tivesse idade suficiente para se voluntariar para servir no batalhão, ela não queria que ele fosse. Com o marido paralisado, ela dependia do filho para seu sustento.42

Os recrutadores visitavam o acampamento diariamente, frequentemente acompanhados por Brigham ou outros apóstolos. “Se quisermos o privilégio de irmos para onde possamos adorar a Deus de acordo com os ditames de nossa consciência”, testificou Brigham, “precisamos formar o batalhão”.43 Muitos santos engoliram seu ressentimento e apoiaram o empreendimento, mas Drusilla não conseguia suportar a ideia de se separar do filho.

Às vezes, o Espírito sussurrava para ela: “Tens medo de confiar no Deus de Israel? Ele não esteve contigo em todas as tuas provações? Ele não te proveu tuas necessidades?” Ela reconhecia a bondade de Deus, mas então se lembrava da crueldade do governo, e sua raiva voltava.

No dia da partida do batalhão, William acordou cedo para ir buscar as vacas. Drusilla o observou caminhando pelo gramado alto e úmido e se preocupou com o fato de que sua falta de fé lhe viesse a causar mais mal do que bem. Ele poderia se ferir viajando pela trilha com a família tão facilmente quanto marchando com o batalhão. E, se isso acontecesse, ela se arrependeria de tê-lo obrigado a ficar.

Drusilla começou o desjejum, insegura do que fazer a respeito de William. Subindo no carroção para pegar farinha, ela novamente sentiu o Espírito sussurrar: Não desejava ela as maiores bênçãos do Senhor?

“Sim”, disse ela em voz alta.

“Então como pode obtê-las sem fazer o maior dos sacrifícios?”, perguntou o Espírito. “Deixa teu filho ir com o batalhão.”

“É tarde demais”, disse ela. “Eles vão partir esta manhã.”

William retornou, e a família se reuniu para o desjejum. Enquanto James abençoava o alimento, Drusilla se assustou quando um homem irrompeu no acampamento. “Parem tudo, homens!”, gritou ele. “Ainda precisamos de alguns homens no batalhão.”

Drusilla abriu os olhos e viu William olhando para ela. Estudou o rosto dele, memorizando cada detalhe. Soube, então, que ele se uniria ao batalhão. “Mesmo que eu nunca mais o veja novamente até a manhã da ressurreição”, pensou ela, “vou saber que você é meu filho”.

Depois do desjejum, Drusilla orou em particular. “Poupa-lhe a vida”, suplicou, “e que ele retorne a mim e ao seio da Igreja”.

“Ser-te-á feito”, sussurrou o Espírito, “como o foi para Abraão quando ele ofereceu Isaque sobre o altar”.

Drusilla procurou William e o encontrou sentado no carroção, com a cabeça reclinada, cobrindo o rosto com as mãos. “Quer ir com o batalhão?”, perguntou ela. “Se quiser, tive um testemunho de que é a coisa certa para você.”

“O presidente Young disse que é para a salvação deste povo”, disse William, “e posso contribuir com isso como qualquer outro”.

“Eu o retive”, disse Drusilla, “mas, se você quiser ir, não o reterei mais”.44

Capítulo 3

A palavra e a vontade do Senhor

enxames de insetos voadores ao redor de tendas na margem de um rio

Wilford e Phebe Woodruff chegaram ao rio Missouri com os filhos no início de julho de 1846. Sem conseguir persuadir a irmã e o cunhado a seguir os apóstolos em vez de James Strang, Wilford tinha partido de Nauvoo logo depois da dedicação do templo, com os pais e outros santos.

A chegada deles ao acampamento coincidiu com a partida de William Hendricks e outros recrutas do Exército. Recebendo o nome de Batalhão Mórmon, foram reunidos mais de 500 soldados. O batalhão empregou 20 mulheres como lavadeiras. Outras mulheres acompanharam os respectivos maridos na marcha, e algumas levavam consigo os filhos. No total, mais de 30 mulheres viajaram com o batalhão.1

Wilford, a princípio, ficou desconfiado em relação ao empenho do governo em recrutar homens santos dos últimos dias. Mas logo mudou de opinião, especialmente depois que Thomas Kane visitou o acampamento. Embora Thomas estivesse apenas levemente curioso em relação ao evangelho restaurado, ele foi muito importante para persuadir o governo a auxiliar a Igreja. Preocupava-se profundamente em combater as injustiças e estava genuinamente ansioso para ajudar os santos em sua situação aflitiva.

Thomas deixou imediatamente uma boa impressão nos apóstolos. “Pelas informações que recebemos dele”, anotou Wilford em seu diário, “estamos convencidos de que Deus começou a mudar o coração do presidente e de outros nesta nação”.2

Três dias antes da partida do batalhão, Brigham Young discursou para seus oficiais. Aconselhou-os a manterem o corpo limpo, a serem castos e a usarem o garment do templo se tivessem recebido a investidura. Disse-lhes que se comportassem de modo honroso em relação aos mexicanos e não brigassem com eles. “Tratem os prisioneiros com a maior civilidade”, disse ele, “e nunca tirem uma vida se isso puder ser evitado”.

No entanto, Brigham garantiu aos soldados que eles não teriam que lutar. Instou-os a desempenhar seus deveres sem reclamar, orar diariamente e levar consigo as escrituras.3

Depois que o batalhão partiu, Brigham passou novamente a cuidar do estágio seguinte da jornada dos santos. A cooperação com os Estados Unidos lhe garantira a permissão de estabelecer um acampamento de inverno em terras indígenas a oeste do rio Missouri. Ele passou a planejar manter os santos durante o inverno em um lugar chamado Grand Island, que ficava a 320 quilômetros a oeste, e dali enviar a companhia de vanguarda para as Montanhas Rochosas.4

Quando os apóstolos se aconselhavam mutuamente, Wilford falou sobre outros assuntos importantes da Igreja que precisavam de atenção imediata. Reuben Hedlock, o homem que ele tinha designado para presidir a missão britânica, tinha prejudicado muitos santos ingleses esbanjando o dinheiro que eles haviam consagrado para a emigração. Wilford previu problemas na missão, inclusive a perda de muitos recém-conversos, até que Reuben fosse desobrigado e substituído por uma liderança mais responsável.5

O quórum também sabia que santos pobres ainda estavam em Nauvoo, à mercê das turbas e de falsos profetas. Se os apóstolos não fizessem algo mais para ajudar aqueles santos, como haviam prometido fazer no templo, na conferência de outubro, o quórum estaria quebrando um solene convênio feito com os santos e com o Senhor.6

Agindo decisivamente, o quórum resolveu enviar três dos apóstolos que estavam no acampamento — Parley Pratt, Orson Hyde e John Taylor — para a Inglaterra a fim de liderar a missão britânica. Depois, enviaram carroções, juntas de bois e suprimentos de volta a Nauvoo para retirar os pobres.7

À medida que o quórum enviava homens e provisões para o Leste, Brigham se deu conta de que seu plano de prosseguir para o Oeste naquele ano já não seria mais possível, especialmente porque o batalhão tinha reduzido o número de homens fisicamente capazes no acampamento. Thomas Kane recomendou a construção do acampamento de inverno junto ao rio Missouri, e Brigham acabou concordando.8

Em 9 de agosto de 1846, os apóstolos anunciaram que os santos passariam o inverno num assentamento temporário, perto da margem ocidental do rio. Brigham queria ir até as Montanhas Rochosas e construir o templo assim que possível. Mas, antes disso, ele precisava reunir os santos e cuidar dos pobres.9


Por volta dessa época, a neblina envolveu o navio Brooklyn quando ele entrou na baía de São Francisco, seis cansativos meses após terem partido do porto de Nova York. De pé no convés do navio, Sam Brannan olhou através da névoa e vislumbrou uma costa acidentada. Dentro da baía, ele viu um forte mexicano em ruínas. Tremulando na brisa acima do forte estava hasteada uma bandeira americana.10

Sam temia que algo assim viesse a acontecer. A bandeira era um sinal seguro de que os Estados Unidos tinham tomado São Francisco do México. Ele ficara sabendo da guerra com o México quando o Brooklyn havia ancorado nas ilhas havaianas. Ali, o comandante de um navio de guerra americano disse que seria esperado que os santos auxiliassem as forças armadas dos Estados Unidos a tomar a Califórnia dos mexicanos. A notícia irou os santos, que não tinham viajado para o Oeste a fim de lutar por uma nação que os rejeitara.11

Quando adentravam a baía, Sam viu árvores ao longo da costa arenosa e alguns animais que por ali vagavam. Ao longe, localizada entre as colinas, estava Yerba Buena, uma antiga cidadezinha espanhola.

O Brooklyn aportou, e os santos desembarcaram naquela tarde. Ergueram suas tendas nas colinas, nos arredores de Yerba Buena, e encontraram abrigo em casas abandonadas e num antigo quartel militar que ficava ali perto. Usando materiais que tinham trazido de Nova York, os santos estabeleceram moinhos e uma gráfica. Alguns deles também encontraram trabalho entre os moradores da cidade.12

Embora desapontado com o fato de que a costa da Califórnia passara a pertencer aos Estados Unidos, Sam estava determinado a estabelecer o reino de Deus ali. Enviou um grupo de homens a um vale que ficava a vários dias de viagem para leste da baía, encontrando um assentamento chamado New Hope. Ali construíram uma serraria e uma cabana, depois limparam as terras e plantaram alguns hectares de trigo e iniciaram outras plantações.

Sam queria levar alguns homens para o Leste a fim de encontrar Brigham e conduzir o restante dos santos até a Califórnia, assim que a neve derretesse das montanhas no ano seguinte. Encantado com o clima saudável, o solo fértil e um bom porto, ele acreditava que o povo do Senhor não poderia pedir um lugar melhor para se reunir.13


Naquele verão, Louisa Pratt e as filhas acamparam no ponto de parada do monte Pisgah, na trilha de Iowa. O lugar era muito bonito, mas a água era tépida e de sabor amargo. Em pouco tempo, o assentamento foi assolado pela doença e muitos santos morreram. A família de Louisa escapou no início de agosto, com boa saúde, mas eles se sentiram muito mal por deixar para trás tantos amigos doentes.

A companhia de Louisa acampou pouco depois junto a um riacho infestado de mosquitos, e logo ela e outras pessoas tiveram febres. A companhia parou para descansar e depois prosseguiu rumo ao rio Missouri, onde uma longa fila de carroções esperava para usar a balsa. Quando finalmente chegou a vez de Louisa, algo assustou os bois, causando grande confusão na balsa e piorando a enfermidade de Louisa.

Do outro lado do rio, a febre de Louisa piorou, roubando-lhe o sono. Por volta da meia-noite, seus gemidos acordaram a mulher do balseiro, que a encontrou em péssimas condições. A mulher rapidamente orientou as filhas de Louisa a irem dormir num lugar separado para que a mãe conseguisse descansar um pouco. Depois, ela deu a Louisa café quente e um pouco de comida para reanimá-la.14

No dia seguinte, a companhia chegou ao novo assentamento dos santos, Winter Quarters, o maior de vários assentamentos dos santos ao longo do rio Missouri. Aproximadamente 2.500 pessoas moravam em Winter Quarters, em terras compartilhadas pelos omahas e outras tribos indígenas locais.15 A maioria dos santos ocupava cabanas de toras ou de turfa, mas alguns moravam em tendas, carroções ou abrigos escavados nas encostas dos morros.16

As mulheres de Winter Quarters imediatamente rodearam Louisa, ansiosas para ajudá-la. Deram-lhe conhaque e açúcar como remédio, o que a princípio a fez se sentir melhor. Mas logo a febre piorou, e ela começou a ter violentos calafrios. Com medo de estar morrendo, ela clamou ao Senhor por misericórdia.17

Algumas das mulheres que cuidavam de Louisa a ungiram com óleo, impuseram-lhe as mãos e a abençoaram pelo poder de sua fé. Em Nauvoo, Joseph Smith havia ensinado à Sociedade de Socorro que a cura era um dom do Espírito, um sinal que seguia todos os que cressem em Cristo.18 A bênção confortou Louisa, dando-lhe forças para suportar a doença, e ela em breve contratou uma enfermeira para cuidar dela até que a febre cedesse.

Também pagou cinco dólares a um homem para que lhe construísse uma cabana de turfa e vime. A cabana tinha apenas um cobertor como porta, mas era bem iluminada e grande o suficiente para que ela se sentasse numa cadeira de balanço ao lado da lareira, enquanto recuperava as forças.19


Em Winter Quarters, os santos araram e plantaram, construíram moinhos junto a um córrego local e estabeleceram lojas e comércios. O assentamento era organizado em quarteirões semelhantes ao padrão dado pelo Senhor para a cidade de Sião, conforme revelado a Joseph Smith em 1833. Ao norte da cidade, Brigham, Heber Kimball e Willard Richards construíram casas perto de uma pequena sede de conselho, onde o Quórum dos Doze e o recém-chamado sumo conselho de Winter Quarters se reuniam. Quase no centro da cidade, havia uma praça pública para pregações e outras reuniões comunitárias.20

A jornada através de Iowa tinha deixado muitos santos esgotados, e a labuta para manter as famílias alimentadas, vestidas e abrigadas continuava a minar suas forças.21 Além disso, moscas e mosquitos da margem enlameada do rio frequentemente infestavam o novo assentamento, e as dores e os calafrios da malária assolaram certa vez os santos por dias e semanas.22

Durante essas provações, a maioria dos santos obedecia aos mandamentos. Mas alguns roubavam, trapaceavam, criticavam a liderança dos apóstolos e se recusavam a pagar o dízimo. Brigham tinha pouca paciência com esse comportamento. “Os homens se afastam aos poucos”, declarou ele, “até que o diabo obtenha a posse de seu tabernáculo e eles sejam levados cativos à vontade do diabo”.23

Para encorajar a retidão, Brigham admoestava os santos a trabalharem juntos, guardarem os convênios e se absterem do pecado. “Não podemos ser santificados de uma vez”, disse ele, “mas temos que ser provados e colocados em todos os tipos de situações e testados ao máximo para ver se serviremos o Senhor até o fim”.24

Também os organizou em pequenas alas, designou bispos e instruiu o sumo conselho a manter um firme código de conduta. Alguns santos também se reuniam em famílias adotivas especiais. Naquela época, os santos não eram selados a seus pais falecidos caso estes não tivessem se filiado à Igreja em vida. Antes de partir de Nauvoo, Brigham tinha, portanto, incentivado cerca de 200 santos a serem selados, ou adotados espiritualmente, como filhos e filhas das famílias dos líderes da Igreja que eram seus amigos ou mentores no evangelho.

Esses selamentos de adoção eram realizados por meio de uma ordenança do templo. Os pais adotivos geralmente ofereciam apoio temporal e espiritual, ao passo que os filhos e as filhas, alguns dos quais não tinham família na Igreja, com frequência retribuíam com fidelidade e devoção.25

Algumas dificuldades ocorridas em Winter Quarters e em outros assentamentos temporários não podiam ser evitadas. Quando chegou o frio, mais de 9 mil santos moravam na região, incluindo 3.500 que residiam em Winter Quarters. Acidentes, doenças e morte assolavam todos os assentamentos. A malária, a tuberculose, o escorbuto e outras doenças ceifavam a vida de uma em cada dez pessoas. Cerca de metade dos mortos eram bebês e crianças.26

A família de Wilford Woodruff sofreu com as outras. Em outubro, enquanto Wilford cortava lenha, uma árvore que caía o atingiu e lhe quebrou algumas costelas. Pouco depois, seu filhinho Joseph contraiu um grave resfriado. Wilford e Phebe cuidavam constantemente do menino, mas nada que faziam ajudava, e logo tiveram que sepultar o corpinho dele no recém-arado cemitério do assentamento.

Algumas semanas após a morte de Joseph, Phebe deu à luz prematuramente um bebê, e a criança morreu dois dias depois. Numa noite, Wilford voltou para casa e encontrou Phebe muito perturbada, olhando para um retrato dela com Joseph no colo. Era muito doloroso para ambos perder filhos, e Wilford ansiava pelo dia em que os santos encontrariam um lar, viveriam em paz e desfrutariam as bênçãos e a segurança de Sião.

“Oro para que meu Pai Celestial prolongue meus dias”, escreveu ele no diário, “para que eu contemple a casa do Senhor erguida no alto das montanhas e veja o pavilhão da liberdade hasteado como um estandarte para as nações”.27


Em meio aos sofrimentos, em Winter Quarters, Brigham recebeu a notícia de que uma turba de aproximadamente mil homens tinha atacado a pequena comunidade de santos que ainda estava em Nauvoo. Cerca de 200 santos revidaram o ataque, mas foram derrotados na batalha após alguns dias. Os líderes da cidade negociaram uma retirada pacífica dos santos, muitos dos quais eram pobres e estavam enfermos. Mas, assim que os santos saíram da cidade, a turba os atacou e pilhou suas casas e seus carroções. Uma turba se apoderou do templo, profanou seu interior e zombou dos santos enquanto eles fugiam para os acampamentos que ficavam do outro lado do rio.28

Quando Brigham ficou sabendo do desespero dos refugiados, enviou cartas para os líderes da Igreja, lembrando-os do convênio que tinham feito em Nauvoo de ajudar os pobres e de auxiliar todos os santos que quisessem seguir para o Oeste.

“Os irmãos e as irmãs pobres, as viúvas e os órfãos, os enfermos e desamparados se encontram agora na margem ocidental do Mississippi”, declarou ele. “Chegou o momento de nos pôr a trabalho. Que o fogo do convênio que vocês fizeram na casa do Senhor arda em seu coração como uma chama inextinguível.”29

Embora houvessem enviado 20 carroções de auxílio para Nauvoo duas semanas antes e tivessem pouco alimento e suprimentos de sobra, os santos de Winter Quarters e dos assentamentos vizinhos enviaram outros carroções, juntas de bois, alimentos e outros suprimentos para Nauvoo. Newel Whitney, o bispo presidente da Igreja, também comprou farinha para os santos pobres.30

Quando os grupos de resgate encontraram os refugiados, muitos santos estavam febris, mal equipados para o tempo frio e desesperadamente famintos. Em 9 de outubro, ao se prepararem para fazer a jornada até o rio Missouri, os santos observaram um bando de codornas encher o céu e pousar nos carroções e ao redor deles. Homens e meninos se atropelaram para pegar as aves, apanhando-as com as mãos. Muitos se lembraram de como Deus também havia enviado codornas para Moisés e para os filhos de Israel em seu momento de necessidade.

“Nesta manhã, tivemos uma manifestação direta da misericórdia e bondade de Deus”, escreveu Thomas Bullock, secretário da Igreja, em seu diário. “Os irmãos e as irmãs louvaram a Deus e glorificaram Seu nome pelo fato de que o mesmo que foi derramado sobre os filhos de Israel no deserto tivesse se manifestado a nós em meio à perseguição.”

“Todos homens, mulheres e crianças tiveram codornas para comer no jantar”, escreveu Thomas.31


Enquanto isso, a milhares de quilômetros dali, no atol Anaa, no oceano Pacífico, um portador do Sacerdócio Aarônico chamado Tamanehune falava em uma conferência para mais de 800 santos dos últimos dias. “Uma carta deve ser enviada para a Igreja na América”, propôs ele, “solicitando que enviem imediatamente para cá de cinco a cem élderes”. Ariipaea, membro da Igreja e líder de uma vila local, concordou com a proposta, e os santos do sul do Pacífico ergueram a mão em apoio.32

Presidindo a conferência, Addison Pratt concordou de todo o coração com Tamanehune. Nos três anos que haviam se passado, Addison e Benjamin Grouard tinham batizado mais de mil pessoas. Mas nesse tempo todo eles tinham recebido apenas uma carta de um dos Doze, e ela não continha instruções para que retornassem para casa.33

Nos seis meses que se passaram desde a chegada da carta, os dois missionários não haviam recebido nenhuma notícia de sua família, de amigos ou dos líderes da Igreja. Sempre que um jornal chegava à ilha, eles vasculhavam as páginas procurando notícias sobre os santos. Um jornal que leram afirmava que metade dos santos de Nauvoo havia sido massacrada e que os demais haviam sido obrigados a fugir para a Califórnia.34

Ansioso para saber o que acontecera com Louisa e suas filhas, Addison decidiu retornar aos Estados Unidos. “Saber a verdade mesmo que seja ruim”, disse a si mesmo, “é melhor do que permanecer em dúvida e ficar ansioso”.35

Os amigos de Addison, Nabota e Telii, marido e mulher, que tinham servido com ele em Anaa, decidiram retornar a Tubuai, onde Telii era benquista como professora espiritual entre suas amigas da Igreja. Benjamin planejou ficar nas ilhas para liderar a missão.36

Quando os santos do Pacífico ficaram sabendo da partida iminente de Addison, pediram que voltasse rapidamente, trazendo consigo mais missionários. Como Addison já havia planejado retornar às ilhas com Louisa e as filhas, desde que ainda estivessem vivas, ele prontamente concordou.37

Um navio chegou à ilha um mês depois, e Addison embarcou com Nabota e Telii, rumo a Papeete, Taiti, onde esperava pegar um navio para o Havaí e depois para a Califórnia. Quando chegaram ao Taiti, ficaram sabendo, para sua consternação, que um pacote de cartas de Louisa, de Brigham Young e dos santos do Brooklyn tinha acabado de ser enviado da ilha para Anaa.

“Achei que já estava calejado para lidar com desapontamentos”, lamentou ele em seu diário, “mas isso deixou um sentimento em minha mente do qual eu nunca tivera conhecimento antes”.38


À medida que o frio ficou mais intenso em Winter Quarters, Brigham orava com frequência para saber como preparar a Igreja para a jornada que teriam pela frente até as Montanhas Rochosas. Após quase um ano na trilha, ele havia aprendido que era essencial organizar e equipar os santos para a estrada à frente a fim de terem sucesso. Mas repetidos contratempos também lhe mostraram como era importante confiar no Senhor e seguir Sua orientação. Como nos dias de Joseph, somente o Senhor poderia dirigir Sua Igreja.

Pouco depois do início de um novo ano, Brigham sentiu o Senhor lhe abrir a mente para uma nova luz e conhecimento. Numa reunião com o sumo conselho e os Doze, em 14 de janeiro de 1847, ele começou a registrar uma revelação do Senhor para os santos. Antes de Brigham ir se deitar, o Senhor lhe deu mais instruções para a jornada que viria. Pegando a revelação inacabada, Brigham continuou a registrar as orientações do Senhor para os santos.39

No dia seguinte, Brigham apresentou a revelação aos Doze. Sendo chamada de “A Palavra e a Vontade do Senhor”, ela salientava a necessidade de organizar os santos em companhias sob a liderança dos apóstolos. Na revelação, o Senhor ordenou aos santos que provessem suas próprias necessidades e trabalhassem juntos na jornada, cuidando das viúvas, dos órfãos e das famílias dos membros do Batalhão Mórmon.

“Que cada homem use toda a sua influência e seus bens para levar este povo ao lugar onde o Senhor estabelecerá uma estaca de Sião”, instruía a revelação. “Se fizerdes isto com o coração puro, com toda fidelidade, sereis abençoados.”40

O Senhor também ordenou a Seu povo que se arrependesse e se humilhasse, que tratasse uns aos outros com bondade e cessasse a embriaguez e as maledicências. Suas palavras foram apresentadas como convênio, instruindo os santos a “[caminhar] de acordo com todas as ordenanças”, cumprindo as promessas feitas no Templo de Nauvoo.41

“Eu sou o Senhor vosso Deus, sim, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão e de Isaque e de Jacó”, declarou Ele. “Eu sou aquele que tirou os filhos de Israel da terra do Egito; e meu braço estende-se nos últimos dias.”

Tal como os antigos israelitas, os santos deveriam louvar ao Senhor e invocar Seu nome nos momentos de angústia. Deviam cantar e dançar com orações de louvor e ação de graças no coração. Não deviam temer o futuro, mas confiar Nele e suportar suas aflições.

“Meu povo deve ser provado em todas as coisas”, declarou o Senhor, “a fim de preparar-se para receber a glória que tenho para ele, sim, a glória de Sião”.42


Os apóstolos apresentaram a nova revelação aos santos em Winter Quarters poucos dias mais tarde, e muitos se regozijaram quando a ouviram. “O Senhor novamente se lembrou de Seus servos e os favoreceu com uma revelação de Sua vontade”, escreveu uma mulher para o marido que estava na Inglaterra. “A paz e a união reinam em nosso meio”, exclamou ela, “e o Espírito de Deus está presente entre nós”.43

Mas alguns problemas persistiam em Winter Quarters. Desde que deixaram Nauvoo, os apóstolos haviam continuado a realizar adoções espirituais entre os santos. Brigham observou que alguns santos estavam instando os amigos a serem adotados em sua família, acreditando que sua glória eterna dependeria do número de pessoas seladas a eles. Surgiram inveja e competição ao brigarem sobre quem teria a maior família no céu. A contenda fez com que Brigham se questionasse se algum deles conseguiria chegar até lá.44

Em fevereiro, ao falar sobre a prática da adoção espiritual, Brigham admitiu que ainda não conhecia muito a esse respeito. Amava profundamente as dezenas de santos que tinham sido adotados por meio da ordenança em sua família. Não obstante, sentia-se pouco instruído nessa prática e se questionava a respeito de seu significado.45

“Vou buscar mais conhecimento sobre o assunto”, prometeu ele aos santos, “e consequentemente poderemos ensiná-la e praticá-la mais”.46

No dia seguinte, sentiu-se mal e se deitou para descansar. Ao dormir, sonhou com Joseph Smith sentado numa cadeira diante de uma grande janela. Tomando a mão direita de Joseph, Brigham perguntou a seu amigo por que ele não podia estar com os santos.

“Está tudo bem”, disse Joseph, erguendo-se da cadeira.

“Os irmãos estão muito ansiosos para entender a lei da adoção ou os princípios do selamento”, disse Brigham. “Se você tiver uma palavra de conselho para mim, ficarei grato de recebê-la.”

“Diga às pessoas que sejam humildes e fiéis e que se certifiquem de manter o Espírito do Senhor”, disse Joseph. “Se o fizerem, estarão exatamente como foram organizados por Nosso Pai nos céus antes de virem ao mundo.”

Brigham acordou com as palavras de Joseph ecoando na mente: “Diga às pessoas que se certifiquem de manter o Espírito do Senhor e segui-Lo, e Ele as conduzirá da maneira correta”.47 O conselho não respondeu às suas perguntas sobre os selamentos de adoção, mas o lembrou de obedecer ao Espírito para que ele e os santos pudessem ser guiados a um entendimento maior.


Por todo o restante do inverno, os apóstolos continuaram a buscar revelação ao se prepararem para enviar companhias de carroções para as Montanhas Rochosas. Sob sua liderança, uma pequena companhia de vanguarda partiria de Winter Quarters na primavera, cruzaria as montanhas e estabeleceria um novo lugar de reunião para os santos. Para obedecer ao mandamento do Senhor e cumprir a profecia, eles ergueriam um estandarte para as nações e começariam a trabalhar na construção de um templo. Companhias maiores, compostas principalmente de famílias, em breve os seguiriam, obedecendo à Palavra e a Vontade do Senhor em sua jornada.48

Antes de partir de Nauvoo, o Quórum dos Doze e o Conselho dos Cinquenta tinham pensado na possibilidade de se estabelecerem no Vale do Lago Salgado ou no vale de Bear River, ao norte. Os dois vales ficavam no lado mais distante das Montanhas Rochosas, e as descrições deles eram promissoras.49 Brigham tivera uma visão do local em que os santos se estabeleceriam, mas só tinha uma noção geral de onde encontrá-lo. Ainda assim, orou para que Deus guiasse a ele e à companhia de vanguarda para o local certo de reunião para a Igreja.50

A companhia de vanguarda era composta de 143 homens selecionados pelos apóstolos. Harriet Young, esposa do irmão de Brigham, Lorenzo, perguntou se ela e seus dois filhos pequenos poderiam acompanhar Lorenzo na jornada. Brigham então pediu a sua esposa Clara, que era filha de Harriet de seu primeiro casamento, que se unisse à companhia também. A esposa plural de Heber Kimball, Ellen, uma imigrante da Noruega, também se uniu à companhia.51

Justamente quando a companhia de vanguarda estava se preparando para partir, Parley Pratt e John Taylor retornaram a Winter Quarters de sua missão na Inglaterra. Com Orson Hyde, que ainda estava supervisionando a Igreja na Inglaterra, eles tinham designado novos líderes da missão e restaurado a ordem entre os santos. Então, acreditando que tinham ficado muito tempo longe de sua família, Parley e John recusaram o convite de Brigham de se unir ao restante do quórum na jornada para o Oeste. Brigham, portanto, deixou-os encarregados de Winter Quarters.52

Na tarde de 16 de abril de 1847, a companhia de vanguarda começou sua jornada sob um céu frio e sombrio. “Pretendemos abrir o caminho para a salvação dos sinceros de coração de todas as nações, ou sacrificar tudo em nossa mordomia”, declararam os apóstolos numa carta de despedida aos santos de Winter Quarters. “Em nome do Deus de Israel, pretendemos conquistar ou morrer tentando.”53

Capítulo 4

Um estandarte entre as nações

homens tremulando uma bandeira no alto de uma montanha

Em abril de 1847, Sam Brannan e outros três homens partiram da Baía de São Francisco em busca de Brigham Young e do grupo principal dos santos. Eles não sabiam exatamente onde os encontrariam, mas a maioria dos emigrantes seguia a mesma trilha para o Oeste. Se Sam e sua pequena companhia seguissem pela trilha em direção ao Leste, acabariam cruzando com os santos.

Depois de uma pequena parada para abastecimento em New Hope, os homens viajaram em direção ao Nordeste, até o sopé das montanhas de Sierra Nevada. Pessoas que conheciam bem a região alertaram Sam a não cruzar as montanhas naquela época do ano. Disseram que a passagem ainda estava bloqueada pela neve, o que significava que a viagem poderia ser difícil e levaria dois meses.

Ainda assim, Sam tinha certeza de que seria capaz de cruzar as montanhas rapidamente. Tocando em frente os animais de carga, ele e os outros homens subiram as montanhas por muitas horas. A neve estava profunda, mas muito compacta, possibilitando uma caminhada segura pela trilha. Porém, os riachos estavam cheios, o que forçava os homens a atravessá-los perigosamente a nado, ou então pegar rotas alternativas inseguras.

Do outro lado da cordilheira, a trilha os levava a um longo caminho com enormes penhascos de granito, de onde se podia contemplar um belo vale arborizado e um lago tão azul quanto o céu. Descendo para o vale, encontraram algumas cabanas abandonadas em um acampamento repleto de corpos humanos. Alguns meses antes, uma caravana a caminho da Califórnia ficara presa na neve. Os emigrantes construíram as cabanas para se abrigarem de uma terrível tempestade de inverno, mas, com pouca comida e despreparados para o frio, muitos morreram de fome ou congelados, enquanto outros praticaram o canibalismo.1

A história deles era um alerta sombrio dos perigos da viagem por terra, mas Sam se recusou a deixar que aquela tragédia o assustasse. Ele era fascinado pela natureza intocada. “Um homem não pode conhecer a si mesmo”, ele exclamou, “até que tenha viajado por estas montanhas selvagens”.2


Em meados de maio, Brigham Young e a companhia de vanguarda tinham percorrido mais de 480 quilômetros. Todos os dias, às 5 horas da manhã, eles acordavam ao som de uma corneta e, às 7 horas, começavam a viagem. Ocasionalmente, alguns atrasos diminuíam o ritmo da companhia, mas na maioria das vezes eles conseguiam viajar entre 24 e 32 quilômetros por dia. À noite, eles posicionavam os carroções em círculo, reuniam-se para orar e apagavam as fogueiras.3

A rotina entediante era quebrada, às vezes, quando avistavam búfalos. Os animais grandes e desgrenhados viajavam em enormes manadas, ressoando pelas colinas e margens dos rios tão estrondosamente que a própria pradaria parecia estar se movendo. Os homens ficavam ansiosos para sair à caça, mas Brigham os aconselhara a fazê-lo somente quando necessário e a nunca desperdiçarem a carne.4

A companhia viajava por uma trilha existente, aberta por outros desbravadores a caminho do Oeste alguns anos antes. A cada quilômetro que avançavam, lentamente os prados verdejantes iam dando lugar às campinas do deserto e às cadeias montanhosas. Do topo de um penhasco, a paisagem parecia tão inóspita quanto um mar tempestuoso. A trilha seguia pelo rio Platte e cruzava vários riachos que forneciam água para beber e para a higiene. No entanto, o solo em si era arenoso. A companhia às vezes avistava uma árvore ou um trecho de grama verde ao longo da trilha, mas a maior parte do terreno era árida e pouco convidativa, até onde a vista alcançava.5

Ocasionalmente, um membro da companhia perguntava a Brigham qual era o destino final. “Vou lhes mostrar quando chegarmos lá”, ele respondia. “Vi o lugar; vi-o em uma visão e, quando meus olhos naturais o contemplarem, saberei.”6

Todos os dias, William Clayton calculava a distância que a companhia havia percorrido e corrigia os mapas, às vezes imprecisos, que os guiavam. Logo no início da jornada, ele e Orson Pratt trabalharam com Appleton Harmon, um habilidoso artesão, para montar um “odômetro”, um dispositivo de madeira que media com precisão as distâncias por meio de um sistema de engrenagens presas a uma roda de carroção.7

Apesar do progresso da companhia, Brigham com frequência ficava frustrado com as atitudes de alguns de seus membros. A maioria estava na Igreja há anos, tendo servido missões e recebido as ordenanças do templo. No entanto, muitos ignoravam seu conselho sobre a caça, ou desperdiçavam o tempo livre jogando, lutando e dançando até tarde da noite. Algumas vezes, Brigham era acordado de manhã pelo vozerio de homens discutindo sobre algo que acontecera durante a noite. Ele temia que essas discussões acabassem em brigas ou coisas piores.

“Será que supomos”, perguntou ele aos homens na manhã de 29 de maio, “que vamos encontrar um lar para os santos, um lugar de descanso, um lugar de paz, onde eles possam edificar o reino e receber as nações, com um comportamento baixo, mesquinho, sujo, insignificante, cobiçoso e imoral?”8 Cada um deles deveria ser um homem de fé e mente sóbria, entregue à oração e à meditação frequente.

“Eis aqui uma oportunidade”, disse ele, “para que cada homem saiba por si mesmo se vai orar e se lembrar de seu Deus sem que seja instado a fazê-lo todos os dias”. Ele os aconselhou a servirem ao Senhor, a se lembrarem dos convênios do templo e a se arrependerem de seus pecados.

Depois disso, os homens se reuniram em quóruns do sacerdócio e fizeram convênio, com a mão erguida, de que fariam o que é certo e que andariam humildemente diante de Deus.9 No dia seguinte, ao partilhar do sacramento, um novo espírito prevalecia no grupo.

Heber Kimball escreveu em seu diário: “Nunca vi os irmãos tão quietos e sóbrios em um domingo desde que começamos a jornada”.10


Enquanto a companhia de vanguarda viajava para o Oeste, quase metade dos santos em Winter Quarters estava preparando os carroções e reunindo suprimentos para a viagem. À noite, depois que terminavam os preparativos, geralmente se juntavam para cantar e dançar ao som do violino; aos domingos, eles se reuniam para ouvir discursos e falar sobre a jornada que se aproximava.11

Contudo, nem todos estavam ansiosos para ir para o Oeste. James Strang e outros dissidentes continuavam a seduzir os santos com promessas de comida, abrigo e paz. Strang e seus seguidores fundaram uma comunidade em Wisconsin, um território pouco povoado, cerca de 480 quilômetros a nordeste de Nauvoo, onde alguns santos insatisfeitos estavam se reunindo. Várias famílias em Winter Quarters já tinham preparado seus carroções e se juntado a eles.12

Como apóstolo presidente em Winter Quarters, Parley Pratt implorou aos santos que ignorassem os apóstatas e seguissem os apóstolos autorizados do Senhor. “O Senhor nos chamou para nos reunirmos”, lembrou ele, “e não para nos espalharmos o tempo todo”. Disse-lhes que ele e John Taylor queriam mandar companhias para o Oeste no final da primavera.13

No entanto, Parley teve que adiar a viagem. Antes da companhia de vanguarda partir, várias companhias tinham sido organizadas pelos Doze por revelação. Elas eram compostas principalmente por famílias seladas por adoção a Brigham Young e Heber Kimball. Os apóstolos os instruíram para que levassem na bagagem suprimentos suficientes para durar até o ano seguinte e que os santos pobres e as famílias dos homens do Batalhão Mórmon fossem com eles. Se não guardassem o convênio de prover para essas famílias necessitadas, os carroções poderiam ser tirados deles e entregues aos que o guardariam.14

Porém, Parley encontrou alguns problemas para cumprir o plano do quórum. Muitos santos das companhias organizadas pelos Doze, incluindo alguns de seus capitães, não estavam prontos para sair. Alguns não tinham recursos para fazer a viagem e, sem suprimentos suficientes, seriam um fardo pesado para as outras companhias que mal tinham provisões suficientes para suas próprias famílias. Por outro lado, alguns santos que não tinham sido organizados em companhias estavam prontos e ansiosos para ir embora; eles temiam que mais entes queridos ficassem doentes ou morressem se permanecessem mais um ano em Winter Quarters.15

Parley e John decidiram reorganizar as companhias, adaptando o plano original para atender os cerca de 1.500 santos que estavam prontos para partir rumo ao Oeste. Quando alguns santos se opuseram às mudanças, questionando a autoridade de Parley para modificar o plano dos Doze, os dois apóstolos procuraram argumentar com eles.

John explicou que, na ausência de Brigham, o apóstolo com maior tempo de apostolado tinha autoridade para liderar os membros da Igreja. Como Brigham não estava em Winter Quarters, John acreditava que Parley tinha a responsabilidade e o direito de tomar decisões pelo assentamento.

Parley concordou. “Acredito que é melhor agirmos de acordo com nossas circunstâncias”, disse ele.16


Durante a viagem para o Oeste com a companhia de vanguarda, Wilford Woodruff com frequência ponderava sobre essa sagrada missão. Ele escreveu no diário: “Precisamos entender que estamos abrindo um caminho por onde a casa de Israel passará pelos muitos anos que estão por vir”.17

Ele sonhou certa noite que a companhia chegara ao novo local de coligação. Enquanto olhava para aquele lugar, um templo glorioso apareceu diante dele. Parecia ser construído com pedras brancas e azuis. Voltando-se para alguns homens que estavam perto dele no sonho, perguntou se conseguiam ver o templo. Eles disseram que não, mas isso não diminuiu a alegria que Wilford sentiu ao vê-lo.18

Em junho, o clima esquentou. A grama rasteira que alimentava o gado ficou marrom devido ao ar seco, e ficou mais difícil encontrar madeira. Muitas vezes, o único combustível para as fogueiras era o esterco de búfalo.19 A companhia, no entanto, permaneceu diligente na observância dos mandamentos, conforme instruídos por Brigham, e Wilford viu evidências das bênçãos de Deus na preservação de seus suprimentos de comida, animais e carroções.

“Temos tido paz e união entre nós”, escreveu ele no diário. “Grandes bênçãos resultarão desta missão se formos fiéis em guardar os mandamentos de Deus.”20

Em 27 de junho, a companhia de vanguarda encontrou na trilha um conhecido explorador chamado Moses Harris. Harris disse aos santos que nem o vale do rio Bear, nem o Vale do Lago Salgado eram bons para a colonização. Ele recomendou que se estabelecessem em um lugar chamado Cache Valley, a nordeste do Grande Lago Salgado.

No dia seguinte, a companhia encontrou outro explorador, Jim Bridger. Ao contrário de Harris, Bridger falou muito bem dos vales do rio Bear e do Lago Salgado embora os tenha alertado de que as noites frias no vale do rio Bear provavelmente impediriam o cultivo do milho. Ele disse que o Vale do Lago Salgado tinha bom solo, vários riachos de água doce e chuva o ano inteiro. Ele também elogiou o vale de Utah, ao sul do Grande Lago Salgado, mas os advertiu a não perturbarem os índios ute que viviam naquela região.21

As palavras de Bridger sobre o Vale do Lago Salgado foram incentivadoras. Embora Brigham não quisesse identificar o local de assentamento até que o visse, ele e outros membros da companhia ficaram muito interessados em explorar o Vale do Lago Salgado. E se aquele não fosse o lugar onde o Senhor queria que se estabelecessem, eles poderiam no mínimo parar ali, plantar e construir um assentamento temporário até encontrarem um lar permanente na bacia.22

Dois dias depois, enquanto os homens da companhia de vanguarda construíam balsas para atravessar um rio turbulento, Sam Brannan e seus companheiros chegaram ao acampamento pouco antes do pôr do sol, surpreendendo a todos. A companhia ouvia atentamente enquanto Sam os entretinha com as histórias do navio Brooklyn, com a fundação de New Hope e com a própria jornada perigosa por entre montanhas e planícies para encontrá-los. Ele disse que os santos da Califórnia tinham plantado hectares de trigo e de batatas em preparação para a chegada deles.

O entusiasmo de Sam pelo clima e pelo solo da Califórnia era contagiante. Ele aconselhou que a companhia reivindicasse a área da Baía de São Francisco antes que outros colonos chegassem. O local era ideal para assentamentos; homens importantes na Califórnia eram amigáveis com a causa dos santos e estavam prontos para recebê-los.

Brigham ouviu Sam, silenciosamente cético em relação à proposta. O fascínio da costa da Califórnia era inquestionável, mas Brigham sabia que o Senhor queria que os santos estabelecessem o novo local de coligação próximo às Montanhas Rochosas. “Nosso destino é a Grande Bacia”, declarou ele.23

Pouco depois de uma semana, a companhia deixou a trilha bem demarcada que vinha seguindo para pegar outra trilha menos acentuada para o sul, até o Vale do Lago Salgado.24


Naquele verão, Louisa Pratt se mudara com a família para uma cabana que comprara por cinco dólares. Era sua terceira casa em Winter Quarters. Depois que a chaminé parou de funcionar em sua casa de sapé, ela levou a família para um abrigo úmido, um espaço pouco maior do que um metro e meio, sem piso e com o telhado furado.

No novo lar, Louisa pagou alguns homens para instalar um piso de troncos partidos. Depois, construiu um galpão na frente da casa, que podia acomodar 25 pessoas sentadas, e ela e a filha Ellen abriram uma escola para crianças. Enquanto isso, sua filha Frances cuidava da horta que ela mesmo plantara e cortava madeira para aquecer a casa e para cozinhar.

Louisa não tinha boa saúde. Depois de se recuperar de uma febre e calafrios, ela caiu de mal jeito na neve e machucou o joelho. Enquanto vivia no abrigo, teve escorbuto e perdeu os dentes da frente. Porém, ela e as filhas sofreram menos do que muitos dos santos. Todos tinham vizinhos e amigos que morreram em decorrência das doenças que assolavam o acampamento.25

Depois de comprar a casa e fazer os reparos, sobrou-lhe pouco dinheiro. Quando o suprimento de comida estava quase acabando, ela visitou os vizinhos perguntando se estariam interessados em comprar seu colchão de penas, mas eles também não tinham dinheiro. Enquanto falava com eles, Louisa mencionava que não tinha nada em casa para comer.

“Você não parece preocupada”, disse um deles. “O que você pretende fazer?”

“Ah, não estou preocupada”, Louisa respondeu. “Sei que a libertação chegará de alguma maneira inesperada.”

Enquanto voltava para casa, ela visitou outro vizinho. Durante a conversa, ele mencionou a antiga barra de ferro de Louisa, usada para sustentar panelas em uma lareira. “Se quiser vendê-la”, disse o vizinho, “eu lhe dou dois alqueires de fubá”. Louisa concordou com a troca, reconhecendo que o Senhor a estava abençoando novamente.

Na primavera, Louisa se sentiu mais saudável e voltou a se congregar com os santos. As mulheres do assentamento começaram a se reunir para fortalecer umas às outras exercendo seus dons espirituais. Em uma das reuniões, as mulheres falaram em línguas, e Elizabeth Ann Whitney, que tinha sido uma líder espiritual entre os santos por muitos anos, interpretou-as. Elizabeth Ann disse que Louisa recuperaria a saúde, atravessaria as Montanhas Rochosas e teria um alegre encontro com o marido.

Louisa ficou surpresa. Ela acreditava que se encontraria com Addison em Winter Quarters e então fariam a viagem para o Oeste juntos. Sem a ajuda dele, seria impossível que ela fizesse aquela jornada, tanto física como financeiramente.26


Quando os membros da companhia de vanguarda avançaram em direção ao coração das Montanhas Rochosas, a trilha ficou mais íngreme, e os homens e as mulheres se cansavam mais facilmente. Diante deles, claramente visíveis acima das planícies onduladas, estavam os picos cobertos de neve, muito mais altos do que qualquer montanha que tinham visto no leste dos Estados Unidos.

No início de julho, a esposa de Brigham, Clara, acordou certa noite com febre, dor de cabeça e uma dor intensa nos quadris e nas costas. Outros logo reclamaram dos mesmos sintomas e precisaram se esforçar muito para acompanhar o resto da companhia. Cada passo no terreno pedregoso era angustiante para suas pernas enfraquecidas.27

Clara se sentiu melhor depois de alguns dias. A estranha doença parecia atacar rapidamente e diminuir pouco tempo depois. Em 12 de julho, Brigham ficou doente com febre. Ele delirou uma noite inteira. No dia seguinte, estava se sentindo um pouco melhor, mas ele e os apóstolos decidiram dar um descanso para a maior parte da companhia enquanto Orson Pratt seguia em frente com um grupo de 42 homens.28

Cerca de uma semana mais tarde, Brigham instruiu Willard Richards, George A. Smith, Erastus Snow e outros a seguir em frente e alcançar a companhia de vanguarda de Orson. “Parem no primeiro local adequado depois que chegarem ao Vale do Lago Salgado”, ele instruiu, “e plantem nossas sementes de batata, de trigo sarraceno e os nabos, independentemente de nosso destino final”.29 Lembrando-se do relatório de Jim Bridger sobre a região, ele alertou a companhia que não fosse para o sul, ao vale de Utah, até que se tornassem mais familiarizados com o povo ute que lá habitava.30

Clara, seus dois meios-irmãos mais novos e sua mãe ficaram para trás, com Brigham e outros pioneiros doentes. Quando os integrantes da companhia se sentiram fortes o suficiente para continuar, seguiram por uma trilha rústica por um terreno irregular, coberto por vegetação rasteira. Em alguns lugares, as paredes do cânion eram tão altas que a poeira intensa ficava acumulada no ar, dificultando a visão do que vinha pela frente.

Em 23 de julho, Clara e a companhia adoentada subiram uma trilha longa e íngreme até o topo de uma colina. De lá, eles desceram através de um denso bosque, passando por um caminho sinuoso repleto de tocos deixados por aqueles que abriram a trilha. Alguns quilômetros abaixo, a carroça onde estavam os irmãos de Clara virou em um barranco e bateu contra uma pedra. Os homens rapidamente abriram um buraco na cobertura do carroção e levaram os meninos para um local seguro.

Enquanto a companhia descansava na base da colina, dois homens do grupo de Orson chegaram ao acampamento afirmando que estavam perto do Vale do Lago Salgado. Exaustas, Clara e sua mãe continuaram a caminhada com o resto da companhia até o começo da noite. Acima deles, o céu parecia pronto para uma tempestade.31


Na manhã seguinte, 24 de julho de 1847, Wilford dirigiu seu carroção por vários quilômetros abaixo em um despenhadeiro profundo. Brigham estava deitado atrás dele no carroção, febril e fraco demais para andar. Eles viajaram ao longo de um riacho e atravessaram outro cânion até chegarem a um nível do solo de onde se avistava o Vale do Lago Salgado.

Wilford olhou com admiração para a extensa área abaixo. Campos férteis, forrados com a grama espessa dos prados verdejantes regados por córregos límpidos da montanha, podiam ser vistos por muitos quilômetros adiante deles. Os riachos desembocavam em um longo e estreito rio que corria longitudinalmente pelo vale. Uma orla de montanhas altas, com picos irregulares chegando até as nuvens, cercava o vale como uma fortaleza. A oeste, brilhando como um espelho à luz do sol, estava o Grande Lago Salgado.

Depois de uma jornada de mais de 1.600 quilômetros, por entre pradarias, desertos e cânions, a vista era de tirar o fôlego. Wilford conseguia imaginar os santos se fixando ali e estabelecendo outra estaca de Sião. Eles poderiam construir casas, cultivar pomares e plantações e reunir o povo de Deus de todo o mundo. Em pouco tempo, a casa do Senhor seria estabelecida no cume dos montes e seria exaltada por cima dos outeiros, exatamente como Isaías profetizara.32

Brigham não conseguia ver o vale claramente, então Wilford virou o carroção para que o amigo pudesse ter uma visão melhor. Olhando para o vale, Brigham o estudou por vários minutos.33

“É o suficiente. Este é o lugar certo”, disse ele a Wilford. “Siga em frente.”34


Brigham reconheceu o local assim que o viu. No extremo norte do vale, estava o pico da montanha que lhe fora mostrado em uma visão. Brigham tinha orado para ser conduzido diretamente àquele lugar e o Senhor respondera suas orações. Ele não via a menor necessidade de continuar procurando outro lugar.35

Abaixo deles, o solo fértil do vale já estava sendo trabalhado. Mesmo antes de Brigham, Wilford e Heber Kimball descerem a montanha, Orson Pratt, Erastus Snow e outros homens tinham estabelecido a base de um acampamento e começado a arar o campo, a plantar e a irrigar a terra. Wilford se juntou a eles assim que chegou ao acampamento, plantou meio alqueire de batatas antes de jantar e se acomodar para passar a noite.

O dia seguinte era o Dia do Senhor e os santos renderam graças a Ele. A companhia se reuniu para ouvir discursos e partilhar do sacramento. Embora ainda estivesse fraco, Brigham falou brevemente incentivando os santos a guardar o Dia do Senhor, a cuidar da terra e a respeitar a propriedade uns dos outros.

Na manhã de segunda-feira, dia 26 de julho, Brigham ainda estava convalescendo no carroção de Wilford quando lhe disse: “Irmão Woodruff, quero fazer uma caminhada”.

“Tudo bem”, respondeu Wilford.36

Eles partiram naquela manhã com oito homens, seguindo em direção às montanhas ao norte. Brigham viajava no carroção de Wilford segurando um manto verde em volta dos ombros. Antes de chegarem ao sopé das montanhas, o terreno ficou plano e Brigham desceu do carroção, caminhando lentamente sobre o solo rico e macio.

Enquanto os homens seguiam Brigham, admirando o lugar, ele parou de repente e cravou a bengala no chão. “Aqui será construído o templo de nosso Deus”, disse.37 Ele já podia vê-lo à sua frente, com seis torres elevando-se acima do chão do vale.38

As palavras de Brigham atingiram Wilford como um raio. Os homens estavam prestes a ir embora, mas Wilford pediu que esperassem. Ele quebrou o galho de uma artemísia próxima e o colocou no chão para marcar o local.

Os homens então continuaram a caminhada, visualizando a cidade que os santos construiriam no vale.39


Mais tarde naquele dia, Brigham apontou para o pico da montanha ao norte do vale. “Quero subir até aquele pico”, disse ele, “porque estou certo de que é o local que me foi mostrado em visão”. O pico redondo e rochoso era fácil de escalar e claramente visível de todas as partes do vale. Era o lugar ideal para se erguer um estandarte entre as nações, sinalizando ao mundo que o reino de Deus estava novamente na Terra.

Brigham partiu imediatamente para o cume do monte com Wilford, Heber Kimball, Willard Richards e outros. Wilford foi o primeiro a alcançar o topo. De lá, ele podia ver o vale se desdobrar à sua frente.40 Com suas altas montanhas e uma planície espaçosa, o vale poderia manter os santos a salvo de seus inimigos, permitindo-lhes viver as leis de Deus, coligar Israel, construir outro templo e estabelecer Sião. Nas reuniões com os Doze e o Conselho dos Cinquenta, Joseph Smith com frequência expressara o desejo de encontrar um lugar como aquele para os santos.41

Os amigos de Wilford logo se juntaram a ele e deram ao local o nome de Ensign Peak, em lembrança à profecia de Isaías de que os desterrados de Israel e os dispersos de Judá se congregariam desde os quatro confins da Terra sob uma bandeira comum.42

Eles queriam poder um dia fazer tremular ao vento uma enorme bandeira sobre o pico. Mas, por enquanto, fizeram o melhor que podiam para marcar a ocasião. O que aconteceu é incerto, mas um dos homens se lembrava de que Heber Kimball tirou uma bandana amarela, amarrou-a à extremidade da bengala de Willard Richards e a acenou para frente e para trás no ar quente da montanha.43

Capítulo 5

O peso do fardo desse grande povo

grande formação rochosa

No verão de 1847, Jane Manning James viajou para o Oeste com seu marido, Isaac, e dois filhos, Sylvester e Silas, em uma grande caravana de cerca de 1.500 santos. Os apóstolos Parley Pratt e John Taylor lideravam o comboio com a ajuda de vários capitães, que supervisionavam companhias de aproximadamente 150 a 200 santos. Parley e John organizaram a expedição no final da primavera, depois de decidirem mudar o plano original de migração do Quórum dos Doze.

A caravana partiu de Winter Quarters em meados de junho, cerca de dois meses depois da companhia de vanguarda.1 Embora com apenas 20 anos, Jane estava acostumada a longas viagens por terra. Depois de ser impedida de comprar uma passagem para viajar de barco em 1843, provavelmente devido à cor de sua pele, ela e um pequeno grupo de santos dos últimos dias negros caminharam quase 1.300 quilômetros do oeste de Nova York até Nauvoo. Posteriormente, Jane e Isaac atravessaram as pradarias lamacentas do Iowa com o Acampamento de Israel. Naquela época, Jane estava grávida de seu filho Silas, que nasceu durante a trilha.2

A viagem por terra não era a melhor coisa do mundo. Os dias eram longos e cansativos. A paisagem das planícies era monótona, a menos que uma formação rochosa incomum ou búfalos fossem avistados. Certa vez, enquanto viajavam ao longo da margem do rio North Platte, a companhia de Jane ficou aterrorizada quando avistou uma manada de búfalos avançando na direção deles. Os carroções e o gado foram agrupados enquanto alguns homens gritavam e chicoteavam tentando afastar os búfalos em debandada. Quando estava prestes a atropelar a companhia, a manada se dividiu ao meio: alguns búfalos se desviaram para a direita e outros para a esquerda. No final, ninguém se machucou.3

Jane, Isaac e os filhos eram os únicos santos negros na companhia de quase 190 pessoas. No entanto, havia alguns outros santos negros vivendo em alas e ramos em toda a Igreja. Elijah Able, um setenta que serviu missão em Nova York e no Canadá, frequentava um ramo do meio-oeste com a esposa, Mary Ann. Outro homem, Walker Lewis, que Brigham Young descreveu como “um dos melhores élderes” da Igreja, frequentava um ramo na Costa Leste com a família.4

Muitos membros da Igreja se opunham à escravidão, e Joseph Smith concorrera a presidente dos Estados Unidos com uma plataforma que incluía um plano para acabar com essa prática. Os esforços missionários da Igreja, no entanto, levaram às águas do batismo tanto escravos quanto seus senhores. Entre os santos escravos, três fizeram parte da companhia de vanguarda: Green Flake, Hark Lay e Oscar Crosby.5

Em 1833, o Senhor declarara: “Não é certo que homem algum seja escravo de outro”. Porém, depois que os santos foram expulsos do condado de Jackson, Missouri, em parte porque alguns deles se opunham à escravidão e demonstravam simpatia pelos negros livres, os líderes da Igreja advertiram os missionários a que não piorassem a tensão entre escravos e seus senhores. A escravidão foi uma das questões mais intensamente debatidas nos Estados Unidos naquela época e, por muitos anos, dividiu igrejas e o próprio país.6

Tendo passado a maior parte de sua vida no norte dos Estados Unidos, onde a escravidão era ilegal, Jane nunca fora escravizada. Ela trabalhou na casa de Joseph Smith e de Brigham Young e sabia que os santos brancos geralmente aceitavam os negros na comunidade.7 Como outros grupos de cristãos daquela época, no entanto, muitos santos brancos erroneamente consideravam os negros inferiores, acreditando que a pele negra era o resultado da maldição de Deus sobre as figuras bíblicas de Caim e Cão.8 Alguns até começaram a ensinar a falsa doutrina de que a pele negra era evidência das ações injustas de uma pessoa na vida pré-mortal.9

Brigham Young nutria alguns desses pontos de vista, mas, antes de deixar Winter Quarters, ele disse a um santo mestiço que todas as pessoas eram iguais à vista de Deus. “De um só sangue fez Deus toda a carne”, ele comentou. “Não nos importamos com a cor.”10

O estabelecimento de Sião além das Montanhas Rochosas deu aos santos a oportunidade de criar uma nova sociedade, na qual Jane, sua família e outros semelhantes a eles pudessem ser recebidos como concidadãos e santos.11 No entanto, os preconceitos eram difíceis de serem eliminados, e a mudança parecia improvável no futuro próximo.


Em 26 de agosto, Wilford Woodruff saiu a cavalo, cruzando plantações de milho e batatas até chegar ao sopé das montanhas, de onde se avistava o Vale do Lago Salgado. De lá, ele podia ver o início de um grande assentamento. Dentro de um mês, ele e a companhia de vanguarda tinham começado a construir um forte resistente, cultivado hectares de plantações e elaborado planos para o novo local de reunião. No centro do assentamento, onde Brigham marcara a terra com sua bengala, havia um terreno quadrado que agora era chamado de “quarteirão do templo”.12

Os primeiros dias de Wilford no vale foram repletos de eventos fascinantes. Uma manada de antílopes pastava no lado oeste do vale. Rebanhos de cabras-montesas passeavam nas colinas. Wilford e outros pioneiros descobriram fontes termais sulfurosas perto de Ensign Peak. Os homens boiavam e nadavam, tentando em vão afundar nas águas quentes do Grande Lago Salgado.13

Quatro dias depois de chegarem ao vale, Wilford andava sozinho, a vários quilômetros de distância do acampamento, quando avistou 20 índios americanos no alto de uma colina à sua frente. Com a vinda para o Oeste, os santos sabiam que encontrariam povos nativos ao longo da trilha e na Grande Bacia. No entanto, esperavam encontrar o Vale do Lago Salgado em grande parte desocupado. Na realidade, os shoshones, os utes e algumas outras tribos vinham muitas vezes ao vale para caçar e buscar alimento.

Girando o cavalo cautelosamente, Wilford começou a se dirigir ao acampamento em um trote lento. Um dos índios galopou atrás dele e, quando estava a apenas 90 metros de distância, Wilford parou o cavalo, virou-se para encarar o outro cavaleiro e procurou se comunicar em uma linguagem de sinais improvisada. O homem era amigável, e Wilford ficou sabendo que se tratava de um ute; ele vinha em paz e queria negociar com os santos. Daquele momento em diante, os santos fizeram muitos contatos com os índios, incluindo os shoshones do norte.14

Com o inverno prestes a chegar, Wilford, Brigham, Heber Kimball e outros membros da companhia de vanguarda planejavam voltar para sua família em Winter Quarters e trazê-los para o Oeste na primavera. “Gostaria de não ter que ir embora”, disse Heber. “Para mim, aqui é o paraíso. Este é um dos lugares mais agradáveis que já vi.”15

Porém, nem todos concordavam com ele a respeito do vale. Apesar dos riachos e dos gramados, o novo assentamento era o mais seco e desolado de todos os outros lugares onde os santos já estiveram reunidos. Desde o momento em que lá chegaram, Sam Brannan ficou implorando a Brigham que prosseguissem até os campos verdes e o solo fértil da costa da Califórnia.16

“Vou parar aqui mesmo”, Brigham disse a Sam. “Vou construir uma cidade e um templo neste lugar.” Brigham sabia que era a vontade do Senhor que os santos se estabelecessem no Vale do Lago Salgado, longe dos assentamentos mais a oeste dos Estados Unidos onde certamente outros emigrantes logo se estabeleceriam. Ele designou Sam para servir como presidente da Igreja na Califórnia e o enviou de volta à Baía de São Francisco com uma carta para os santos.17

“Se decidirem ficar onde estão, vocês são livres para fazê-lo”, escreveu Brigham na carta. No entanto, ele os convidou a se juntarem aos santos nas montanhas. “Queremos que este lugar seja uma fortaleza, um ponto de encontro, um local de coligação mais imediato do que qualquer outro”, disse a eles. A Califórnia, por outro lado, seria um posto de parada rápida para os santos a caminho do vale.18

Wilford nunca vira, em sua opinião, um lugar melhor para edificar uma cidade do que o Vale do Lago Salgado, e estava ansioso pela chegada de mais santos. Ele e os Doze tinham passado todo o inverno anterior planejando uma migração ordenada, que possibilitasse a todos os santos chegarem ao vale, independentemente de posição ou riqueza. Aquele era o momento de seguir em frente com o plano para o benefício de Sião.19


Quando Addison Pratt deixou o Taiti em março de 1847, esperava encontrar sua família na Califórnia com o restante dos santos. No entanto, por não ter se comunicado com seus familiares ou com alguém da Igreja no último ano, ele não sabia se realmente estariam lá. “Saber que agora estou indo ao encontro deles é um pensamento agradável”, escreveu em seu diário. “Mas o pensamento que me vem à mente em seguida é: Onde eles estão? Ou, onde vou encontrá-los?”20

Addison chegou à Baía de São Francisco em junho. Lá, ele encontrou os santos do navio Brooklyn aguardando a volta de Sam Brannan e a chegada do grupo principal da Igreja. Acreditando que Louisa e os filhos estivessem a caminho da costa, Addison se ofereceu para ir ao assentamento dos santos em New Hope com mais quatro homens para colher o trigo da Igreja.

Logo depois, o grupo partiu em um barco. New Hope ficava a mais de 160 quilômetros no interior, próximo a um afluente do rio San Joaquin. Durante alguns dias, os homens navegaram ao longo de uma região baixa e pantanosa, com juncos altos às margens dos rios. Perto do assentamento, o chão ficou firme e eles percorreram o resto do caminho a pé, por pradarias cobertas de grama.

O local onde ficava New Hope era lindo, mas um rio nas proximidades inundara há pouco tempo, levando parte do trigo dos santos e deixando no seu rastro poças de água estagnada. À noite, enquanto Addison se preparava para dormir, enxames de mosquitos atacaram o assentamento. Addison e outros tentaram espantá-los com fumaça, mas sem sucesso. E, para piorar a situação, coiotes e corujas uivaram e piaram até o amanhecer, roubando a paz e a tranquilidade dos colonos cansados.21

A colheita do trigo começou na manhã seguinte. Porém, a noite insone de Addison o deixara cansado e, ao meio-dia, ele cochilou sob a sombra de uma árvore. Isso se tornou uma rotina diária, pois os mosquitos e o barulho dos animais selvagens o mantinham acordado todas as noites. Quando a colheita terminou, Addison ficou feliz por partir.

“Se não fosse pelos mosquitos”, escreveu ele em seu diário, “eu teria apreciado ficar lá”.22

De volta à Baía de São Francisco, Addison começou a preparar uma casa para a família. Àquela altura, alguns membros do Batalhão Mórmon chegaram à Califórnia e foram honrosamente dispensados do serviço militar. Sam Brannan também retornou à baía, ainda convencido de que Brigham era um tolo por se estabelecer no Vale do Lago Salgado. “Depois que passar um tempo tentando viver no Vale do Lago Salgado”, disse a alguns veteranos do batalhão, “ele vai descobrir que eu estava certo e ele errado”.

Mesmo assim, Sam entregou a carta de Brigham aos santos na Califórnia, e muitos dos que viajaram com o navio Brooklyn ou que marcharam com o Batalhão Mórmon decidiram emigrar para o Vale do Lago Salgado na primavera. Sam também tinha uma carta de Louisa para Addison. Ela ainda estava em Winter Quarters, mas planejava ir ao vale na primavera e se estabelecer com o grupo principal dos santos.

Addison mudou seus planos imediatamente. Na primavera, ele partiria com os santos rumo ao leste e se juntaria à sua família.23


Brigham Young ainda estava doente no final de agosto, quando deixou o Vale do Lago Salgado com uma companhia de volta a Winter Quarters. Nos três dias seguintes, a pequena companhia viajou rapidamente por cânions empoeirados e passagens íngremes nas Montanhas Rochosas.24 Quando chegaram do outro lado, Brigham ficou feliz ao saber que a grande caravana de Parley Pratt e John Taylor estava a apenas algumas centenas de quilômetros de distância.

No entanto, a alegria de Brigham desapareceu pouco tempo depois, quando soube que a caravana tinha 400 carroções a mais do que ele previra. Os Doze tinham passado todo o inverno organizando os santos em companhias, de acordo com a vontade revelada do Senhor. Parecia agora que Parley e John tinham desconsiderado essa revelação e agido por conta própria.25

Alguns dias depois, a companhia de Brigham e a caravana se encontraram. Parley estava em uma das primeiras companhias, portanto Brigham rapidamente convocou um conselho com os líderes da Igreja para perguntar por que ele e John desobedeceram às instruções do quórum.26

“Se fiz algo errado, estou disposto a corrigi-lo”, disse Parley ao conselho. Porém, insistiu que ele e John agiram dentro da autoridade deles como apóstolos. Centenas de santos tinham morrido naquele ano em Winter Quarters e em outros assentamentos ao longo do rio Missouri. Muitas famílias estavam desesperadas para sair daquele lugar antes que chegasse outro inverno mortal. Como alguns santos nas companhias que os Doze tinham organizado ainda não estavam preparados para partir, ele e John decidiram formar novas companhias para acomodar os que estavam prontos.27

“Nossas companhias estavam perfeitamente organizadas”, Brigham argumentou, “e, se não conseguissem ficar prontas, éramos responsáveis por elas”. A Palavra e a Vontade do Senhor tinham orientado com clareza que cada companhia deveria “assumir a responsabilidade igual” de levar os pobres e as famílias dos homens que serviam no Batalhão Mórmon. No entanto, Parley e John tinham deixado muitas dessas pessoas para trás.28

Brigham também discordava que dois apóstolos pudessem anular a decisão do quórum. “Se o Quórum dos Doze decidir algo, não está no poder de dois deles ignorar a decisão”, afirmou. “Quando colocamos a máquina para andar, vocês não tinham o direito de colocar as mãos entre as engrenagens para parar a roda.”29

“Fiz o melhor que pude”, disse Parley. “Você diz que eu poderia ter feito melhor e, se devo assumir a culpa pelo que fiz e dizer que errei, então vou dizer: Errei. Cometi um erro e sinto muito por isso.”

“Eu o perdoo”, Brigham respondeu. Então, acrescentou: “E, se eu não fizer o que é certo, quero que todo homem me corrija quando eu estiver errado para que eu possa viver a felicidade do evangelho. O peso do fardo desse grande povo está me matando”.30

O cansaço de Brigham era evidente em seu rosto e em seu corpo magro. “Considero-me um homem fraco e insignificante. Fui chamado pela providência de Deus para presidir”, ele disse. “Quero que você vá direto para o reino celestial comigo.”

Parley então disse: “Quero saber se os irmãos estão satisfeitos comigo”.

“Deus o abençoe para sempre”, respondeu Brigham. “Não pense mais nisso.”31


Drusilla Hendricks estava acampada com sua família um pouco adiante da caravana quando Brigham e seu grupo chegaram. Apesar de que a maioria das famílias dos membros do Batalhão Mórmon ainda estivesse em Winter Quarters, a família Hendricks e algumas outras tinham reunido recursos suficientes para se juntarem aos que estavam indo para o Oeste. Mais de um ano se passara desde que Drusilla vira seu filho William indo embora com o batalhão, e ela estava ansiosa para se reunir com ele no vale ou mesmo antes.32

A companhia de Drusilla encontrara soldados do batalhão retornando ao longo da trilha. O rosto de muitos santos, ansiosos por rever seus entes queridos, brilhava esperançosamente quando viam as tropas. Infelizmente, William não estava entre eles.

Um mês depois, encontraram mais soldados do batalhão. Aqueles homens deixaram os santos fascinados ao descreverem a Grande Bacia e permitiram que provassem o sal que trouxeram com eles do Grande Lago Salgado. Porém, William tampouco estava naquele grupo.33

Nas semanas seguintes, Drusilla e sua família percorreram trilhas nas montanhas, atravessaram rios e córregos, subiram morros íngremes e cruzaram cânions. As mãos, os cabelos e o rosto deles ficaram cobertos de poeira e sujeira. As roupas, já gastas e esfarrapadas na longa jornada, ofereciam pouca proteção contra o sol, a chuva e a lama. Quando chegaram ao vale no início de outubro, alguns da companhia estavam doentes ou exaustos demais para celebrar.34

Mais de uma semana se passara desde a chegada de Drusilla e sua família ao vale, e eles ainda não tinham notícias de William. Depois que o batalhão chegou à costa da Califórnia, alguns veteranos ficaram para trabalhar e ganhar dinheiro; outros, porém, foram para o Leste, para o Vale do Lago Salgado ou para Winter Quarters. Tudo o que Drusilla sabia era que William poderia estar em algum lugar entre o Oceano Pacífico e o rio Missouri.35

O inverno se aproximava, e a família de Drusilla não tinha roupas quentes, nem muito alimento, nem recursos para construir uma casa. A situação deles era sombria, mas ela confiava em Deus de que tudo daria certo. Uma noite, Drusilla sonhou com o templo que os santos construiriam no vale, assim como Wilford Woodruff sonhara alguns meses antes. Joseph Smith estava em pé no topo do templo, com a mesma aparência de quando estava vivo. Drusilla chamou o marido e os filhos e disse: “Lá está Joseph”. O profeta falou com eles e duas pombas voaram sobre a família.

Ao acordar, Drusilla entendeu que as pombas representavam o Espírito do Senhor, um sinal da aprovação divina para as decisões que ela e a família tinham tomado. Ela acreditava que o Senhor sabia dos sacrifícios que eles haviam feito.

Mais tarde naquele dia, um grupo de veteranos do batalhão, cansados da longa caminhada, chegou ao vale. Dessa vez, William estava entre eles.36


Enquanto a família Hendricks se reunia no Vale do Lago Salgado, os homens da companhia de Brigham ainda estavam se aventurando na trilha para o Leste. Eles tinham viajado rápido e agora estavam exaustos e com pouca comida. Os cavalos estavam cada vez mais fracos e começavam a sucumbir. De manhã, alguns animais precisavam de ajuda para ficar de pé.37

Em meio a essas dificuldades, Brigham ainda estava preocupado com o encontro que tivera com Parley.38 Embora tenha perdoado o companheiro de apostolado e dito que esquecesse o assunto, o desacordo entre eles revelou a necessidade de esclarecimentos — e possivelmente de mudanças — no modo como a Igreja estava sendo conduzida e organizada.

Na época de Joseph, a Primeira Presidência presidia a Igreja. Entretanto, com a morte do profeta, a Primeira Presidência foi dissolvida, deixando para os Doze a responsabilidade de presidir em seu lugar. Segundo a revelação, os Doze Apóstolos formavam um quórum igual em autoridade à Primeira Presidência. Mas eles também tinham o dever sagrado de servir como um conselho itinerante para levar o evangelho ao mundo.39 Como quórum, será que poderiam cumprir adequadamente esse encargo e, ao mesmo tempo, assumir os deveres da Primeira Presidência?

Brigham ocasionalmente considerava reorganizar a Primeira Presidência, mas nunca achava que era a hora certa. Desde que saíram do Vale do Lago Salgado, as questões sobre o futuro da liderança da Igreja estavam em sua mente.40 Durante a viagem para Winter Quarters, ele ponderou serenamente sobre o assunto e sentiu o Espírito insistindo cada vez mais para que ele agisse.

Um dia, enquanto descansava ao lado de um rio, ele se virou para Wilford Woodruff e perguntou se a Igreja deveria chamar os membros dos Doze para formar uma nova Primeira Presidência.

Wilford pensou sobre o assunto. Alterar o Quórum dos Doze — um quórum estabelecido por revelação — era um assunto sério.

“Seria necessário uma revelação para mudar a organização desse quórum”, observou Wilford. “O que quer que o Senhor o inspire a fazer a esse respeito, vou apoiar.”41

Capítulo 6

Como o ribombar de sete trovões

grande cabana na neve

No outono de 1847, Oliver Cowdery morava com a esposa, Elizabeth Ann, e a filha Maria Louise em uma pequena cidade no território de Wisconsin, a aproximadamente 805 quilômetros de Winter Quarters. Ele estava com 41 anos de idade e tinha um escritório de advocacia com seu irmão mais velho. Quase duas décadas tinham se passado desde que Oliver servira como escrevente de Joseph Smith na tradução do Livro de Mórmon. Ele ainda acreditava no evangelho restaurado, mas há nove anos estava afastado do convívio com os santos.1

Phineas Young, irmão mais velho de Brigham Young, era casado com a irmã mais nova de Oliver, Lucy, e os dois homens eram muito amigos e trocavam cartas com frequência. Nelas, Phineas deixava claro para Oliver que ele ainda tinha um lugar na Igreja.2

Outros velhos amigos também mantinham contato com Oliver. Sam Brannan, ex-aprendiz de Oliver na gráfica de Kirtland, convidara-o para viajar com os santos no navio Brooklyn. William Phelps, que deixara a Igreja por um breve período depois de um desentendimento com Joseph Smith, também convidou Oliver a ir para o Oeste. “Se você acredita que somos Israel”, escreveu William, “venha conosco e lhe faremos bem”.3

Porém, o ressentimento de Oliver era profundo. Ele acreditava que Thomas Marsh, Sidney Rigdon e outros líderes da Igreja tinham colocado Joseph e o sumo conselho contra ele no Missouri. Ele temia que sua saída da Igreja tivesse maculado sua reputação entre os santos. Queria que se lembrassem das coisas boas que ele fizera, especialmente da sua participação na tradução do Livro de Mórmon e na restauração do sacerdócio.4

“Esse é um assunto delicado para mim”, escreveu ele a Phineas certa vez. “Seria para você também se estivesse sob as mesmas circunstâncias, tendo estado na presença de João com nosso falecido irmão Joseph ao receber o sacerdócio menor e na presença de Pedro ao receber o maior.”5

Oliver também tinha dúvidas sobre a autoridade do Quórum dos Doze para presidir a Igreja. Ele respeitava Brigham Young e os outros apóstolos que conhecia, mas não tinha um testemunho de que Deus os chamara para liderar os santos. Naquele momento, acreditava que a Igreja estava em estado latente, aguardando um líder.

Em julho, quase na mesma época em que a companhia de vanguarda entrou no Vale do Lago Salgado, o ex-apóstolo William McLellin visitou Oliver. William queria começar uma nova igreja no Missouri com base no evangelho restaurado e esperava que Oliver se juntasse a ele. A visita levou Oliver a escrever para o irmão de sua esposa, David Whitmer, uma das testemunhas do Livro de Mórmon. Ele sabia que William planejava visitar David também e queria saber o que David pensava sobre William e seu trabalho.6

David escreveu seis semanas mais tarde, relatando que William, de fato, o visitara. “Estabelecemos ou começamos a estabelecer a igreja de Cristo novamente”, anunciou David, “e é a vontade de Deus que você seja um dos meus conselheiros na presidência da igreja”.7

Oliver pensou a respeito da oferta. Formar uma nova presidência da igreja com David e William no Missouri lhe daria outra vez a chance de pregar o evangelho restaurado. Porém, seria aquele o mesmo evangelho que ele abraçara em 1829? Será que David e William tinham a autoridade de Deus para estabelecer uma nova igreja?8


No início da manhã de 19 de outubro de 1847, os apóstolos Wilford Woodruff e Amasa Lyman avistaram sete homens saindo de um bosque distante. Normalmente, estranhos na trilha não representavam uma ameaça. Porém, a aparição repentina daqueles homens deixou Wilford em alerta.

Nos últimos dois dias, ele e Amasa estiveram caçando búfalos com outros homens a fim de alimentar a companhia de Brigham Young, que enfrentava dificuldades. O destino deles, Winter Quarters, ainda estava a mais de uma semana de viagem. Sem a carne de búfalo armazenada nos três carroções dos caçadores, seria difícil concluir a jornada. Muitos já estavam doentes.9

Os apóstolos observavam os estranhos com cuidado, imaginando a princípio que eram índios. No entanto, conforme se aproximavam, viram que eram homens brancos — possivelmente soldados — montados a cavalo, vindo a toda velocidade na direção do grupo de caçadores.

Wilford e os outros homens empunharam as armas para se defenderem. Quando os estranhos chegaram perto, Wilford ficou surpreso e feliz ao ver o rosto de Hosea Stout, o chefe de polícia em Winter Quarters. Os santos em Winter Quarters souberam da situação desesperadora da companhia e enviaram Hosea e seus homens com provisões para os viajantes e para os animais.10

A ajuda fortaleceu a companhia, que pôde então seguir em frente. Em 31 de outubro, quando estavam a alguns quilômetros de distância do assentamento, Brigham fez sinal para que parassem e se reunissem. O dia difícil de viagem estava chegando ao fim, e os homens estavam ansiosos para o reencontro com a família, mas Brigham queria dizer algumas palavras antes de se dispersarem.

“Agradeço a vocês por sua bondade e sua disposição de obedecer às ordens”, disse ele. Em pouco mais de seis meses, eles tinham viajado mais de 3.200 quilômetros sem grandes acidentes e nenhuma morte. “Conseguimos realizar mais do que esperávamos”, declarou Brigham. “As bênçãos do Senhor estiveram sobre nós.”11

Ele dispensou os homens, que voltaram para seus carroções. A companhia, então, percorreu os poucos quilômetros que restavam até Winter Quarters. Quando os carroções entraram no assentamento, pouco antes do pôr do sol, os santos saíram de suas cabanas e seus casebres para receber os homens de volta. Multidões se formaram ao longo das ruas para cumprimentá-los e se regozijarem com tudo o que tinham realizado sob a mão orientadora do Senhor.12


Wilford ficou muito feliz em ver sua esposa e seus filhos novamente. Três dias antes, Phebe dera à luz uma menina saudável. Agora, a família Woodruff tinha quatro filhos vivos: Willy, Phebe Amelia, Susan e a recém-nascida Shuah. Wilford também tinha um filho, James, com sua esposa plural, Mary Ann Jackson, com quem se casou pouco depois de voltar da Inglaterra. Mary Ann e James haviam ido para o Vale do Lago Salgado no início daquele ano com o pai de Wilford.

“Todos estavam animados e felizes”, Wilford escreveu sobre sua volta ao lar, “e sentimos que nosso reencontro era uma grande bênção”.13

Naquele inverno, os nove apóstolos em Winter Quarters e nos assentamentos vizinhos se reuniram frequentemente. Durante essas reuniões, Brigham pensava com frequência sobre o futuro do Quórum. Na jornada de volta do Vale do Lago Salgado, o Espírito revelara a Brigham que o Senhor queria que os Doze reorganizassem a Primeira Presidência para que os apóstolos pudessem ficar livres para proclamar o evangelho de Jesus Cristo em todo o mundo.14

Brigham há muito tempo relutava em falar com o quórum sobre o assunto. Ele entendia que suas responsabilidades como presidente dos Doze o destacavam dos outros apóstolos, dando-lhe autoridade para receber revelação para o quórum e para todos dentro de sua mordomia.

Contudo, ele também sabia que não poderia agir sozinho. O Senhor revelara em 1835 que as decisões dos Doze deveriam ser unânimes ou nada ficaria decidido. Por orientação divina, os apóstolos deveriam agir “com toda retidão, com santidade e humildade de coração” ao tomar decisões. Tudo o que fizessem como quórum teria que ser em espírito de união e harmonia.15

Em 30 de novembro, Brigham finalmente falou ao quórum sobre a reorganização da Primeira Presidência, certo de que essa era a vontade do Senhor para seguirem em frente. Orson Pratt imediatamente questionou a necessidade de mudança. “Eu gostaria de ver os Doze juntos em perfeita união”, disse ele.

Orson acreditava que os Doze poderiam liderar a Igreja na ausência de uma Primeira Presidência porque uma revelação declarara que os dois quóruns eram iguais em autoridade. O profeta Joseph Smith também ensinara que a maioria dos Doze poderia decidir com autoridade quando o quórum completo não estivesse presente. Para Orson, isso significava que sete apóstolos poderiam permanecer na sede da Igreja para governar os santos, enquanto os outros cinco levariam o evangelho às nações.16

Brigham ouviu Orson, mas discordou de sua conclusão. “O que é melhor”, Brigham perguntou, “desatar os pés dos Doze e deixá-los ir às nações, ou manter sempre sete em casa?”

“É meu sentimento”, disse Orson, “que não deve haver uma Primeira Presidência com três membros, mas que os Doze formem a Primeira Presidência”.17

Enquanto Orson e Brigham falavam, Wilford ficou pensando sobre o assunto. Ele estava disposto a apoiar uma nova Primeira Presidência se essa fosse a vontade revelada do Senhor. No entanto, ele também se preocupava com as consequências de uma mudança. Se três dos Doze formassem a Primeira Presidência, três novos apóstolos seriam chamados para ocupar o lugar deles no quórum? E como a reorganização da presidência afetaria o papel dos Doze na Igreja?

Por enquanto, ele queria que os Doze continuassem como estavam. Dividir o quórum seria como cortar um corpo em dois.18


As montanhas que cercavam o Vale do Lago Salgado pareciam estar em chamas no outono de 1847, quando a cor das folhagens mudou para tons brilhantes de vermelho, amarelo e marrom. De onde estava acampada com a família, em meio a outros santos no quarteirão do templo, Jane Manning James podia ver a maioria das montanhas e a maior parte do novo assentamento dos santos, que começou a ser chamado de Great Salt Lake City ou simplesmente Salt Lake City. Alguns quilômetros a sudoeste de sua barraca, havia um forte construído em forma de quadrado, onde alguns santos estavam construindo cabanas para sua família. Como o vale tinha poucas árvores, eles construíam essas casas com madeira dos cânions próximos ou com tijolos de adobe.19

Quando Jane chegou ao vale, os santos que tinham vindo com a companhia de vanguarda já estavam ficando sem comida. Os recém-chegados, como Jane, tinham poucas provisões disponíveis. O leite da maioria das vacas no vale tinha secado, e o gado estava fatigado e magro. John Smith, o recém-chamado presidente da Estaca Salt Lake, liderava o sumo conselho e os bispos para prover a todos no vale até que as plantações estivessem prontas para a colheita, mas poucos iam para a cama com o estômago cheio.20

No entanto, mesmo com a falta de comida, o assentamento se desenvolveu rapidamente. Mulheres e homens trabalhavam juntos para construir casas e tornar os arredores mais confortáveis. Os homens se aventuravam pelos cânions para cortar madeira e levá-la ao vale. Sem serrarias, cada tronco tinha que ser cortado à mão para fazer as tábuas. Os telhados eram feitos com varas e grama seca. Geralmente, as janelas eram feitas com papel besuntado em vez de vidro.21

Naquela época, as mulheres da Igreja continuavam a se reunir informalmente. Elizabeth Ann Whitney e Eliza Snow, antigas líderes da Sociedade de Socorro de Nauvoo, com frequência organizavam reuniões para as mães e também para as moças e as meninas. Assim como fizeram em Winter Quarters, as mulheres exerciam dons espirituais e fortaleciam umas às outras.22

Como outros santos, Jane e o marido, Isaac, trabalharam juntos para fazer do vale seu novo lar. O filho de Jane, Sylvester, tinha idade suficiente para ajudar nas tarefas domésticas,23 e sempre havia algo para se fazer. As crianças ajudavam as mães a colher ervas silvestres, cardos e outras raízes para aumentar suas provisões cada vez mais escassas. Os santos não podiam se dar ao luxo de desperdiçar comida. Quando uma vaca era abatida, eles comiam tudo o que dava para comer, da cabeça às patas.24

A neve começou a cair no início de novembro, cobrindo o topo das montanhas como que de um pó branco. As temperaturas caíram no vale e os santos se prepararam para o primeiro inverno.25


Em um dia nublado no final de novembro, os apóstolos em Winter Quarters se reuniram para falar sobre Oliver Cowdery. A maioria deles o conhecera em Kirtland e ouvira seu poderoso testemunho do Livro de Mórmon. Com David Whitmer e Martin Harris, ele ajudara o profeta Joseph Smith a chamar alguns daqueles apóstolos para o Quórum dos Doze e lhes ensinara suas responsabilidades. Phineas Young assegurava que Oliver estava comprometido com Sião e que tinha o coração enternecido em relação à Igreja.26

Com Willard Richards atuando como secretário, os apóstolos elaboraram uma carta para Oliver. “Venha”, escreveram, “e volte para a casa de nosso Pai, de onde você saiu”. Descrevendo Oliver como um filho pródigo amado, eles o convidaram a ser rebatizado e ordenado novamente ao sacerdócio.

“Se deseja servir a Deus de todo o coração e se tornar participante das bênçãos do reino celestial, faça isso”, declararam. “Sua alma se encherá de regozijo.”

Eles deram a carta a Phineas e pediram que a entregasse pessoalmente.27


Pouco tempo depois, Brigham se reuniu com oito dos apóstolos na casa de Orson Hyde, que retornara da missão na Inglaterra. “Quero uma decisão”, disse ele. “Da época em que eu estava na cidade do Grande Lago Salgado até agora, os sussurros que ouço do Espírito são de que a Igreja deve ser organizada agora.” Ele testificou que o quórum precisava apoiar uma Primeira Presidência para governar a Igreja, de forma que os apóstolos pudessem liderar os esforços missionários no exterior.

“Quero que todo homem vá com a convicção do Senhor. Basta aprender o caminho que o Senhor quer que tomem e seguir por ele”, ele aconselhou. “Um élder que não segue os sussurros do Espírito prejudica a si mesmo.”

Heber Kimball e Orson Hyde concordaram que estava na hora de reorganizar a Primeira Presidência. Porém, Orson Pratt novamente expressou sua preocupação. Ele temia que a Primeira Presidência não buscasse o conselho do Quórum dos Doze e que os Doze se submetessem muito rapidamente à autoridade da presidência, aceitando suas decisões antes de pensar nas questões por eles mesmos. A Igreja estava funcionando muito bem sob a liderança dos Doze, ele argumentou. Por que mudar agora?28

Brigham queria ouvir a opinião de cada um dos membros do quórum presentes. Quando chegou a vez de Wilford Woodruff, ele compartilhou suas dúvidas sobre a criação de uma Primeira Presidência, mas expressou sua disposição de alinhar sua vontade com a de Deus. “Nosso presidente parece estar agindo pelo Espírito”, disse. “Ele está posicionado entre nós e Deus, e eu, por outro lado, não quero impedi-lo de fazer a vontade do Pai.”29

“Não quero ver esse quórum dividido”, disse George A. Smith em seguida. Ele queria adiar sua decisão até ter certeza da vontade de Deus, mas estava aberto a mudanças. “Se for a vontade do Senhor que isso seja feito”, declarou ele, “vou adequar minha opinião”.

“Meus sentimentos são exatamente como os seus”, disse Brigham. “Como você, não quero que nossos sentimentos fiquem divididos ou dissociados.” Ainda assim, ele conhecia a vontade do Senhor. “Ouço os sussurros do Espírito como o ribombar de sete trovões”, declarou ele. “Deus nos trouxe até aqui e agora temos que fazer isso.”30

Amasa Lyman e Ezra Benson, os dois apóstolos mais novos, concordaram com ele. “Quero ajudar o Quórum dos Doze”, disse Ezra, “e pretendo apoiar o irmão Brigham”. Ele se comparou a uma máquina em um moinho, sempre pronta a realizar a sua função. Disse que estava perfeitamente disposto a fazer com que a Primeira Presidência o liderasse como o Senhor quisesse.

“Amém!”, disseram vários apóstolos.

Orson Pratt ficou de pé. “Não penso que devemos agir como máquinas”, disse ele. “Se formos governados sempre dessa maneira, não teremos o menor espaço para analisar qualquer assunto nesse contexto.”31

“É importante agora organizar a Igreja”, Brigham disse a Orson. “O que fizemos até agora foi um mero remendo perto do que precisa ser feito daqui para frente. Se você discordar, não conseguiremos fazer nada.”32

Todos na sala ficaram pensando em silêncio sobre o que Brigham dissera, e o Espírito Santo foi derramado sobre os apóstolos. Orson sabia que o que Brigham dissera era verdade.33 Os apóstolos colocaram a questão da reorganização em votação, e cada membro do quórum levantou a mão para apoiar Brigham Young como presidente de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

“Sugiro que o irmão Young indique seus dois conselheiros hoje à noite”, disse Orson.34


Três semanas mais tarde, em 27 de dezembro de 1847, os cerca de mil santos que viviam nos assentamentos ao longo do rio Missouri se reuniram para uma conferência especial. Eles construíram um tabernáculo de toras para a ocasião no lado leste do rio, em um lugar mais tarde chamado Kanesville. O prédio era maior do que qualquer cabana na área, mas não tinha lugar para todos que quisessem participar.

No interior, os santos sentaram lado a lado em bancos de madeira. Apesar de o inverno ter sido rigoroso até o momento, quando os santos chegaram ao tabernáculo de toras, o clima ficou excepcionalmente agradável. No dia anterior, Heber Kimball prometera que, se participassem da reunião, eles teriam um dos melhores dias de todos os tempos e um fogo que nunca se extinguiria seria aceso.35

Em uma plataforma na frente da sala, os apóstolos se sentaram com o sumo conselho de Winter Quarters. A reunião começou com um hino e uma oração, seguidos pelas mensagens de alguns dos apóstolos e de outros líderes da Igreja. Orson Pratt falou sobre a importância da Primeira Presidência.

“Chegou a hora em que as mãos dos Doze devem ser liberadas para ir aos confins da terra”, disse Orson, agora certo da vontade do Senhor. “Se não há uma Primeira Presidência, os Doze ficam confinados demais em um só lugar.” A reorganização da presidência, ele testificou, permitiria que a Igreja voltasse a atenção para as partes distantes da Terra, onde milhares de pessoas talvez estivessem à espera do evangelho.36

Depois das mensagens, foi proposto que Brigham Young fosse apoiado presidente da Igreja. Os santos levantaram a mão em unanimidade para apoiá-lo. Tomando a palavra, Brigham propôs que Heber Kimball e Willard Richards fossem apoiados como seus conselheiros.

“Este é um dos dias mais felizes da minha vida”, disse ele aos santos. O caminho à frente não seria fácil, mas, como líder dos santos, ele se dedicaria completamente a cumprir a vontade do Senhor.

“Vou fazer o que é certo”, prometeu. “O que Ele ordenar, assim farei.”37

Capítulo 7

Manter o bom ânimo

gaivotas comendo grilos

A primavera de 1848 trouxe dias mais quentes e poucas chuvas fortes para o Vale do Lago Salgado. Os telhados tinham vazamento e o chão se tornou úmido e lamacento. Havia serpentes deslizando pelas cabanas, pegando os adultos desprevenidos e aterrorizando as crianças. Minúsculos camundongos, com dentes tão afiados quanto agulhas, corriam pelo piso das cabanas e roíam sacos de alimentos, arcas e mangas de casacos. Às vezes, à noite, os santos acordavam assustados quando os roedores passavam correndo por cima deles.1

Um dos homens mais idosos do vale era John Smith, que tinha 66 anos. Ele era tio do profeta Joseph Smith e pai do apóstolo George A. Smith. Depois de ser batizado em 1832, John serviu no sumo conselho de Kirtland e presidiu as estacas de Missouri e Illinois. Servia então como presidente da Estaca Salt Lake, sendo, portanto, responsável pelo bem-estar do assentamento.2

Com a saúde debilitada, John enfrentou seus novos deveres com a ajuda de seus conselheiros mais jovens, Charles Rich e John Young, e um recém-formado sumo conselho.3 Como presidente de estaca, John supervisionou o planejamento da cidade, a distribuição de terras e os projetos públicos de construção.4 A doença às vezes o impedia de comparecer às reuniões do conselho, mas ele estava ciente de tudo o que acontecia no vale e agia rapidamente para solucionar os problemas.5

Em cartas para Brigham, John escreveu de modo esperançoso a respeito dos santos de Salt Lake City. “Levando em consideração todas as circunstâncias, prevalecem grande união e harmonia em nosso meio”, comentou ele. Por todo o assentamento, as pessoas estavam plantando ou fazendo mesas, cadeiras, camas, banheiras, batedeiras de manteiga e outros utensílios domésticos. Muitas famílias já tinham cabanas dentro do forte ou em seus arredores. Nos campos, ao longo dos riachos e das valas de irrigação, o trigo de inverno tinha crescido, e muitos hectares tinham sido plantados em preparação para o verão.6

Mas John também se expressou abertamente sobre as dificuldades enfrentadas na cidade. Muitos santos já tinham ficado descontentes com a vida no vale e partido para a Califórnia. Naquele inverno, um grupo de índios que tinha caçado por muito tempo no vale de Utah em busca de alimento matou alguns bois dos santos. Isso quase resultou em violência, mas os santos e os índios negociaram a paz.7

Uma grande preocupação, porém, era a escassez de alimentos. Em novembro, John tinha autorizado uma companhia de homens a viajar até a costa da Califórnia para comprar gado, grão e outros suprimentos. Mas a companhia ainda não havia retornado, e o estoque de alimentos estava terminando. Havia quase 1.700 santos para alimentar, e milhares estavam a caminho. Uma colheita malsucedida poderia levar o assentamento à beira da morte por inanição.8

John tinha fé no plano do Senhor para o vale, confiando que Ele, no final, providenciaria o sustento de Seu povo.9 Mas a vida em Salt Lake City continuava frágil. Se acontecesse algo que abalasse essa tênue paz e estabilidade, os santos estariam em sérios apuros.


“Ouro!”, gritava Sam Brannan, correndo pelas ruas de San Francisco. “Ouro encontrado no rio American!” Agitava o chapéu no ar e erguia uma garrafinha, cujo conteúdo arenoso brilhava ao sol. “Ouro!”, gritava ele. “Ouro!”10

Por várias semanas, Sam e os santos da Califórnia tinham ouvido rumores de que haviam descoberto ouro num lugar chamado Sutter’s Mill junto ao rio American, a uns 200 quilômetros a nordeste de San Francisco. Mas ele não soube se os rumores eram verdadeiros até falar com um grupo de veteranos do Batalhão Mórmon que estivera presente quando foi descoberto ouro. Logo foi visitar pessoalmente o local e encontrou homens agachados na água rasa, mergulhando cestos e panelas no leito argiloso do rio. Em apenas cinco minutos, viu alguém tirar o equivalente a oito dólares em ouro do rio.11

San Francisco foi ao delírio ao ver o ouro em pó na garrafa de Sam. Os homens largaram o emprego, venderam as terras e correram para o rio. Sam, enquanto isso, ficou maquinando como poderia fazer fortuna com isso. Havia ouro na Califórnia, mas ele não precisaria adotar o árduo e frequentemente infrutífero trabalho de cavar ouro para ficar rico. Tudo que precisava era vender pás, panelas e outros suprimentos para os caçadores de ouro. A demanda por esses materiais sempre seria grande enquanto houvesse uma febre do ouro.12

Tal como muitos outros santos californianos, Addison Pratt explorou um lugar chamado Mormon Island em busca de ouro enquanto esperava a neve derreter na trilha que cruzava as montanhas de Sierra Nevada. Para obter mais dinheiro, Sam convenceu os veteranos a lhe dar 30 por cento de todo o ouro descoberto na região, supostamente para comprar gado para os santos do Vale do Lago Salgado.

Addison duvidava que o dinheiro de Mormon Island chegasse a ser usado para ajudar a Igreja. Nos meses em que morou em San Francisco, Addison tinha observado que Sam, a despeito de toda a sua declaração de fé e devoção, estava cada vez mais interessado em promover a si mesmo e a ficar rico do que no reino de Deus.

Felizmente, Addison não teve que esperar muito — quatro dias depois, ficou sabendo que as passagens nas montanhas estavam livres. Conseguiu um carroção e uma junta de bois para puxá-lo e partiu em seguida para o vale, acompanhado por cerca de 50 santos do navio Brooklyn e do Batalhão Mórmon.13


Quando Harriet Young chegou ao Vale do Lago Salgado com a companhia de vanguarda, ela contemplou o novo local de reunião com desânimo. Parecia árido, seco e solitário. “Por mais cansada que eu esteja”, disse ela, “preferiria seguir mil milhas adiante a permanecer num lugar desolado como este”.14 Seu marido, Lorenzo, sentia o mesmo. “Não consigo descrever o que senti”, escreveu ele em seu diário. “Tudo parecia sombrio, e me senti desconsolado.”15

Harriet e Lorenzo construíram uma casa perto do quarteirão do templo durante o inverno moderado e se mudaram para fora do forte apinhado. Assim que chegou o mês de março, plantaram trigo, aveia, milho, batatas, feijão e ervilhas para alimentar a família. Poucas semanas depois, houve uma forte geada no vale, danificando as plantações e ameaçando o sucesso da colheita. A geada continuou pelo mês de maio, mas, trabalhando juntos, a família Young conseguiu salvar a maior parte de sua plantação.16

“Ainda mantemos o bom ânimo, esperando pelo melhor”, escreveu Lorenzo em seu diário. Todos no vale estavam ficando sem provisões e precisavam de uma colheita bem-sucedida para reabastecer o suprimento de comida.17

Em 27 de maio de 1848, porém, uma enorme quantidade de grilos sem asas desceu das montanhas até o vale, invadindo o quintal da família Young a uma velocidade alarmante. Os grilos eram grandes e negros, com forte couraça e longas antenas. Em questão de minutos, consumiram todo o canteiro de feijões e ervilhas da família Young. Harriet e Lorenzo tentaram combater os grilos com vassouras, mas eles eram demasiadamente numerosos.18

Os insetos logo se espalharam por toda parte, atacando vorazmente as plantações dos santos, deixando apenas talos secos onde houvera milho ou trigo. Os santos fizeram tudo o que puderam imaginar para conter o avanço dos grilos. Esmagaram-nos. Queimaram-nos. Tentaram bater potes e panelas, esperando que o ruído os afastasse. Cavaram valas e tentaram afogá-los ou lhes bloquear o caminho. Oraram pedindo ajuda. Nada parecia funcionar.19

À medida que a destruição prosseguia, o presidente John Smith avaliou os danos. A geada e os grilos tinham arrasado campos inteiros de plantações, e havia então mais santos pensando seriamente em deixar o vale. Um de seus conselheiros lhe pediu que escrevesse imediatamente a Brigham. “Diga-lhe que não traga as pessoas para cá”, disse o conselheiro, “porque, se o fizer, elas vão morrer de fome”.

John ficou calado por alguns momentos, imerso em pensamentos. “O Senhor nos guiou até aqui”, disse ele por fim, “e não foi para que morramos de fome”.20


Enquanto isso, em Winter Quarters, Louisa Pratt achava que não conseguiria pagar a viagem até o Vale do Lago Salgado naquela primavera, mas Brigham Young lhe disse que ela tinha de ir. As mulheres de Winter Quarters tinham prometido a ela que o Senhor a reuniria com o marido no vale. E no outono anterior, Addison tinha escrito para ela e para Brigham sobre seu plano de partir para Salt Lake City naquela primavera. Ele ficaria desapontado se sua família não estivesse lá.21

“Espero ver minha família”, escrevera Addison. “Foi uma separação longa e dolorosa para mim, mas o Senhor me trouxe até aqui e ainda estou vivendo na esperança de vê-los.”22

Brigham pediu a Louisa que providenciasse tudo o que pudesse para sustentar sua família, prometendo ajudá-la com o restante. Ela começou a vender as coisas de que não mais precisava, orando o tempo todo para ter forças e coragem para fazer a jornada. Tendo ficado separados por cinco anos, Louisa estava ansiosa para rever Addison. Cinco anos era um tempo excepcionalmente longo para uma missão na Igreja. A maioria dos élderes não ficava mais do que um ou dois anos por vez. Ela se perguntava se ele reconheceria a família. Ellen, Frances, Lois e Ann tinham crescido muito na ausência dele. Somente Ellen, a mais velha, tinha fortes recordações do pai. Ann, a caçula, não se lembrava nem um pouco dele.

Sem dúvida as filhas não o reconheceriam a ponto de diferenciá-lo de qualquer outro homem caminhando pelas ruas. E será que a própria Louisa o reconheceria?23

Louisa conseguiu vender seus pertences por um bom preço. Ciente da pobreza dela e dos grandes sacrifícios que ela e Addison tinham feito, Brigham equipou o carroção dela e o supriu com 500 quilos de farinha e outra junta de bois. Também contratou um homem para conduzir a junta e deu a ela o equivalente a 50 dólares em artigos comprados na loja, inclusive roupas novas para ela e as filhas.24

Brigham estava pronto para liderar a companhia para o Oeste na primeira semana de junho. A maioria das esposas e dos filhos estava emigrando com ele. Ao mesmo tempo, Heber Kimball estava partindo de Winter Quarters com uma companhia de cerca de 700 pessoas, inclusive sua família. Willard Richards seguiria um mês mais tarde, com uma companhia de quase 600 pessoas.25

Embora tivesse um bom suprimento para a jornada, Louisa ainda receava a longa estrada que tinha pela frente. No entanto, mostrou um semblante alegre, entregou sua cabana para uma vizinha e partiu para o Oeste. Sua companhia viajava com os carroções emparelhados de três em três, numa fila que se estendia até onde a vista alcançava. A princípio, Louisa não sentiu muita alegria na viagem. Mas logo se agradou com a vista das verdes pradarias, das coloridas flores silvestres e das pequenas áreas de terra ao longo da margem dos rios.

“A tristeza em minha mente foi aos poucos se dissipando”, relembrou ela, “e não havia mulher mais feliz em toda a companhia”.26


No início de junho, os grilos ainda estavam devorando as plantações no Vale do Lago Salgado. Muitos santos jejuavam e oravam pedindo uma salvação, mas outros estavam começando a se perguntar se deviam largar o trabalho, carregar os carroções e abandonar o assentamento. “Parei de construir meu moinho”, disse um homem a John Smith. “Não haverá grãos para serem moídos.”

“Não ficaremos desamparados”, disse John com firmeza. “Vá em frente com seu moinho e, se o fizer, você será abençoado, e ele será uma fonte inesgotável de alegria e renda para você.”27

Ainda assim, os santos continuavam a falar em se mudar para a Califórnia. Levava dois meses para chegarem à baía de San Francisco de carroção, mas, para alguns, partir em outra longa jornada parecia melhor do que morrer lentamente de fome.28

O conselheiro de John, Charles Rich, concordava com os que desejavam partir. Se os grilos continuassem a devorar as plantações, os santos teriam pouco para comer. Na situação em que estavam, alguns santos mal sobreviviam comendo raízes, talos de cardo e sopa de couro de boi.

Num domingo, Charles convidou os santos para uma reunião. Os céus estavam límpidos, mas havia um ar solene na congregação. Nos campos próximos, os grilos se apegavam tenazmente aos talos de trigo e milho, devorando as plantações. Charles subiu num carroção e ergueu a voz. “Não queremos separá-los de seus carroções e suas juntas de bois”, disse ele, “porque podemos precisar deles”.

Enquanto Charles falava, a multidão ouviu um ruído estridente vindo do céu. Olhando para cima, viram um pequeno bando de gaivotas provenientes do Grande Lago Salgado sobrevoando o vale. Poucos minutos depois, um grande bando desceu do céu e pousou nos campos e nas hortas dos santos. A princípio, as aves pareciam estar consumindo o restante da plantação, terminando a devastação iniciada pela geada e pelos grilos. Mas, quando os santos olharam mais de perto, viram que as gaivotas estavam devorando os grilos, regurgitando o que não conseguiam digerir e então voltando para comer mais.29

“As gaivotas vieram em grandes bandos do lago e varreram os grilos pelo caminho”, relatou John Smith a Brigham em 9 de junho. “Parece que a mão do Senhor está a nosso favor.”30 Havia mais grilos do que as gaivotas conseguiam comer, mas as aves mantiveram os insetos sob controle. Os santos consideraram as gaivotas como anjos enviados por Deus e agradeceram ao Senhor por ter respondido a suas orações a tempo de salvar suas plantações prejudicadas e replantar seus campos.31

“Os grilos ainda são muito numerosos e continuam devorando avidamente”, comentou John duas semanas depois, “mas, em meio às gaivotas, nossos esforços e o crescimento de nossas plantações, vamos colher muitos grãos a despeito de tudo”. A colheita não seria tão grande como tinham esperado, mas ninguém no vale morreria de fome. E a companhia que John tinha enviado para a Califórnia em novembro retornou com quase 200 cabeças de gado, várias frutas e algumas sementes de cereais.

“Estamos adquirindo uma reserva de conhecimento”, relatou John com satisfação, “e em sua maioria as pessoas se sentem animadas e satisfeitas”.32


Após dois meses de jornada, Louisa e as filhas pararam em Independence Rock, um imenso monólito de granito que se assemelha a uma tartaruga ao lado do rio Sweetwater. Escalando a rocha com dificuldade até seu topo, viram ali o nome de viajantes gravados ou pintados na pedra. Ao longo da trilha, sem ninguém além deles mesmos como companhia, Louisa com frequência imaginara que os santos estavam sozinhos naquele grande deserto. Mas os nomes, tantos e tão pouco familiares, fizeram-na lembrar de que não eram os primeiros a passar por aquele caminho — e com toda a probabilidade tampouco os últimos.

Sentiu-se menos abandonada, então, embora sua família tivesse sido expulsa de Nauvoo. Tinha recebido bênçãos em seu exílio. Percebeu que, se os santos não tivessem fugido para o deserto, não teriam visto tanta beleza que havia na natureza.

Do lugar onde estava, Louisa via claramente toda a região a sua volta. A companhia de Brigham tinha acampado no sopé da rocha, com os carroções dispostos em círculo, como de costume. Além deles, o rio Sweetwater serpeava como uma cobra através das planícies, com sua superfície azul prateada desaparecendo por trás de Devil’s Gate, um imponente par de rochedos a oito quilômetros a Oeste.

Ela se lembrou de que Deus havia criado um belo mundo para Seus filhos desfrutarem. “Todas as coisas que provêm da terra”, dizia uma das revelações, “são feitas para o benefício e uso do homem, tanto para agradar aos olhos como para alegrar o coração”.

Louisa e outros membros da companhia gravaram o nome na Independence Rock, depois seguiram por uma fenda até uma estreita passagem que os levou até uma fonte natural de água potável e gelada. Beberam muito, gratos por não ser a água barrenta do rio que vinham consumindo desde que partiram de Winter Quarters. Satisfeitos, deixaram a fonte e voltaram para o acampamento.

Nas semanas seguintes, Louisa e as filhas viajaram por altos desfiladeiros, atoleiros profundos e bosques de salgueiros. As filhas acompanhavam o ritmo, e cada uma delas ia ficando cada vez mais independente, não sendo um fardo para ninguém. Certa manhã, Frances, de 13 anos, acordou e fez uma fogueira antes de qualquer outra pessoa no acampamento. As pessoas logo foram até o local de acampamento delas para elogiá-la e pegar uma chama para suas próprias fogueiras.

“Movemo-nos lentamente, avançando um pouquinho a cada dia”, escreveu Louisa em seu diário. “Sinto agora que conseguiria andar mais mil quilômetros.”33

Capítulo 8

Nesta época de escassez

colmeia

Louisa Pratt e as filhas chegaram ao Vale do Lago Salgado com a companhia de carroções de Brigham Young na tarde de 20 de setembro de 1848. Tinham pensado a manhã inteira em comer verduras e legumes frescos da terra prometida e, finalmente, depois de ser cumprimentadas por velhos amigos e apertado a mão deles, sentaram-se para se banquetearem com o milho colhido no vale.

Como a companhia de Addison ainda não havia chegado da Califórnia, Mary Rogers, esposa de um homem que tinha ajudado Louisa em Winter Quarters, convidou a família a se hospedar com ela. Louisa não conhecia Mary muito bem, mas aceitou com alegria o convite. Mary estava prestes a dar à luz, dando a Louisa e às filhas, enquanto esperavam Addison, a oportunidade de ajudá-la e de retribuir a bondade que ela havia demonstrado para com a família.

Passaram-se dias sem notícia de Addison. Mary teve seu bebê, e Louisa cuidou dela e da criança noite e dia. Então, em 27 de setembro, alguns veteranos do Batalhão Mórmon entraram na cidade a cavalo, com a notícia de que Addison estava a um dia de viagem dali. As meninas ficaram muito animadas. “Disseram-me que tenho um pai, mas não o conheço”, disse Ann, de 8 anos, a suas amigas. “Não é estranho ter um pai e não o conhecer?”

A manhã seguinte despontou com um céu límpido e claro, e Louisa foi até seu carroção se vestir para a reunião.1 Enquanto Ellen, de 16 anos, estava de joelhos esfregando o chão da casa da família Rogers, um amigo da família entrou na cabana. “Ellen”, disse ele, “aqui está seu pai”.

Ellen se levantou rapidamente enquanto um homem queimado de sol entrava na sala. “Ora, pa”, disse Ellen, pegando-lhe as mãos, “você voltou?” Depois de mais de cinco anos, ela quase não o reconheceu.

Logo, Frances e Lois entraram correndo na sala, e a aparência desgrenhada de Addison as surpreendeu. Chamaram Ann, que estava brincando fora da casa. Ela entrou na cabana, olhou para Addison cautelosamente, mantendo as mãos às costas. “Este é o pa”, disse uma das irmãs. Tentaram fazer com que Ann desse a mão para ele, mas ela correu para fora da sala.

“Não é não”, gritou ela.2

Louisa entrou logo em seguida e viu o rosto abatido de Addison devido à viagem. Ele quase parecia um estranho, e ela mal sabia o que dizer. Sentiu-se tomada de tristeza ao se dar conta do quanto sua família havia mudado na ausência dele. Nada, a não ser a edificação do reino de Deus, pensou ela, poderia justificar uma separação tão longa.3

Addison também se sentiu dominado pela emoção. Suas filhas já não eram as menininhas das quais ele se lembrava — especialmente Ann, que estava com 3 anos de idade quando ele partiu. A voz de Louisa tinha mudado devido à perda de dentes causada pelo escorbuto em Winter Quarters. Addison se sentia um estranho e ansiava por voltar a conhecer sua família.

Na manhã seguinte, Ann ainda não tinha falado com Addison, por isso ele a levou para fora até seu carroção, abriu uma arca e empilhou várias conchas e outras curiosidades ao lado dela. Ao colocar cada objeto na pilha, ele contava de onde provinha e que ele o pegara especialmente para ela. Depois derramou ameixas cristalizadas, uvas passas e balas de canela em cima da pilha.

“Acredita agora que sou seu pai?”, perguntou ele.

Ann ficou olhando para os presentes e depois de volta para ele. “Acredito, sim!”, exclamou ela com alegria.4


No mês seguinte, Oliver Cowdery subiu numa plataforma para discursar para os santos numa conferência realizada perto de Kanesville, na margem ocidental do rio Missouri. Ele não reconheceu muitas das pessoas que tinha diante de si. A Igreja crescera rapidamente desde que ele saíra dela uma década antes. Seu cunhado, Phineas Young, era uma das poucas pessoas que ele conhecia na conferência.

Em parte, foi por causa da determinação de Phineas que Oliver se reuniu com os santos nos assentamentos do rio Missouri.5 Mas Oliver também tinha concluído que a nova igreja de David Whitmer não tinha a devida autoridade. O sacerdócio estava com A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

Sentado perto de Oliver na plataforma estava Orson Hyde, o apóstolo presidente em Kanesville. Quase quatorze anos antes, Oliver tinha ordenado Orson como um dos primeiros apóstolos destes últimos dias. Tal como Oliver, Orson tinha saído da Igreja no Missouri, mas voltou logo depois e se reconciliou pessoalmente com Joseph Smith.6

Depois de organizar seus pensamentos, Oliver discursou para os santos. “Meu nome é Cowdery, Oliver Cowdery”, disse ele. “Escrevi, com minha própria pena, todo o Livro de Mórmon, com exceção de algumas páginas, conforme foi ditado pela boca do profeta, à medida que ele o traduzia pelo dom e poder de Deus.” Ele testificou que o Livro de Mórmon era verdadeiro e que continha os princípios da salvação. “Se caminharem por sua luz e obedecerem a seus preceitos”, declarou ele, “vocês serão salvos no reino eterno de Deus”.

Falou depois sobre a restauração do sacerdócio e o chamado profético de Joseph Smith. “Este santo sacerdócio foi conferido a muitos”, testificou ele, “e é tão bom e válido quanto se Deus o tivesse conferido Ele mesmo”.7

Ao falar para os santos, Oliver ansiava por ter as bênçãos do sacerdócio de novo em sua vida. Sabia que não poderia ocupar o mesmo cargo de autoridade que tivera na Igreja, mas isso não importava. Queria ser rebatizado e recebido de volta como humilde membro da Igreja de Jesus Cristo.

Duas semanas após a conferência, Oliver se reuniu com os líderes da Igreja no tabernáculo de toras, em Kanesville. “Por alguns anos, estive separado de vocês”, reconheceu ele. “Desejo agora voltar.” Ele sabia que o batismo era a porta para o reino de Deus e queria entrar por ela. “Sinto que posso voltar honrosamente”, disse ele.

Algumas pessoas, porém, questionaram a sinceridade de Oliver. Para elas, Oliver replicou: “Minha volta e meu humilde pedido para me tornar membro por meio do batismo é tudo que peço. Reconheço essa autoridade”.

Orson Hyde colocou em voto a decisão. “É proposto”, disse ele, “que o irmão Oliver seja recebido pelo batismo e que todas as coisas antigas sejam esquecidas”.

Os homens votaram unanimemente a favor de Oliver. Uma semana depois, Orson o batizou, acolhendo-o de volta ao redil do evangelho.8


Enquanto isso, em cidades e municípios do mundo inteiro, os rumores a respeito do ouro da Califórnia se espalharam como fogo no mato, seduzindo pessoas para longe de seu lar, seu emprego e sua família com a expectativa de riqueza fácil. No outono de 1848, milhares de pessoas — muitos deles rapazes — mudaram-se em grande número para a costa da Califórnia, esperando ficar ricos.9

Sabendo que o ouro tentaria os santos empobrecidos, Brigham Young abordou a questão assim que voltou a Salt Lake City. “Se formos para San Francisco a fim de cavar pepitas de ouro”, disse ele aos santos, “isso vai nos arruinar”. Aconselhou-os a permanecerem na terra que o Senhor lhes dera. “Falar em sair deste vale por qualquer coisa”, disse ele, “é como vinagre em meus olhos”.10

Decidido a permanecer no vale, não importando o que viesse a acontecer, Brigham começou a colocar a Igreja e a cidade em ordem. Na conferência de outubro de 1848, os santos novamente apoiaram ele, Heber Kimball e Willard Richards como a Primeira Presidência da Igreja.11 Pouco tempo depois, ele voltou a formar o Conselho dos Cinquenta para administrar a cidade enquanto os santos enviavam uma petição ao congresso dos Estados Unidos para o estabelecimento de um governo territorial na região.

Como parte do tratado que deu fim à recente guerra com o México, os Estados Unidos tinham adquirido os territórios do norte do México. Em breve, colonizadores e políticos estavam planejando avidamente a criação de novos territórios e estados naquelas terras, pouco se importando com a situação dos povos nativos ou de antigos cidadãos mexicanos que moravam na região.

Querendo que os santos tivessem liberdade para governarem a si mesmos, Brigham e outros líderes da Igreja esperavam organizar um território no vale. No entanto, o estabelecimento de um território representava um risco. Ao contrário dos estados, que davam aos cidadãos o direito de eleger seus próprios líderes, os territórios dependiam do presidente dos Estados Unidos para a escolha de alguns dos mais importantes líderes governamentais. Se o presidente nomeasse líderes governamentais que fossem hostis à Igreja, os santos poderiam voltar a enfrentar perseguição.12

O Conselho dos Cinquenta se reuniu regularmente naquele inverno para discutir as necessidades dos santos e redigir sua petição ao congresso. O território que propunham cobria grande parte do vale e uma parte da costa sul da Califórnia — uma vasta área que proporcionava amplo espaço para novos assentamentos e um porto marítimo para auxiliar na coligação. Os santos deram ao território proposto o nome de “Deseret”, que era uma palavra do Livro de Mórmon que significava abelha, símbolo de trabalho árduo, industriosidade e cooperação.13

O conselho concluiu a petição ao congresso em janeiro, quando os moradores do Vale do Lago Salgado tremiam de frio, sob um inverno rigoroso.14 Em alguns lugares, os santos enfrentaram um metro de neve e ventos cortantes de gelar os ossos. A neve mais profunda nas montanhas dificultava a coleta de lenha. Os suprimentos de grãos estavam novamente diminuindo, e o gado estava morrendo de fome e frio. Alguns santos pareciam estar sobrevivendo com base apenas na fé. Outros falavam novamente em ir para o clima mais quente dos campos de ouro da Califórnia — com ou sem a bênção da Primeira Presidência.15

Em 25 de fevereiro de 1849, Brigham profetizou que os santos que permanecessem teriam sucesso e edificariam comunidades prósperas. “Deus me mostrou que este é o lugar para estabelecermos Seu povo”, testificou ele. “Ele vai amenizar o clima para benefício de Seus santos. Vai repreender a geada e a esterilidade do solo, e a terra vai se tornar frutífera.”

Aquele não era o momento para cavar ouro, disse Brigham aos santos. “É nosso dever pregar o evangelho, coligar Israel, pagar nosso dízimo e construir templos”, disse ele. A riqueza viria mais tarde.

“O maior temor que tenho em relação a este povo”, disse ele, “é que venham a enriquecer neste país, esquecer-se de Deus, prosperar, abandonar a Igreja e ir para o inferno”.16

“Não estou preocupado com sua pobreza”, concordou Heber Kimball num sermão para os santos, pouco tempo depois. Profetizou que em breve os artigos seriam mais baratos no vale do que nas grandes cidades do leste dos Estados Unidos. “Se forem fiéis”, prometeu ele, “vocês terão todos os desejos de seu coração”.17


Naquele inverno, Eliza Partridge Lyman, de 28 anos, morava em um pequeno quarto de toras, no forte, com seu filho bebê; sua mãe viúva, Lydia; suas irmãs Emily, Caroline e Lydia; seu irmão Edward Partridge Jr.; e às vezes com o marido, o apóstolo Amasa Lyman, que dividia seu tempo entre ela e as outras esposas dele. Francis Lyman, de 9 anos, o filho mais velho de Amasa de sua primeira esposa, Louisa Tanner, também morava no quarto de modo a poder frequentar a escola do forte.18

Quase 4 mil santos tinham se estabelecido no vale, e muitos deles ainda moravam em carroções e tendas.19 O quarto de Eliza proporcionava algum abrigo contra os ventos implacáveis mesmo que o telhado vazasse quando chovia ou nevava. Mas não oferecia nenhuma proteção contra as enfermidades e a fome. Naquela estação, o filho de Eliza e o irmão dela contraíram coqueluche, e a cada dia seu estoque de alimentos se reduzia.20

A escassez era um problema em toda parte, e os santos tinham que comer pouco se quisessem sobreviver ao inverno. Os timpanogos, seus vizinhos utes que moravam no vale Utah próximo, também estavam famintos. A chegada dos santos tinha reduzido os recursos naturais da região, especialmente os peixes, umas das fontes de alimento dos timpanogos. Embora os santos e os timpanogos tivessem tentado manter uma boa interação, alguns timpanogos logo começaram a atacar o gado dos santos para aliviar a fome.21 Ansioso para manter a paz, Brigham pediu aos santos que não procurassem se vingar, mas que, em vez disso, pregassem o evangelho aos índios.22

O meio-irmão de Eliza, Oliver Huntington, às vezes trabalhava como tradutor e explorador entre os utes. À medida que os ataques persistiram, Little Chief, um líder dos timpanogos, pediu a Oliver e Brigham que punissem os ladrões antes que suas ações voltassem os santos contra seu povo. Brigham atendeu ao pedido enviando Oliver e uma companhia armada ao vale Utah para parar os ataques.

Com a ajuda de Little Chief, a companhia rastreou o bando de ladrões, cercou-os e ordenou que se rendessem. O bando se recusou a se entregar e, em vez disso, atacou a companhia. Uma luta armada se seguiu, e a companhia matou quatro dos ladrões.23

Essa luta parou com os furtos, mas a fome e a escassez continuaram. “Assamos nossa última farinha hoje e não temos qualquer perspectiva de conseguir mais até a colheita”, escreveu Eliza em seu diário, em 8 de abril. Nessa época, a Primeira Presidência chamou o marido dela para servir missão em San Francisco a fim de supervisionar os ramos da Califórnia e coletar o dízimo. Ele então lideraria uma companhia de santos da Califórnia até o vale, no outono.24

Amasa partiu cinco dias depois, pobre demais para comprar mais farinha para sua família. Em 19 de abril, Eliza e alguns de seus familiares se mudaram para fora do forte e estabeleceram um lugar para morar em tendas e carroções, num lote da cidade. Ela fez pavios para velas e as vendeu para comprar milho e alimentos, que dividia com os muitos da grande família Lyman.25

Outras pessoas a ajudavam também. Sua irmã Emily, que era esposa de Brigham Young, levou sete quilos de farinha para a família depois que Brigham ficou sabendo que eles estavam sem pão. Em 25 de abril, Jane Manning James, que conhecera Eliza e Emily quando as duas irmãs moravam na Mansão Nauvoo como esposas plurais de Joseph Smith, deu a Eliza um quilo de farinha — metade do que Jane tinha para si mesma.26

Eliza fez mais pavios de vela, planejou fazer uma horta e mandou plantar árvores frutíferas em seu lote de terra. O vento e as tempestades de neve continuaram a assolar o vale, continuando no mês de maio, e a tenda de Eliza pegou fogo enquanto ela visitava a mãe. Mas, no final do mês, ela encontrou motivo de esperança devido às plantações dos santos que amadureciam.

“Vi uma espiga de trigo”, escreveu ela no diário, “o que parece encorajador nesta época de escassez”.27


Ao longo do rigoroso inverno de 1848–1849, Louisa Pratt viu o marido se debater para se ajustar à vida após a missão. Muito havia mudado no vale enquanto ele estivera fora. Os santos tinham recebido a investidura do templo, aceitado a doutrina do casamento eterno e da exaltação, e criado novos relacionamentos de convênio com Deus e uns com os outros. O casamento plural, praticado em sigilo entre os santos, era também algo novo para Addison.28

Às vezes Addison discordava de Louisa sobre os princípios recém-revelados. O que era familiar para ela parecia estranho para ele. Ele também se incomodava com o fato de que os santos do vale não seguiam estritamente as advertências da Palavra de Sabedoria contra o uso de bebidas quentes e fumo. Ainda assim, Louisa estava feliz por tê-lo em casa. Ele frequentava as reuniões de domingo com a família e servia como presidente de seu quórum dos setenta.29

A família Pratt passou o inverno no forte. A irmã e o cunhado de Louisa, Caroline e Jonathan Crosby, moraram com eles até conseguirem uma casa própria. Addison trabalhava para sustentar a família e dava aulas de taitiano para os missionários em perspectiva.30

Quando chegou a primavera, a Primeira Presidência e o Quórum dos Doze chamaram Addison e sua família para servir nas ilhas do Pacífico, com mais 11 missionários, inclusive seis famílias. A família Pratt ficou entusiasmada para viajar e se preparou para partir após a colheita de outono. Em 21 de julho, Addison recebeu a investidura no topo do monte Ensign Peak, que os líderes da Igreja tinham consagrado para esse propósito na ausência de um templo. A família começou então a se desfazer dos bens de que não precisava.31

Milhares de caçadores de ouro dos estados do Leste, enquanto isso, dirigiram-se rapidamente para as Montanhas Rochosas, a caminho da Califórnia. Logo, Salt Lake City se tornou um lugar favorito para eles descansarem e comprarem novos suprimentos antes de prosseguirem rumo aos campos de ouro. Muitos dos caçadores de ouro eram jovens fazendeiros, trabalhadores ou comerciantes. Muitos deles nunca tinham se afastado muito de sua cidade natal, muito menos cruzado todo um continente.32

A chegada deles cumpriu a profecia de Heber Kimball bem antes do que qualquer pessoa poderia esperar.33 Os caçadores de ouro tinham farinha, açúcar, mantimentos de toda espécie, sapatos, roupas, tecidos e ferramentas. Desesperados por legumes e verduras frescos, carroções mais leves e animais de carga, muitos dos caçadores de ouro pararam no forte para fazer trocas de mercadorias. Com frequência, vendiam a preços bem baixos mercadorias que eram difíceis para os santos encontrarem. Às vezes, simplesmente descartavam ou doavam artigos que eles estavam cansados de carregar.34

Os caçadores de ouro impulsionaram a economia de Salt Lake City, mas também exauriram as terras de pasto que ficavam entre o Lago Salgado e a Califórnia quando partiram, tornando a viagem por terra quase impossível no final da estação. E circulavam histórias de que homens perigosos atacavam os viajantes, tornando a estrada insegura para as famílias.35 As histórias não amedrontaram Louisa, mas Brigham se preocupava com a segurança das famílias que partiam, e logo os líderes da Igreja decidiram enviar Addison sem Louisa e os filhos.

A família ficou desolada. “Pa não estará tão seguro”, insistiu Frances. “É mais provável que os ladrões ataquem um homem solitário e roubem sua junta de bois do que se ele estiver com a família.”

“Pobre criança”, disse Louisa, “pouco sabe a respeito de ladrões”.

Louisa sabia que o evangelho exigia sacrifícios e, se alguém perguntasse a ela, diria que estava perfeitamente disposta a deixar Addison partir. Mas ela achava que a família não estava em condições de ser separada tendo se passado apenas um ano após sua reunião.36

Brigham planejava adiar a missão até a primavera, quando os pastos estariam melhores e menos caçadores de ouro estariam na estrada. Naquele outono, porém, um comboio de carroções que passava por Salt Lake City contratou o capitão Jefferson Hunt, um veterano do Batalhão Mórmon, para conduzi-los em segurança até a Califórnia pela rota menos trilhada a Sudoeste. Quando Brigham ficou sabendo da companhia, pediu a Addison e dois missionários que fossem com eles auxiliar o capitão Hunt e depois embarcassem para as ilhas assim que chegassem à Califórnia.37

Louisa sentiu que o céu e a Terra tinham se voltado contra ela. Ela e Addison mal se falavam. Quando estava sozinha, ela orava, dando vazão a toda a sua dor e tristeza para Deus. “Será que meus sofrimentos nunca terão fim?”, gemeu ela.38

No dia em que Addison partiu do vale, Louisa e Ellen cavalgaram com ele até o local do acampamento e passaram a noite ali. Pela manhã, ele as abençoou e se despediram. Embora por semanas tivesse temido a despedida, Louisa se sentiu consolada ao cavalgar de volta para o forte, com o coração bem mais leve do que estivera fazia tempo.39

Capítulo 9

Conforme ditar o Espírito

dois homens numa rua de uma cidade europeia

Em 6 de outubro de 1849, o primeiro dia da conferência de outono da Igreja, a Primeira Presidência e o Quórum dos Doze anunciaram o mais ambicioso esforço missionário da Igreja desde a morte de Joseph Smith. “Chegou a hora”, declarou Heber Kimball em seu discurso inicial. “Queremos que este povo se interesse e se envolva conosco no trabalho de levar o evangelho a todas as nações da Terra.”1

Desde que chegaram ao vale, os santos tinham despendido toda a sua força para se estabelecer e sobreviver. Mas a colheita daquele ano tinha sido abundante, produzindo alimento suficiente para o inverno. Depois que os santos começaram a se mudar para fora do forte e construir casas na cidade, os líderes da Igreja os organizaram em 23 alas, cada qual presidida por um bispo. Novos assentamentos começaram também a pontilhar o Vale do Lago Salgado e os vales ao norte e ao sul, e muitos santos começaram a construir lojas, moinhos e fábricas. O local de coligação tinha começado a florescer à medida que os santos o preparavam para acolher o povo de Deus.2

Os Doze liderariam o novo esforço missionário. Mais cedo naquele ano, Brigham havia chamado Charles Rich, Lorenzo Snow, Erastus Snow e Franklin Richards para ocupar as vagas no quórum. A Primeira Presidência enviou então Charles para a Califórnia a fim de auxiliar Amasa Lyman; Lorenzo para a Itália com Joseph Toronto, um santo italiano; Erastus para a Dinamarca com Peter Hansen, um santo dinamarquês; Franklin para a Inglaterra; e o apóstolo veterano John Taylor para a França.3

Na conferência, Heber também falou sobre o Fundo Perpétuo de Emigração, um novo programa que visava a auxiliar os santos a guardarem o convênio que fizeram no Templo de Nauvoo de auxiliarem os pobres. “Estamos aqui, com saúde, e temos muito para comer, beber e fazer”, disse Heber. Mas muitos santos pobres continuavam nos assentamentos do rio Missouri, nos pontos de parada de Iowa, em Nauvoo e na Inglaterra, sem condições de viajar para o vale. Às vezes, esses santos ficavam desanimados e se afastavam da Igreja.

“Cumpriremos esse convênio”, perguntou ele, “ou não?”4

De acordo com o novo programa, os santos doariam dinheiro para ajudar os pobres a se reunirem em Sião. Os emigrantes então receberiam empréstimos para cobrir os custos da viagem, os quais deveriam devolver assim que se estabelecessem em Sião. Para que o programa funcionasse, porém, ele precisava de contribuições em dinheiro — algo que poucos santos podiam oferecer numa economia de troca de mercadorias. A Primeira Presidência conclamou os santos a doarem seus excedentes para o fundo, mas também abordou a possibilidade de enviar missionários para garimpar ouro.5

Brigham continuava a ter dúvidas sobre essa opção. Acreditava que a fome de ouro corrompia e afastava pessoas boas da causa de Sião. Mas o ouro poderia servir a um propósito sagrado se ajudasse a financiar a Igreja e a emigração.6 Se ele chamasse missionários para os campos de ouro da Califórnia, eles poderiam coletar fundos muito necessários para a obra de Deus.

Mas esses missionários teriam que ser homens bons e justos, que não se importassem mais com o ouro do que com o pó sob seus pés.7


À primeira vista, George Q. Cannon não parecia diferente dos garimpeiros que passavam pelo Vale do Lago Salgado a caminho da Califórnia. Ele tinha 22 anos, era solteiro e estava cheio de ambição juvenil, mas não tinha o menor desejo de sair de casa. Ele amava as grandes montanhas e o espírito de paz que havia no vale. Não era alguém que desperdiçaria tempo garimpando ouro. Cada minuto importava muito para ele. Queria ler livros, construir uma casa de adobe em seu lote na cidade e, um dia, casar-se com uma moça chamada Elizabeth Hoagland.8

George e Elizabeth tinham viajado para o Oeste na mesma companhia, dois anos antes. Sendo órfão desde a adolescência, George tinha viajado com seus tios Leonora e John Taylor a fim de preparar uma casa para o restante da família. Seus irmãos e suas irmãs menores estavam para chegar ao vale a qualquer dia. Viajavam com a irmã mais velha e o cunhado dele, Mary Alice e Charles Lambert, que os acolhera quando seus pais morreram. George estava ansioso para se reunir com eles.9

Antes da chegada da família de George, porém, os líderes da Igreja o chamaram para uma missão a fim de garimpar ouro na Califórnia.10 A designação foi um choque para eles, e Elizabeth não ficou feliz. “Fui chamado para servir apenas um ano”, disse-lhe George, tentando consolá-la. “Você preferiria que eu fosse para a França por três anos?”

“Eu preferiria que você fosse salvar almas, e não procurar ouro, mesmo que fosse por mais tempo”, disse Elizabeth.11

George não podia discordar. Quando menino, na Inglaterra, ele tivera grande respeito por missionários como seu tio John e Wilford Woodruff, ansiando pelo dia em que serviria missão também.12 Mas um chamado para garimpar ouro não era bem o que ele havia imaginado.

Depois do primeiro dia da conferência de outubro, George se reuniu com os missionários recém-chamados e outros. Brigham falou por bastante tempo para eles sobre honrar as coisas de Deus. “O homem deve sempre viver com amor pelo sacerdócio no coração”, ensinou ele, “e não com amor pelas coisas deste mundo”.13

Nos dias que se seguiram, George ficou bem atarefado se preparando para sua missão. Em 8 de outubro, John Taylor, Erastus Snow e Franklin Richards o abençoaram para que prosperasse em sua missão e fosse um bom exemplo para os outros missionários. Prometeram que os anjos zelariam por ele e que ele voltaria para casa em segurança.14

Três dias depois, George sentiu muita tristeza e temor ao sair de casa com os outros missionários de garimpo de ouro. Ele tinha se mudado várias vezes na vida, mas nunca estivera longe de um familiar por mais de um ou dois dias. Não sabia o que esperar.

Os missionários de garimpo de ouro planejavam se reunir com Addison Pratt e Jefferson Hunt e seguir com eles até a Califórnia. Quando estavam saindo do vale, os missionários pararam em uma festa realizada para os élderes que iriam para a Europa. Cerca de uma centena de santos tinha se reunido para se despedir deles. Alguns estavam se banqueteando em mesas repletas de todo tipo de comida, ao passo que outros dançavam sob uma grande tenda feita com lonas de carroções. Quando George cavalgava para a festa, viu a carruagem de Brigham Young vindo em sua direção.

A carruagem parou, e George desmontou para apertar a mão de Brigham. Brigham disse que se lembraria de George e que oraria por ele enquanto estivesse fora. Grato pelas palavras bondosas do profeta, George desfrutou o bom humor e o companheirismo de seus colegas santos por mais uma noite. Pela manhã, ele e os missionários de garimpo de ouro montaram em seus cavalos e seguiram para o Sul, rumo à Califórnia.15


Em março de 1850, a esposa de Brigham, Mary Ann, visitou Louisa Pratt para ver se ela precisava de alguma ajuda da Igreja. Louisa não sabia o que responder. Amigos como Mary Ann com frequência ofereciam ajuda ou convites para jantar, mas a vida sem Addison era mais solitária do que nunca, e nada parecia mudar isso.

“Você tem o desejo de ir para junto de seu marido?”, perguntou Mary Ann.16

Louisa disse a ela que um amigo já tinha se voluntariado para levar a família para a Califórnia caso a Igreja decidisse enviá-los para as ilhas do Pacífico. Ao confidenciar isso para Mary Ann, Louisa se preocupou com o fato de parecer estar ansiosa demais para ir. Se ela ficasse em Salt Lake City, isso provavelmente a manteria afastada de Addison por mais cinco anos. Mas ir com ele para as ilhas também tinha seus riscos. Ellen e Frances logo teriam idade para se casar. Seria aquele o melhor momento para tirá-las do vale?

Ela orava com frequência para conhecer a vontade do Senhor. Parte dela, porém, queria simplesmente que Addison lhe escrevesse uma carta pedindo que fosse. Sabendo o que ele queria, isso tornaria a decisão dela mais fácil. Mas outra parte dela se questionava se ele queria realmente que ela fosse para junto dele. Será que ele havia aceitado seu último chamado missionário simplesmente porque queria partir novamente de junto dela?

“Se eu fosse um élder”, disse Louisa a Willard Richards certo dia, “jamais consentiria em ficar tanto tempo longe de minha família”. Ela disse que cumpriria sua missão o mais rapidamente possível e então voltaria para casa. Willard sorriu sem dizer nada, mas Louisa achou que ele concordava com ela.17

Louisa foi assistir à conferência na manhã de 7 de abril. George A. Smith falou por quase duas horas. Quando terminou, Heber Kimball subiu ao púlpito. “Aqui estão algumas designações de élderes para as nações”, disse ele. Heber chamou dois homens para as ilhas do Pacífico, mas nada disse sobre Louisa e as filhas. Depois, disse: “É proposto que Thomas Tompkins vá para as ilhas onde o irmão Addison Pratt esteve trabalhando e leve a família do irmão Pratt até ele”.18

Um sentimento indescritível tomou conta de Louisa, e ela pouco se lembrou do restante da reunião. Depois da sessão, ela procurou Mary Ann na multidão e lhe rogou que pedisse a Brigham que pensasse na possibilidade de chamar a irmã dela e seu cunhado, Caroline e Jonathan Crosby, para a missão também. Mary Ann concordou, e o casal Crosby recebeu o chamado no dia seguinte.

Pouco antes de partirem, Louisa e as filhas foram visitar Brigham. Ele disse a Louisa que ela tinha sido chamada e designada a ir às ilhas para auxiliar Addison a ensinar as pessoas. Ele então a abençoou para que todas as suas necessidades fossem supridas e que ela tivesse poder sobre o adversário, fizesse um bom trabalho e retornasse de sua missão em paz.19


Enquanto a família Pratt e a família Crosby partiam para as ilhas, os missionários recém-chamados para a Europa desembarcaram na Inglaterra, e os apóstolos fizeram uma breve viagem pela missão britânica, que incluía ramos no País de Gales e na Escócia. Enquanto isso, o missionário dinamarquês Peter Hansen, de 31 anos, estava ansioso para continuar na Dinamarca, a despeito de ter recebido instruções de Erastus Snow para que não fosse para lá até que ele e outros missionários escandinavos pudessem se unir a ele.

Peter respeitava seu presidente de missão, mas fazia sete anos que ele deixara sua terra natal e desejava muito ser o primeiro missionário a pregar o evangelho ali. Um vapor que ia para Copenhague estava num porto próximo, e Peter decidiu que não podia esperar nem mais um instante.

Ele chegou à capital dinamarquesa em 11 de maio de 1850. Caminhando pelas ruas, sentiu-se feliz por estar de volta a seu país de origem. Mas ficou preocupado com o fato de que ninguém ali desfrutava da luz do evangelho restaurado. Quando Peter havia partido da Dinamarca sete anos antes, a nação não tinha leis que protegessem a liberdade religiosa e proibia a pregação de todas as doutrinas, com exceção da doutrina da igreja apoiada pelo estado.20

Em sua juventude, Peter se frustrara muito com essas restrições, por isso, quando ficou sabendo que seu irmão, nos Estados Unidos, tinha adotado uma nova religião, fez todos os esforços possíveis para se juntar a ele. A decisão irou seu pai, um homem austero de crenças rígidas. No dia da partida de Peter, o pai destruiu a mala dele e queimou o que havia dentro dela.

Peter partiu mesmo assim, sem olhar para trás. Mudou-se para os Estados Unidos e se filiou à Igreja. Começou então a traduzir o Livro de Mórmon para o dinamarquês e viajou com a companhia de vanguarda para o Vale do Lago Salgado. Enquanto isso, na Dinamarca, os legisladores haviam concedido direito a todas as Igrejas de divulgarem suas crenças.21

Com esperança de que seu trabalho se beneficiasse com esse novo ambiente de liberdade religiosa, Peter procurou membros de igrejas que compartilhavam algumas das crenças dos santos. Falando com um pastor batista, ficou sabendo que a igreja estatal ainda perseguia as pessoas por causa de suas convicções religiosas, a despeito da nova lei. Peter se identificou com elas, tendo ele próprio sofrido perseguição por causa de suas crenças nos Estados Unidos. Logo começou a compartilhar o evangelho restaurado com o pastor e sua congregação.

Por senso de dever, Peter também procurou o pai, que ficou sabendo de sua chegada ao país como missionário. Certo dia, Peter o viu na rua e o cumprimentou. O homem olhou para ele, sem demonstrar emoção. Peter revelou quem era, mas o pai ergueu a mão para repeli-lo.

“Não tenho filhos”, disse ele. “E você, você veio para cá perturbar a paz pública nesta terra.”

Peter retornou a seus labores, sem ficar surpreso nem perturbado com a raiva do pai. Enviou cartas a Erastus, na Inglaterra, informando-o de suas atividades na missão, e continuou a trabalhar na tradução do Livro de Mórmon. Também redigiu e publicou um folheto em dinamarquês e traduziu vários hinos para sua língua natal.

Erastus não ficou feliz com a decisão tomada por Peter de desobedecer a suas instruções, mas, quando chegou a Copenhague em 14 de junho, ficou contente ao ver que Peter tinha estabelecido um alicerce para que a obra do Senhor fosse adiante.22


Em 24 de setembro de 1850, o apóstolo Charles Rich entrou a cavalo no acampamento central de mineração da Califórnia à procura dos missionários de garimpo de ouro. Era fim da tarde, a hora em que os garimpeiros voltavam para suas tendas e cabanas, acendiam lampiões e fogões, e trocavam as roupas molhadas. Ao longo das margens dos rios onde trabalhavam, as terras pareciam dilaceradas por milhares de pás e picaretas.23

Quase um ano se passara desde que os missionários de garimpo de ouro tinham partido de Salt Lake City. Até então ninguém tinha encontrado muito ouro. Alguns missionários tinham encontrado ouro suficiente para enviarem pequenas quantidades de volta a Salt Lake City, parte do qual foi derretido para cunhar moedas. Mas eles tinham usado a maior parte do ouro encontrado para pagar o custo elevado dos alimentos e suprimentos.24 Alguns santos locais que tinham ficado ricos durante a corrida do ouro, enquanto isso, pouca ajuda ofereciam. Sam Brannan estava rapidamente se tornando um dos homens mais ricos da Califórnia, mas parou de pagar o dízimo e rejeitou toda ligação com a Igreja.

Charles encontrou os missionários de garimpo de ouro no acampamento deles. Quando visitou pela última vez o acampamento de mineração, alguns meses antes, os missionários e os garimpeiros estavam represando o rio, esperando expor ouro em seu leito argiloso. A maioria deles ainda passava os dias trabalhando na represa ou procurando ouro. George Q. Cannon gerenciava a loja do acampamento.25

Pela manhã, Charles falou aos homens sobre o futuro da missão. A estação principal de mineração estava quase no fim, e a falta de sucesso da missão tinha confirmado a falta de confiança de Brigham em relação ao garimpo de ouro. Em vez de ficarem no inverno na Califórnia, onde o custo de vida era alto, Charles propôs que alguns missionários terminassem sua missão nas ilhas havaianas. O custo de vida seria bem menor para os missionários ali, enquanto pregassem o evangelho para muitos colonos de língua inglesa.26

George disse a Charles que estava pronto para fazer tudo o que os líderes da Igreja achassem melhor. Se quisessem que ele fosse para o Havaí, ele iria. Além disso, os campos de ouro eram um lugar difícil para um jovem santo dos últimos dias. Não era incomum ouvir falar em roubos e até assassinatos que ocorriam nos acampamentos. O próprio George já tinha sido assaltado por mineradores que o forçaram a beber uísque.27

Antes de partir do acampamento, Charles designou os missionários por imposição de mãos para sua nova missão. “Quando chegarem às ilhas”, disse-lhes, “ajam conforme ditar o Espírito em relação a seus deveres”. Ele disse que o Espírito saberia melhor do que ele qual o curso que deveriam tomar quando chegassem às ilhas.28

Os missionários em breve retornaram ao rio para terminar a represa e procurar mais ouro. Poucas semanas depois, encontraram ouro suficiente para que cada um recebesse mais de 700 dólares. Depois disso, não encontraram mais nada.29

Deixaram o acampamento de mineração e logo se dirigiram para a costa. Certa noite, realizaram uma reunião para os santos da Califórnia e outras pessoas interessadas no evangelho. George estava ansioso. Era esperado que os missionários falassem nessas reuniões, mas ele nunca tinha pregado a descrentes. Sabia que acabaria tendo que falar, mas não queria ser o primeiro.

Depois do início da reunião, porém, o élder que a dirigia pediu que ele pregasse. George se levantou, relutante. “Fui chamado para servir”, disse a si mesmo, “e não vou me recusar a fazê-lo”. Abriu a boca, e as palavras fluíram com facilidade. “As pessoas do mundo professam estar ansiosas para conhecer a verdade”, disse ele. “Devemos ser gratos pelo que temos e pelo princípio de que podemos progredir de uma verdade para outra.”

Falou por mais cinco minutos, mas então seus pensamentos ficaram confusos, não sabia mais o que dizer e gaguejou pelo restante do sermão. Embaraçado, sentou-se, seguro de que sua primeira experiência como missionário pregador não podia ter sido pior.

Mas não estava completamente desanimado. Estava em uma missão e não iria recuar nem abandonar aquele encargo.30


Por volta dessa época, Frances Pratt, de 15 anos, avistou a ilha de Tubuai do convés de um navio que levava mais de 20 santos americanos para a missão do sul do Pacífico. Frances, que estivera infeliz e isolada durante a maior parte da viagem, imediatamente se alegrou. Ela explorou a ilha com uma luneta, esperando ver o pai na praia. Sua irmã mais velha, Ellen, tinha certeza de que ele subiria a bordo do navio assim que o navio chegasse à terra.

Louisa ansiava por se reunir com Addison também, mas tinha ficado com enjoo do mar durante toda a viagem e não conseguia pensar em nada além de terra firme, comida decente e um leito macio. Sua irmã Caroline sofria a seu lado, nauseada e quase incapaz de caminhar.31

Depois de dois dias enfrentando ventos contrários e recifes perigosos, o navio ancorou perto da ilha, e dois tubuaianos foram saudá-los de bote a remo. Quando subiram a bordo do navio, Louisa perguntou se Addison estava na ilha. Não, respondeu um dos homens. Ele estava sendo mantido prisioneiro na ilha do Taiti pelo governo francês, que desconfiava de todos os missionários estrangeiros que não fossem da igreja católica.

Louisa tinha se preparado para más notícias, mas as filhas não. Ellen se sentou e cruzou as mãos no colo, com o rosto totalmente inexpressivo. As outras meninas andavam de um lado para o outro no convés.

Logo chegou outro bote, e dois americanos subiram a bordo. Um deles era Benjamin Grouard. Quando Louisa o vira pela última vez em Nauvoo, ele era um rapaz muito animado. Mas então, após sete anos como missionário no Pacífico, parecia solene e respeitável. Arregalando os olhos de alegria e surpresa, cumprimentou os recém-chegados e os convidou a irem à praia.32

Em terra, os santos tubuaianos deram as boas-vindas a Louisa e aos outros passageiros. Louisa perguntou se poderia conhecer Nabota e Telii, os amigos de Addison de sua primeira missão. Um homem a tomou pela mão. “‘O vau te arata‘i ia ‘oe”, disse ele. Vou conduzi-la.33

Ele partiu ilha adentro, e Louisa o seguiu, tentando se comunicar com ele da melhor forma que podia. O restante da multidão seguiu em fila atrás deles, rindo durante a caminhada. Louisa se maravilhou com as altas palmeiras acima deles e a exuberante vegetação que cobria a ilha. Aqui e ali, ela viu habitações longas e baixas, rebocadas de cal branco feito de coral.

Telii ficou extremamente feliz ao conhecer os novos missionários. Embora estivesse se recuperando de uma doença, ergueu-se do leito e começou a preparar um banquete. Assou um porco numa vala, fritou peixe, preparou pão com farinha feita de uma raiz da ilha e fez um arranjo com muitas frutas frescas. Quando terminou de cozinhar, haviam se reunido santos de toda a ilha para conhecer os recém-chegados.

A companhia se banqueteou enquanto a lua cheia se erguia no céu. Depois disso, os santos tubuaianos lotaram a casa e se sentaram em esteiras de palha, enquanto os santos americanos cantavam hinos em inglês. Os santos da ilha então cantaram hinos em sua própria língua, em alta e clara voz e em perfeita harmonia.

Enquanto desfrutava a música, Louisa olhou para fora da casa e admirou a deslumbrante paisagem. Altas árvores frondosas com brilhantes flores amarelas cercavam a casa. O luar atravessava os ramos e sua luz criava milhares de formas diferentes. Louisa pensou nas distâncias cruzadas por sua família e nos sofrimentos por que passaram para chegar a um lugar tão belo, e soube que a mão de Deus estava nisso tudo.34


Dois meses depois de Louisa chegar a Tubuai, os missionários de garimpo de ouro subiram a encosta de uma montanha com vista para Honolulu, na ilha de Oahu, e dedicaram as ilhas havaianas para o trabalho missionário. Na noite seguinte, o presidente da missão designou George Q. Cannon para trabalhar na ilha de Maui, a sudeste de Oahu, com James Keeler e Henry Bigler.35

Maui era uma ilha ligeiramente maior que Oahu. Lahaina, sua principal cidade, ficava numa praia que não tinha porto. Do mar, a vista da maior parte da cidade estava encoberta por palmeiras e muita vegetação. Uma montanha elevada se erguia ao longe.36

Os missionários saíram para trabalhar, mas logo descobriram que havia menos colonos brancos do que era esperado na ilha. George ficou desanimado. Os missionários de garimpo de ouro tinham ido para o Havaí esperando encontrar colonos de língua inglesa, mas nenhum deles pareceu interessado no evangelho restaurado. Deram-se conta de que, se pregassem apenas para a população branca, sua missão seria curta e infrutífera.

Certo dia, trocaram ideias sobre suas opções. “Vamos restringir nosso trabalho às pessoas brancas?”, perguntaram-se. Eles não tinham sido instruídos a pregar aos havaianos, mas tampouco lhes fora dito que não o fizessem. Na Califórnia, Charles Rich simplesmente os aconselhara a confiarem que o Espírito guiaria sua missão.

George acreditava que seu chamado e dever era compartilhar o evangelho com todos os povos. Se ele e os outros missionários se esforçassem para aprender a língua da terra, como Addison Pratt tinha feito em Tubuai, eles poderiam magnificar seu chamado e tocar o coração e a mente de mais pessoas. Henry e James sentiam o mesmo.37

Os missionários rapidamente descobriram que o idioma havaiano era difícil de se entender. Cada palavra parecia se juntar à seguinte.38 Ainda assim, muitos havaianos estavam ansiosos para ajudá-los a entender. Como não havia muitos livros didáticos em Maui, os missionários mandaram buscar alguns em Honolulu. O desejo que George tinha de falar era muito forte, e ele nunca perdia uma oportunidade de praticar a língua. Às vezes ele e outros passavam o dia inteiro em casa, lendo e estudando o idioma.

Gradualmente, George começou a usar a língua de modo mais confiante. Certa noite, quando ele e seus companheiros estavam numa casa conversando em havaiano com os vizinhos, George se deu conta subitamente que compreendia quase tudo o que era dito. Erguendo-se de um salto, segurou a cabeça com as mãos e exclamou que havia recebido o dom de interpretação de línguas.

Não conseguia distinguir todas as palavras proferidas, mas conseguia captar seu sentido geral. Sentiu-se cheio de gratidão, sabendo que tinha sido abençoado pelo Senhor.39

Capítulo 10

Verdade e retidão

vale tropical deslumbrante

George Q. Cannon segurou firmemente sua mala de viagem ao entrar em um riacho que serpeava pelo verdejante vale ʻIao, em Maui. Era 8 de março de 1851, quase no fim da estação chuvosa no Havaí. Quatro dias antes, ele havia deixado sua casa em Lahaina e começado a caminhar para o norte, acompanhando a costa. “Preciso ir para o meio dos nativos e começar a pregar a eles”, dissera a seus companheiros missionários. Estava ansioso para melhor se comunicar no idioma havaiano e prestar testemunho. O Senhor lhe revelara que havia pessoas ali em Maui que estavam preparadas para receber a verdade. George não sabia quem eram, mas esperava reconhecê-las assim que as encontrasse.

Já tinha viajado quase 65 quilômetros sem sucesso. Escuras nuvens de tempestade e chuvas torrenciais o fizeram questionar se havia escolhido a época errada do ano para fazer aquela jornada.

Ao avançar para dentro do riacho, George escorregou e caiu dentro da água. Erguendo-se, arrastou-se para fora da água e subiu uma colina próxima até Wailuku, uma cidadezinha com poucas casas, uma escola feminina e uma alta igreja feita de rochas ígneas.1

Vários missionários protestantes moravam na cidade, e George quis prestar testemunho a eles. Mas estava cansado e envergonhado por estar com as roupas imundas e molhadas. Talvez fosse melhor retornar a Lahaina, disse a si mesmo, em vez de tentar compartilhar o evangelho em condições climáticas tão ruins.

George encontrou a estrada que saía da cidade e começou a voltar para casa. Quando havia acabado de sair de Wailuku, ao fazer uma pausa para trocar de camisa e se barbear, subitamente teve o sentimento de que deveria voltar para a cidade. Rapidamente voltou pelo caminho que trilhara e, ao passar na frente da igreja, duas mulheres saíram de uma casa próxima.“E ka haole!”, chamaram elas para que entrasse na casa. Ei, homem branco!2

Três homens apareceram à porta, atrás delas, e foram até o portão, justamente quando George estava passando. Um deles perguntou para onde ele estava indo. George explicou que estava pensando em retornar a Lahaina por causa do mau tempo. O homem disse que seria melhor esperar alguns dias e convidou George a se hospedar na casa dele.

O nome daquele homem era Jonathan Napela. Era um respeitado juiz local e um dos aliʻi, ou seja, fazia parte da nobreza da ilha. Ele e dois outros homens, William Uaua e H. K. Kaleohano, tinham recebido instrução formal na melhor escola da ilha. Ao falar com eles, George soube imediatamente que tinha encontrado as pessoas que Deus havia preparado.3

No dia seguinte, George ensinou Napela a respeito do Livro de Mórmon e do profeta Joseph Smith. “Não usamos o Livro de Mórmon em lugar da Bíblia”, explicou ele, “mas um prova a veracidade do outro”. Napela ficou interessado na mensagem de George, mas disse que queria saber por si mesmo se era verdade.4

Logo George teve que retornar a Lahaina. Prometeu, porém, voltar a Wailuku para ensinar Napela e seus amigos. Testificou que lhes dissera a verdade e os convidou a estudar mais o evangelho restaurado.

“Examinai todas as coisas”, disse George, citando a Bíblia, “e retende o bem”.5


Enquanto George retornava para Lahaina, Brigham Young se preparava para mudanças no Vale do Lago Salgado. Depois que os santos pediram ao congresso que criasse um governo territorial, Thomas Kane, que tinha feito amizade com os santos e os ajudado a formar o Batalhão Mórmon, aconselhou Brigham em uma carta a pedir que ali fosse criado um estado. Ao contrário dos territórios, cujos líderes governamentais eram nomeados pelo presidente dos Estados Unidos, os estados permitiam que seus líderes fossem escolhidos pelo voto dos eleitores, dando às pessoas mais controle sobre o governo.6

A assembleia legislativa rapidamente redigiu uma petição para a criação de um estado. Para garantir que a petição chegasse ao congresso em tempo, a assembleia legislativa criou o registro de uma convenção constitucional que nunca ocorreu e o enviou com outros documentos para seus representantes em Washington, D.C.7 A Primeira Presidência esperava enviar Oliver Cowdery a Washington para ajudar a influenciar os políticos a favor da criação de um estado, mas Oliver ficou doente enquanto estava com a família de sua esposa no Missouri e morreu em março de 1850. Phineas Young estava a seu lado quando ele faleceu.

“Seu testemunho final jamais será esquecido”, escreveu Phineas para Brigham logo em seguida. “Ele disse a seu amigo que não havia salvação a não ser no vale e por meio do sacerdócio que lá estava.”8

Quando a petição para a criação de um estado chegou a Washington, o congresso estava envolvido num longo e contencioso debate em relação à escravatura e sua expansão para as terras do Oeste adquiridas após a guerra com o México. O debate ofuscou a petição para a criação de um estado, e o congresso acabou organizando um território no vale, como parte de uma concessão mais ampla para pacificar as facções contrárias ao governo.

O congresso rejeitou o nome Deseret, dando ao território o nome de Utah, devido aos índios ute que ali moravam. Utah era bem menor do que a proposta feita pelos santos, e não chegava até o mar, mas o território ainda abrangia vastas extensões de terras. Para satisfação dos santos, o presidente nomeou membros da Igreja para mais da metade dos cargos mais elevados do governo, inclusive Brigham Young como governador. As demais nomeações foram para líderes governamentais de fora do território que não eram membros da Igreja.9 Esses líderes incluíam dois ou três membros da recém-criada suprema corte territorial, limitando o poder que os santos teriam para aplicar suas próprias leis.

Brigham e os santos receberam cautelosamente os líderes governamentais que foram para Utah no verão de 1851. Eram homens ambiciosos do Leste que, não obstante, estavam relutantes em se mudar para o território remoto. Suas primeiras reuniões com os santos foram tensas e embaraçosas. Os santos tinham passado a desconfiar de forasteiros devido às perseguições ocorridas no passado, e os líderes governamentais se sentiram ignorados e desrespeitados ao chegarem. Também pouco conheciam acerca dos santos e de suas crenças, além dos rumores que tinham ouvido sobre o casamento plural praticado na Igreja.10

Na época, os santos ainda não tinham proclamado publicamente sua crença no casamento plural. Quando o Senhor ordenou a Joseph Smith que praticasse o princípio, um anjo o encarregara de mantê-lo em sigilo e ensiná-lo apenas aos santos cuja integridade fosse inabalável. Os primeiros membros da Igreja honravam a monogamia como a única forma legítima de casamento, e qualquer forma alternativa seria chocante. Mas o Senhor prometera exaltar aqueles santos por sua obediência e seu sacrifício.

Na época de sua morte, Joseph havia se casado com algumas esposas plurais pelo tempo e pela eternidade. Ele havia sido selado a outras esposas somente pela eternidade, o que significava que o relacionamento deles começaria na próxima vida. Ele também havia ensinado a respeito do casamento plural a seus amigos mais próximos, e eles continuaram a manter essa prática em sigilo após sua morte. Para Joseph e os primeiros santos, o casamento plural era um princípio religioso solene, não uma maneira de satisfazer a luxúria.11

Quando os oficiais federais chegaram ao território no verão de 1851, os casamentos plurais haviam se tornado mais comuns na Igreja, tornando mais difícil para os santos esconder dos visitantes essa prática. Inclusive, em festas e outras reuniões sociais, os oficiais conheceram as esposas de Brigham Young e de Heber Kimball, que não fizeram nenhum esforço para ocultar seu relacionamento com seu marido.12

Em 24 de julho de 1851, os líderes se uniram aos santos na comemoração do aniversário de quatro anos da chegada dos pioneiros ao vale. A celebração começou com tiros de canhão, música patriótica e uma parada. O general Daniel Wells, um importante membro da Igreja e comandante da milícia territorial, falou aos santos sobre as provações passadas e predisse que dia viria em que os Estados Unidos seriam assolados por não terem se disposto a ajudar a Igreja.13 Os santos adoraram o discurso, mas ele ofendeu os líderes governamentais.

Várias semanas mais tarde, outro líder do governo, o juiz Perry Brocchus, chegou dos estados do Leste. Brocchus tinha aceitado sua nomeação para Utah esperando que os santos o elegessem para representá-los no congresso dos Estados Unidos. Ao chegar ao território, porém, ficou desapontado ao saber que um membro da Igreja chamado John Bernhisel já tinha sido eleito para o cargo. Também ficou alarmado e horrorizado com o que os outros líderes relataram sobre o discurso de Daniel Wells no dia 24 de julho.

Em setembro, Brocchus pediu permissão para falar numa conferência especial da Igreja. Alegou que queria solicitar fundos para um monumento em homenagem a George Washington, o primeiro presidente dos Estados Unidos. Brigham ficou desconfiado pelo pedido, mas concordou em deixar o juiz falar.14

Brocchus começou elogiando a generosidade dos santos. Citou o Livro de Mórmon e mencionou seu desejo de servi-los e fazer amizade com eles. Mas demorou a chegar a esse ponto. E quando finalmente convidou os santos a fazer doações para o monumento, insinuou que as esposas plurais deveriam abandonar seu casamento antes de contribuírem para o fundo.15 “Vocês precisam se tornar virtuosas e ensinar suas filhas a serem virtuosas”, disse ele.16

Sentindo-se insultada, a congregação exigiu que Brocchus se calasse. Mas o juiz continuou a falar. Condenou o discurso de Daniel Wells, proferido no dia 24 de julho, e acusou os santos de não serem leais ao país. “O governo dos Estados Unidos não os prejudicou”, disse ele. “O estado de Missouri é que deve uma reparação, e Illinois também.”17

Suas palavras tocaram um nervo exposto dos santos. O que ele sabia dos sofrimentos pelos quais eles tinham passado? Ouviram-se gritos e assobios da congregação, e os santos exigiam que Brigham respondesse aos insultos.

Assim que Brocchus terminou seu discurso, Brigham se levantou e andou de um lado para o outro no púlpito.18 “O juiz Brocchus é profundamente ignorante ou corruptamente iníquo”, vociferou. “Amamos o governo e a constituição, mas não amamos os malditos patifes que administram o governo.”19


Longe dos tumultos ocorridos no território de Utah, a Igreja continuava a crescer no sul do Pacífico. Depois de ficar preso por várias semanas, Addison Pratt e seu companheiro, James Brown, finalmente receberam permissão do governo francês do Taiti para permanecerem na ilha desde que obedecessem a certas restrições que limitavam a forma como poderiam compartilhar o evangelho e conduzir a Igreja.

Sob as novas restrições, os missionários santos dos últimos dias não poderiam pregar contra a religião estabelecida do país nem interferir em questões políticas ou civis. As restrições também limitavam o modo como os missionários poderiam se sustentar, corrigir membros da Igreja desobedientes, comprar terras para a Igreja e realizar reuniões. Se deixassem de cumprir essas leis, os missionários poderiam ser expulsos do país.20

Addison designou James a trabalhar com um ramo próximo, enquanto ele retornava a Tubuai para se reunir com sua família e liderar a missão. A viagem até Tubuai levou sete dias. Quando a ilha foi avistada do navio, ele pegou uma luneta e viu suas filhas na praia, olhando ansiosamente para ele com uma luneta própria. Logo surgiram fios de fumaça na ilha, enquanto os santos tubuaianos começavam a preparar um banquete pela sua chegada.

Quando o navio se aproximou da ilha, uma canoa foi buscar Addison para levá-lo até a praia. Ansioso para se reunir com a família, Addison estava prestes a pular para dentro da canoa, mas o capelão do navio o impediu. “Que ninguém saia do navio até que tenhamos oferecido graças ao Senhor”, disse ele.

Addison se ajoelhou com os outros passageiros, e o capelão proferiu uma oração. Assim que ouviu o “Amém”, Addison pulou para dentro da canoa e logo estava abraçado com a família e os amigos. Novamente Addison se surpreendeu com o quanto suas filhas tinham crescido. Todas pareciam estar muito bem e prontas para comemorar sua chegada em segurança. E Louisa estava aliviada por tê-lo de volta.

“Fiquei horrivelmente nauseada no mar na viagem desde a Califórnia”, disse-lhe ela sem afetação, “mas agora estou com boa saúde e disposição”.

Addison se mudou para a casa da família, que tinha uma cerca e um pequeno jardim. Benjamin Grouard e os outros élderes estavam construindo um navio, o Ravaai, numa cidade próxima para poderem visitar as ilhas distantes da missão. Addison logo começou a fazer velas para o navio.21

Enquanto isso, Louisa dava aulas na escola com sua irmã Caroline, na capela dos santos, um salão bem ventilado com seis grandes janelas em cada parede. As aulas começavam bem cedo pela manhã, e Louisa lecionava inglês a meninos e meninas agitadas, ensinando-lhes os números, os dias da semana e os meses do ano. Os santos tubuaianos, por sua vez, passavam as noites ensinando o idioma taitiano a Louisa e aos outros missionários.22

A fé exercida pelos santos tubuaianos realmente impressionou Louisa. Tinham prazer em orar e ler a Bíblia. Com frequência se levantavam antes do raiar do sol e reuniam a família para as devoções matinais. Um sino tocava pela manhã todos os domingos às 7 horas, e cerca de uma centena de santos se reunia na capela com a Bíblia debaixo do braço. Para o sacramento, às vezes usavam frutas e água de coco.23

Muitos santos tubuaianos estavam ansiosos para se reunirem com os santos nos Estados Unidos, mas ninguém conseguia arcar com o custo da viagem. Quando uma família missionária, a família Tompkins, decidiu voltar para casa após passarem oito meses na ilha, Addison lhes pediu que angariassem fundos para reunir os santos da ilha no sul da Califórnia.24

Quando os santos terminaram a construção do Ravaai, os missionários se espalharam pelas ilhas. Ellen acompanhou Addison em sua viagem, enquanto Louisa permanecia em casa para continuar a dar aulas na escola. Addison e Ellen retornaram seis semanas depois, e Louisa com frequência acompanhava o marido na ministração pela ilha, o que lhe dava oportunidade de praticar o idioma e refletir sobre a obra do Senhor.

Às vezes, ela se perguntava se estaria fazendo alguma diferença. “Espero que minha vinda para cá resulte em muitas coisas boas”, escreveu. “Esforcei-me para plantar a boa semente. O fruto pode ser colhido após muitos dias.”25


De volta ao leste dos Estados Unidos, a notícia da retumbante repreensão proferida por Brigham Young contra o juiz Brocchus causou alvoroço. Os jornais acusaram a Igreja de estar em franca rebelião contra a nação. Um editor recomendou o envio de tropas militares para ocupar Utah e manter a paz.26

A fonte das notícias era o próprio Brocchus. Embora Brigham tivesse tentado fazer as pazes com ele após a conferência, Brocchus se recusou a pedir desculpas aos santos e redigiu um contundente relato da reação de Brigham a seu discurso. “O fermento criado por suas palavras foi realmente aterrorizador”, escreveu Brocchus. “Parecia que as pessoas (quero dizer, grande parte delas) estavam prestes a se lançarem sobre mim como hienas e a me destruírem.”27

O Deseret News, o jornal da Igreja, repudiou as acusações, declarando não haver base para tal. Dando-se conta do dano que o relato de Brocchus poderia representar para a Igreja, porém, a Primeira Presidência pediu ajuda a Thomas Kane, esperando que seu talento na política e como autor pudesse evitar um escândalo.28 Enquanto isso, Brocchus e dois outros líderes governamentais partiram de Utah e imediatamente começaram a divulgar a versão deles da história, voltando a opinião pública contra os santos.29

Thomas Kane concordou em ajudar e trabalhou de perto com John Bernhisel, o representante de Utah no congresso, a fim de contar a versão que os santos tinham da história ao presidente dos Estados Unidos e outros líderes governamentais. Brigham também enviou Jedediah Grant, o franco e sincero prefeito de Salt Lake City e um santo dos últimos dias de confiança, para ajudar Thomas em Washington, D.C.30

Jedediah chegou pronto para defender a Igreja. Com o público decisivamente contra os santos, muitas pessoas estavam pedindo ao governo que removesse Brigham do cargo de governador. Brocchus e os outros líderes, além disso, tinham escrito um relato detalhado de seu mandato em Utah para o presidente. O relatório afirmava que Brigham e a Igreja dominavam a região, controlavam a mente e as propriedades dos membros da Igreja, e praticavam a poligamia.31

Depois que o relatório foi publicado, Jedediah levou uma cópia para Thomas e eles a examinaram juntos. Thomas leu as afirmações sobre a poligamia e as refutou de imediato. Ele acreditava que não passavam de rumores absurdos.

Jedediah se sentiu desconfortável. Os rumores não são de modo algum falsos, disse a Thomas. De fato, os santos vinham praticando o casamento plural desde quando Thomas os conhecera.32

Thomas ficou aturdido. Por cinco anos, tinha amado e defendido os santos, muitas vezes arriscando sua reputação em favor deles. Por que nunca tinham lhe dito que praticavam o casamento plural? Sentiu-se traído e humilhado.33

Thomas se angustiou por vários dias ao tomar conhecimento disso, sem saber se deveria continuar a ajudar os santos. Concluiu que a poligamia desprestigiava as mulheres e ameaçava a unidade familiar. Ficou preocupado com o fato de que, ao defender os santos, isso poderia associar para sempre seu nome a essa prática.34

Mas também admirava os santos e valorizava a amizade que tinha com eles. Queria auxiliar os oprimidos e incompreendidos em seus momentos de aflição, e não poderia abandonar os santos naquele momento.35

Em 29 de dezembro, Thomas escreveu para John Bernhisel com um plano para se opor ao relatório dos líderes governamentais. “Por ainda reconhecer o relacionamento de respeito pessoal e amizade que tenho com vocês”, declarou ele, “estou disposto a auxiliá-los se assim desejarem que eu o faça”.

Mas instou os santos a fazerem duas coisas: pararem de ocultar o casamento plural e explicarem a prática ao público.36


Depois de um ano em Tubuai, Louisa Pratt e Caroline Crosby se sentiam suficientemente à vontade com o idioma taitiano para realizarem reuniões regulares de oração com as mulheres da Igreja. Nessas reuniões, as mulheres cantavam hinos e trocavam ideias sobre o evangelho. Louisa e Caroline fizeram amizade com as mulheres da Igreja, especialmente com a rainha Pitomai, esposa do rei Tamatoa, de Tubuai.

Como Ellen Pratt tinha rapidamente dominado o idioma, a mãe e a tia com frequência dependiam dela para traduzir nas reuniões de oração. Na reunião de 30 de outubro, porém, Caroline cantou o hino de abertura em taitiano com as mulheres tubuaianas, e Louisa fez um sermão nesse idioma.

O tema do discurso de Louisa foi o Livro de Mórmon. Antes da reunião, ela tinha redigido o discurso, e Benjamin Grouard o traduzira para o taitiano. Enquanto Louisa lia o discurso, as mulheres presentes pareceram entendê-la e depois pediram que ela lhes contasse mais sobre os antigos nefitas.

À medida que sua confiança em seu taitiano aumentava, Louisa ficou cada vez mais ávida por compartilhar o evangelho. Um dia, pouco depois de seu aniversário de 49 anos, ela deu uma aula para um grupo de mulheres sobre o batismo pelos mortos, surpreendendo a si mesmo ao ver como se saíra bem. “Mal sabemos do que somos capazes até passarmos por uma provação difícil”, refletiu ela. “Tendo passado da meia idade, aprendi um novo idioma.”37

Várias semanas depois, em 29 de novembro, o Ravaai aportou em Tubuai a caminho de outras ilhas. Um dos missionários a bordo era James Brown, que era novamente prisioneiro do governo francês do Taiti. Tinha sido preso no atol Anaa depois que os sacerdotes franceses o ouviram incentivando os santos a irem para os Estados Unidos se reunir com os outros santos. Considerando suas palavras de cunho político, os líderes governamentais franceses o prenderam por rebelião e o baniram do país.

James achou que teria que ficar no Ravaai, a pão e água, até que a tripulação o deixou numa ilha que ficava fora da jurisdição francesa. Mas a rainha Pitomai subiu a bordo do navio e o convidou a descer à praia. “Esta é minha ilha”, disse ela. “Assumirei a responsabilidade por todos os problemas que surgirem.”

James permaneceu em Tubuai por dez dias, depois partiu para uma ilha que ficava fora da jurisdição francesa. O fato de ele ter sido banido mostrava que o governo francês estava ficando mais rigoroso, tornando quase impossível que os missionários estrangeiros de muitas religiões realizassem seu trabalho. Em breve, os santos dos Estados Unidos se viram tomados por desânimo e frustração, com a saudade de casa, e decidiram que era hora de voltar ao lar.38

Louisa sabia que muitos santos fiéis tubuaianos queriam ir com eles para os Estados Unidos. Telii, a amiga mais próxima da família Pratt, planejou fazer a viagem, mas as responsabilidades que tinha para com sua própria família a impediram de ir. Louisa também queria levar alguns de seus alunos para Salt Lake City, mas os pais não os deixaram ir. Outros que desejavam viajar não tinham dinheiro para pagar as despesas.

“Vamos interceder para que sejam levados até a Igreja quando chegarmos a nossa casa”, disse Louisa às mulheres em sua reunião de oração de 11 de março. “Enquanto isso, vocês devem orar por vocês mesmas e por nós.”39

Três dias depois, as mulheres tubuaianas se reuniram para sua última reunião de oração com Louisa e Caroline. O fato de saber que aquela seria sua última reunião de oração deixou Caroline profundamente tocada. Ela via que algumas mulheres estavam tristes por elas estarem indo embora. Mas o Espírito encheu a reunião, e as mulheres falaram e oraram juntas até tarde da noite. Louisa se despediu de seus alunos e deixou Telii encarregada deles. Caroline deu uma colcha que ela havia confeccionado para a rainha Pitomai, que retribuiu o presente dando-lhe um belo vestido.40

Em 6 de abril de 1852, os missionários que trabalhavam em Tubuai subiram a bordo do Ravaai. Os santos das ilhas foram até a praia se despedir, levando-lhes alimento para a viagem. “Consolem-se”, disse-lhes Louisa. “Vou orar para que um dia no futuro vocês venham para a Igreja de Cristo na América, sim, para a Sião no Vale das Montanhas Rochosas.” Todos choraram e apertaram as mãos pela última vez.

O Ravaai zarpou por volta das 4 horas da tarde. Os santos tubuaianos caminharam para dentro do mar ao lado do navio até onde foi possível, abençoando os missionários. À medida que o navio singrava silenciosamente as águas tranquilas, e a ilha se afastava até se perder de vista, os missionários continuavam a ouvir ao longe a despedida dos santos que ficaram na praia.

‘Ia ora na ‘outou.” Que a paz esteja convosco.41


Poucos meses depois, Brigham se reuniu com seus consultores mais próximos em Salt Lake City. Graças a Thomas Kane, John Bernhisel e Jedediah Grant, a controvérsia em relação aos líderes governamentais do território já havia encerrado. Brigham continuou sendo governador, e novos líderes governamentais foram enviados para substituir Brocchus e outros que tinham partido de Utah. Ainda assim, os líderes da Igreja não tinham feito nenhuma declaração oficial sobre o casamento plural, como Thomas os aconselhara a fazer.

Brigham ponderava qual seria a melhor maneira de anunciar a prática. Com sua sede em Utah seguramente estabelecida, a Igreja nunca tinha estado mais forte. Além disso, o casamento plural passara a ter um papel central na vida de muitos santos, afetando grandemente o modo como entendiam seu relacionamento de convênio com Deus e com suas famílias. Manter a prática em sigilo por mais tempo parecia ser algo tanto impossível quanto desnecessário. Era o momento certo para tornar público o casamento plural, e decidiram explicar a prática mais plenamente aos santos e ao mundo em geral em uma conferência de dois dias que seria realizada sobre o trabalho missionário.42

A conferência teve início em 28 de agosto de 1852. Naquele dia, a Primeira Presidência chamou 107 homens para missões na Índia, em Sião, na China, na África do Sul, na Austrália, na Jamaica, em Barbados e em outros lugares do mundo inteiro. “As missões para as quais faremos chamados nesta conferência, em geral, não serão muito longas”, gracejou George A. Smith. “Provavelmente de três a sete anos será o tempo que cada homem estará ausente de sua família.”43

Como missionários, esperava-se que levassem o evangelho de Jesus Cristo aos povos da Terra. “Que a verdade e a retidão sejam seu lema”, aconselhou Heber Kimball, “e não sigam para o mundo com nenhum outro propósito que não seja pregar o evangelho, edificar o reino de Deus e reunir as ovelhas ao redil”.44

No dia seguinte, Orson Pratt se levantou para fazer um sermão sobre o casamento plural para os santos. Suas palavras seriam publicadas no Deseret News, e outros jornais do mundo inteiro rapidamente reimprimiriam seu relatório. Orson redigiu seu sermão de modo a ensinar aos missionários os fundamentos doutrinários do casamento plural para que pudessem ensinar e defender a prática enquanto servissem no campo missionário.45

“Os santos dos últimos dias aceitaram a doutrina da pluralidade de esposas como parte de sua fé religiosa”, declarou Orson do púlpito. “Vamos nos empenhar para explicar perante esta assembleia esclarecida algumas de suas causas, seus motivos e suas consequências.”46

Brigham falou por duas horas, com base em seu próprio entendimento da prática. As escrituras ofereciam poucas declarações doutrinárias sobre o casamento plural. A Bíblia citava homens e mulheres justos, como Abraão e Sara, que seguiram o princípio, mas pouco revelava sobre o motivo pelo qual fizeram isso. O Livro de Mórmon, porém, explicava que Deus, às vezes, ordenava que as pessoas praticassem o casamento plural para gerar filhos para Ele.47

Orson ensinou à congregação que o casamento plural não se baseava em indulgência sexual, como muitas pessoas de fora da Igreja presumiam, mas, sim, em ajudar a levar adiante a obra eterna de Deus na Terra. Às vezes, sugeriu Orson, o Senhor pede a Seu povo que pratique o casamento plural para se multiplicar e encher a Terra, compartilhar as promessas e as bênçãos do convênio abraâmico e trazer mais filhos espirituais do Pai Celestial para o mundo. Nessas famílias, esses filhos podem aprender o evangelho de pais justos e crescer a fim de ajudar a estabelecer o reino de Deus.48

Orson também comentou que o Senhor governava a prática com leis muito rígidas. Somente o profeta tinha as chaves do convênio do casamento, e ninguém podia realizar um casamento plural sem o consentimento dele. Além disso, era esperado daqueles que praticassem o casamento plural que cumprissem seus convênios e levassem uma vida justa.49

“Podemos apenas abordar de modo superficial esse grandioso tema”, declarou Orson ao encerrar seu discurso. Os santos fiéis são herdeiros de tudo o que Deus possui, declarou ele. Ao fazerem e guardarem os convênios do casamento eterno, eles podem nutrir famílias tão numerosas quanto as areias das praias.

“Tenho vontade de bradar aleluia a Seu grandioso e santo nome”, disse Orson, “porque Ele reina nos céus e exaltará Seu povo para que se assente com Ele em tronos de poder para reinar para todo o sempre”.50


Mais tarde naquele dia, Brigham falou aos santos sobre revelação. Comentou que algumas das revelações do Senhor foram difíceis de aceitar quando reveladas pela primeira vez. Relatou a própria dificuldade que teve, 20 anos antes, para aceitar a visão de Joseph Smith sobre a vida após a morte e os três reinos de glória.51

“Quando ouvi isso pela primeira vez, era algo totalmente contrário e oposto à minha educação e às tradições”, admitiu ele. “Não a rejeitei, mas não consegui entendê-la.” Sua fé na revelação aumentou à medida que buscou esclarecimento do Senhor. “Ponderei e orei, li e pensei, orei e refleti”, disse ele aos santos, “até que soube e compreendi plenamente por mim mesmo, por meio de visões do Santo Espírito”.52

Brigham então prestou testemunho das revelações que o Senhor dera a Joseph Smith sobre o casamento eterno, testificando que Deus ainda revelava Suas palavras para a Igreja. “Se fosse necessário escrevê-las, nós as escreveríamos o tempo todo”, disse ele. “Preferimos, porém, que as pessoas vivam de modo a terem suas próprias revelações e então façam o trabalho que somos chamados a realizar. Isso é suficiente para nós.”53

Depois disso, o secretário de Brigham, Thomas Bullock, leu a revelação do Senhor sobre o casamento plural para uma congregação que excedia a capacidade do local. A maioria dos santos, inclusive aqueles que praticavam o casamento plural, nunca tinha lido a revelação antes. Alguns se regozijaram por saber que finalmente poderiam proclamar livremente o princípio para o mundo.54

Imediatamente após a conferência, os missionários recém-chamados se reuniram para receber instruções antes de partirem a fim de pregar o evangelho em todos os continentes habitados. O salão se encheu de entusiasmo quando aqueles homens pensaram na obra do Senhor que progredia com novo ímpeto. Com o verão já quase no fim, tinham pouco tempo para desperdiçar.

“Quero que partam o mais rapidamente possível”, disse Brigham aos missionários, “e atravessem as planícies antes que comece a nevar”.55

Parte 2

Por mar e por terra

Setembro de 1852–maio de 1869

O fim se aproxima, os tempos expiram,

A fé divulgai como Deus vos mandou.

Avante, irmãos os sinais se cumpriram

E Deus já seu reino de novo fundou;

Eliza R. Snow: “O fim se aproxima”

mapa das missões europeias e das ilhas

Capítulo 11

Um privilégio glorioso

página do Livro de Mórmon sendo escrita em havaiano

Na maioria das manhãs, Ann Eliza Secrist ouvia o filho de 2 anos, Moroni, chamar pelo pai. Faltavam poucos dias para ela dar à luz e, até recentemente, o marido, Jacob, podia ajudar a cuidar do menino. Mas, em 15 de setembro de 1852, ela e os três filhos pequenos estavam junto à porta de sua casa inacabada em Salt Lake City, observando Jacob conduzir sua parelha de cavalos morro acima, a leste da cidade. No alto da colina, ele acenou para eles, contemplou a cidade mais uma vez e desapareceu do outro lado do morro abaixo.1

Jacob estava entre os muitos missionários chamados para servir na conferência de agosto de 1852. Com instruções de partir assim que possível, ele se uniu à companhia de 80 élderes que rumava para algumas nações europeias, principalmente para a Inglaterra. Ele foi um dos quatro missionários enviados à Alemanha, onde foi designado a trabalhar por três anos.2

Até então, Ann Eliza estava lidando da melhor forma que podia com a ausência do marido. Ela e Jacob tinham crescido juntos numa pequena cidade do leste dos Estados Unidos. Durante seu namoro, Jacob havia trabalhado em outro estado e, enquanto ele estava distante, trocaram longas cartas de amor. Casaram-se em 1842, filiaram-se à Igreja pouco depois disso e seguiram os santos para o Oeste. Os dois tinham um forte testemunho do evangelho restaurado, e Ann Eliza não queria reclamar do chamado missionário do marido. Porém, o tempo parecia passar muito lentamente enquanto ele estava fora, e ela se sentia acabrunhada pela tristeza.3

Treze dias após a partida do marido, Ann Eliza deu à luz um menino de cabelos pretos. Ela escreveu para Jacob no dia seguinte. “Pesamos o bebê, e ele tinha dois quilos e meio”, relatou ela. “Ainda não tem nome. Se tiver um nome para ele, escreva-o em sua carta.”4

Ann Eliza não sabia quanto tempo levaria para que Jacob recebesse a notícia. O correio chegava esporadicamente ao vale na maioria dos meses do ano e parava totalmente quando as neves de inverno nas planícies tornavam as rotas praticamente intransitáveis. Ela tinha poucos motivos para esperar uma resposta do marido antes da primavera.

Pouco depois do nascimento do bebê, porém, Ann Eliza recebeu uma carta de Jacob, enviada enquanto ele ainda estava na trilha para o Leste. Ela percebeu pelo conteúdo que ele ainda não havia recebido a carta dela. Ele contou que tinha visto a família num sonho. As três crianças estavam brincando no chão, enquanto Ann Eliza estava deitada na cama com um bebê recém-nascido.

Se ela desse à luz um filho, escreveu Jacob, ele queria que ela lhe desse o nome de Nephi.

Ann Eliza recebeu sua resposta. Ela deu ao bebê o nome de Heber Nephi Secrist.5


No verão de 1852, Johan Dorius, de 20 anos, chegou ao distrito de Vendsyssel, no norte da Dinamarca.6 Sendo aprendiz de sapateiro em Copenhague, Johan deixou de lado suas ferramentas para servir missão em sua terra natal. Tinha-se filiado à Igreja com o pai, Nicolai, e a irmã caçula, Augusta, pouco depois que os primeiros missionários chegaram à Dinamarca. Seu irmão mais velho, Carl, tinha se filiado à Igreja pouco mais de um ano depois.7

A Igreja crescera rapidamente na Dinamarca desde que Peter Hansen e Erastus Snow abriram a missão. Dois anos após sua chegada, eles já tinham publicado o Livro de Mórmon em dinamarquês — a primeira edição do livro em outro idioma além do inglês — e dado início a um jornal mensal chamado Skandinaviens Stjerne. A Dinamarca então tinha mais de 500 membros organizados em 12 ramos.8

No entanto, a mãe de Johan, Ane Sophie, desprezou a nova e impopular igreja e usou a condição de membro do marido como motivo de divórcio. Por volta da época em que Ane Sophie e Nicolai se separaram, Johan tinha sido chamado com outros recém-conversos para servir uma missão local, e Augusta partiu da Dinamarca com o primeiro grupo de santos escandinavos para se reunir em Sião.9

Em Vendsyssel, Johan viajou para o Sul a fim de se encontrar com os santos de uma vila rural chamada Bastholm.10 Eles se reuniam na casa de um membro local da Igreja. Johan se sentiu feliz e inspirado ao falar para a congregação. Já tendo pregado na região, ele conhecia a maioria dos que estavam na sala.

Por volta do meio-dia, pouco antes do término da reunião, uma turba furiosa de fazendeiros armados de ferramentas e clavas entrou na casa e ficou à espreita junto à porta. Anteriormente naquele ano, os santos dinamarqueses tinham feito uma petição à assembleia legislativa do país pedindo proteção contra as turbas, mas nada foi feito. Os recém-conversos da vizinha Suécia tinham enfrentado oposição semelhante, o que levou alguns fiéis a serem batizados num tanque de curtume em vez de se arriscarem a ser vistos num rio.11

Depois que a reunião terminou, Johan foi até a porta para sair. A turba se aproximou, e Johan sentiu uma pontada na perna. Ignorando a dor, ele saiu da casa, mas quase imediatamente os fazendeiros o agarraram por trás e o golpearam nas costas com clavas. Ele sentiu dores lancinantes por todo o corpo enquanto os homens o espetavam com estacas e ferramentas pontiagudas, até lhe deixarem o corpo em carne viva e sangrando.

De alguma forma, Johan conseguiu escapar e fugiu para a casa de um membro da Igreja chamado Peter Jensen, que ficava perto dali. Ali, seus amigos removeram as roupas rasgadas, limparam suas feridas e o deitaram na cama. Um homem o ungiu e o abençoou, e uma mulher idosa ficou de guarda em seu quarto. Após uma hora e meia, porém, homens bêbados esmurraram a porta. A mulher idosa caiu de joelhos e orou pedindo ajuda. “Eles terão que passar por cima de mim antes que possam feri-lo”, disse ela a Johan.

Um momento depois, os homens bêbados irromperam quarto a dentro. A mulher tentou impedi-los, mas eles a empurraram contra a parede. Então, cercaram o leito e começaram a açoitar o corpo ferido e lacerado de Johan. Desesperado para manter a consciência e a compostura, Johan pensou em Deus. Porém, a turba o agarrou pelos braços e o arrastou para fora da cama e noite adentro.12


Soren Thura estava passando pela casa de Jensen quando viu a turba carregando Johan até um rio próximo. Alguns dos homens estavam gritando e xingando de modo selvagem. Outros estavam berrando canções. Soren foi até lá e abriu caminho no meio deles a cotoveladas. Eles tinham bafo de conhaque. Soren olhou para Johan. O jovem parecia pequeno e frágil em suas roupas de dormir.

Os homens reconheceram Soren imediatamente. Ele era um veterano da cavalaria dinamarquesa e tinha reputação em Bastholm de ser um atleta vigoroso. Presumindo que ele queria se unir a eles, os homens lhe disseram que tinham apanhado um “pregador mórmon” e que iam jogá-lo no rio. “Vamos mostrar a esse sacerdote mórmon como batizar”, disseram.

“Soltem-no”, disse Soren. “Vou cuidar desse rapaz, e ai de qualquer um de vocês, covardes, que tentar me impedir.” Soren era mais alto e forte do que qualquer um dos integrantes da turba, por isso eles largaram o missionário, bateram mais algumas vezes nele e fugiram correndo.13

Soren levou Johan de volta para a casa de Jensen e voltou no dia seguinte para ver como ele estava. Johan creu que Deus enviara Soren para salvá-lo. “Isso é o mesmo que aconteceu ao povo de Deus nos tempos antigos”, testificou Johan, “e esses castigos visam a nos tornar humildes perante o Senhor”.

A mensagem de Johan tocou o coração de Soren, e ele voltava dia após dia para conversar com o rapaz sobre sua missão e o evangelho restaurado.14


Enquanto Johan se recuperava do espancamento, sua irmã de 14 anos, Augusta, estava cruzando as Montanhas Rochosas num comboio de carroções com cerca de cem santos emigrantes. A estrada na qual viajavam era arenosa e muito batida devido aos cinco anos de pesada migração ao Vale do Lago Salgado. Porém, mesmo com um caminho bem demarcado, eles estavam ansiosos em relação à trilha à frente. O outono havia chegado nas planícies, fustigando as pradarias com ventos gelados e baixando a temperatura até um frio quase insuportável.

Para piorar as coisas, os bois estavam ficando cansados, e os santos tinham consumido toda a sua farinha, o que os forçou a enviar um cavaleiro adiante para obter mais provisões. Sem saber quanto tempo levaria para que o socorro chegasse, os santos seguiam em frente com o estômago vazio. Estavam a mais de 240 quilômetros de Salt Lake City, e a parte mais íngreme da jornada ainda estava por vir.15

Augusta e suas amigas frequentemente caminhavam bem à frente do comboio de carroções e esperavam que ele as alcançasse. Ao longo do caminho, pensavam no lar que tinham deixado para trás. Os 28 dinamarqueses que estavam na companhia tinham navegado para os Estados Unidos com Erastus Snow, que já tinha ido antes para Salt Lake City, enquanto Augusta e o restante da companhia seguiam em outro comboio de carroções. A maioria dos emigrantes escandinavos, inclusive Augusta, mal sabia falar uma palavra sequer em inglês. Ainda assim, todas as manhãs e noites, eles se uniam aos santos que falavam inglês para orar e cantar hinos.16

Até então, a jornada até Salt Lake City tinha se mostrado muito mais difícil e longa do que Augusta tinha esperado. Ao ouvir os americanos falarem sua língua incompreensível, ela se deu conta de quão pouco conhecia sobre seu novo lar. Também sentia saudades de casa. Além de seus irmãos Carl e Johan, ela tinha três irmãs mais novas chamadas Caroline, Rebekke e Nicolena. Ela queria que todos de sua família se unissem a ela em Sião um dia. Contudo, não sabia se isso aconteceria, principalmente após o divórcio de seus pais.17

Na trilha para o Oeste, Augusta sobreviveu à custa de rações escassas à medida que o comboio subia despenhadeiros, descia por ravinas profundas e cruzava estreitos riachos das montanhas. Na entrada do desfiladeiro de Echo Canyon, a pouco mais de 60 quilômetros de Salt Lake City, as mulheres da companhia avistaram o homem que fora enviado à frente para obter provisões. Pouco depois, chegou um carroção repleto de pão, farinha e biscoitos, que os capitães das companhias distribuíram aos santos aliviados.18

O comboio de carroções entrou no Vale do Lago Salgado poucos dias depois. Erastus Snow saudou os santos dinamarqueses quando eles chegaram à cidade e os convidou à sua casa para um jantar em que foi servido arroz com pão de passas. Após meses comendo quase somente pão branco e carne de búfalo, Augusta achou que aquela era a comida mais gostosa que já havia provado.19


Em 8 de novembro de 1852, George Q. Cannon abriu seu pequeno diário marrom e escreveu: “Muito atarefado escrevendo”. Tinha passado o dia inteiro debruçado sobre uma mesa na casa de Jonathan e Kitty Napela, traduzindo o Livro de Mórmon para o havaiano. Então, ao refletir sobre seu trabalho do dia, pediu ao Senhor que o ajudasse a concluir o projeto.

“Considero-o um privilégio glorioso”, escreveu em seu diário. “Sinto-me jubiloso ao me empenhar nesse trabalho, e meu coração arde e incha ao contemplar os gloriosos princípios nele contidos.”20

Quando se conheceram em março de 1851, George não podia imaginar o quanto Napela se tornaria importante para a obra do Senhor no Havaí. Mas foi só em janeiro de 1852 — quase um ano após se conhecerem — que Napela aceitou o batismo.21 Ele sabia que o evangelho restaurado era verdadeiro, mas a oposição dos membros da comunidade e da igreja protestante local o impediu de se filiar à Igreja de imediato. Enquanto isso, George teve sucesso em batizar muitas pessoas e organizar quatro ramos em Maui.22

Logo após seu batismo, Napela incentivou e ajudou George a começar a traduzir o Livro de Mórmon. Hora após hora, George estudava passagens do livro e fazia o melhor que podia para redigir uma tradução em havaiano numa folha de papel. Depois, lia para Napela o que tinha escrito, e este o ajudava a refinar a tradução. Sendo um advogado muito instruído, Napela era a pessoa ideal para orientar George nas complexidades de seu idioma natal. Também tinha estudado cuidadosamente os princípios do evangelho e rapidamente compreendido a verdade.

Esse processo prosseguiu lentamente a princípio, mas foram impelidos adiante pelo desejo de compartilhar a mensagem do Livro de Mórmon com os havaianos. Logo sentiram o Espírito descer sobre eles e passaram a trabalhar rapidamente no livro mesmo quando se deparavam com passagens que expressavam doutrinas e conceitos complexos. A fluência de George no havaiano também melhorava diariamente à medida que Napela lhe ensinava novas palavras e expressões.23

Em 11 de novembro, colegas missionários que trabalhavam em outra ilha levaram três cartas a George e sete exemplares do Deseret News de Utah. Ávido por obter informações de casa, George leu as cartas e os jornais assim que teve a chance de fazê-lo. Em uma carta, ficou sabendo que o apóstolo Orson Pratt tinha lido para os santos a revelação sobre o casamento plural e pregado a respeito dele publicamente. A notícia não causou surpresa a ele.

“Era o que eu vinha esperando”, anotou ele em seu diário. “Creio que é o momento certo.”24

Outra carta contava que os líderes da Igreja tinham ficado sabendo da tradução do Livro de Mórmon e aprovado o projeto. A terceira carta informava que o apóstolo John Taylor, seu tio, tinha retornado recentemente de sua missão na França e queria que George voltasse para casa também. Elizabeth Hoagland, a jovem que George cortejara antes de sua missão, também ansiava por seu retorno. Willard Richards, da Primeira Presidência, porém, queria que George pensasse na possibilidade de terminar a tradução antes de voltar para casa.

George sabia que tinha servido uma missão fiel. Tinha crescido, deixando de ser um rapaz saudoso de casa e com a língua presa, passando a ser um poderoso pregador e missionário. Se decidisse voltar para casa então, ninguém poderia dizer que ele não havia magnificado o chamado que o Senhor lhe fizera.

Ainda assim, acreditava que os antepassados do povo havaiano tinham orado pela oportunidade de seus descendentes ouvirem o evangelho e desfrutarem de suas bênçãos. E ele ansiava por se regozijar com seus irmãos e irmãs havaianos no reino celestial. Como poderia partir do Havaí sem terminar a tradução?25 Tinha que ficar para concluir seu trabalho.

Poucos dias depois, após passar a manhã com os santos de Maui, George refletiu sobre a bondade de Deus, e seu coração se encheu de alegria e indescritível felicidade.

“Meus lábios e minhas palavras são por demais débeis para expressar os sentimentos que vivencio ao ponderar a obra do Senhor”, exclamou em seu diário. “Oh, que meus lábios, meu tempo e meus talentos, e tudo que tenho ou possuo possam ser empregados para Sua honra e glória, para glorificar Seu nome e para divulgar o conhecimento de Seus atributos onde quer que eu seja chamado a trabalhar.”26


Naquele outono, Johan Dorius e outros missionários dinamarqueses foram enviados para pregar o evangelho na Noruega. Tal como a Dinamarca, a Noruega tinha concedido certa liberdade religiosa para os cristãos que não faziam parte da igreja estatal. Porém, os livros e jornais vinham alertando os noruegueses havia mais de uma década sobre o perigo que eram os santos dos últimos dias, voltando a opinião pública contra a Igreja.27

Certo dia, Johan e seu companheiro realizaram uma reunião numa pequena casa situada nas proximidades da cidade de Fredrikstad. Depois que a congregação cantou “Tal como um facho”, Johan falou sobre as origens da Igreja e declarou que Deus tinha Se revelado novamente à humanidade. Quando terminou, uma moça exigiu que ele provasse a veracidade de suas palavras por meio da Bíblia. Ele o fez, e ela ficou extremamente impressionada com o que ele disse.28

Dois dias depois, Johan e seu companheiro pararam em uma hospedaria nos arredores de Fredrikstad para passar a noite. A dona do estabelecimento perguntou quem eram eles, e os rapazes se apresentaram dizendo ser missionários santos dos últimos dias. A dona da hospedaria ficou preocupada. As autoridades do condado tinham proibido estritamente que ela acolhesse santos dos últimos dias.

Enquanto os missionários falavam com ela, um policial veio da sala ao lado e exigiu que Johan mostrasse seu passaporte. “Está em Fredrikstad”, explicou ele.

“Você está preso”, disse o policial, que então se virou para o companheiro de Johan e exigiu que mostrasse o passaporte dele. Como o outro missionário também não estava com o documento, o policial o prendeu também e levou os dois para uma cela a fim de aguardarem o interrogatório. Para surpresa deles, Johan e seu companheiro viram que a cela estava cheia de santos noruegueses — homens e mulheres — que também tinham sido presos. Entre eles estavam muitos missionários dinamarqueses, inclusive um que já estava preso havia duas semanas.29

Recentemente, as autoridades do governo da região tinham começado a abordar e interrogar missionários e outros membros da Igreja. Muitos noruegueses tinham suspeitas profundas em relação aos santos e acreditavam que sua fé no Livro de Mórmon os desqualificava para as proteções garantidas sob as leis de liberdade religiosa do país.

A notícia de que os membros da Igreja praticavam o casamento plural nos Estados Unidos também tinha levado alguns noruegueses a verem os santos dos últimos dias como causadores de problemas que queriam corromper a fé tradicional e os valores do povo norueguês. Ao interrogarem e prenderem santos dos últimos dias, as autoridades esperavam expô-los como não cristãos e os impedirem de divulgar sua nova religião.30

Johan logo foi transportado para Fredrikstad e colocado numa prisão com outros quatro missionários, incluindo Christian Larsen, um líder da Igreja na Noruega. O carcereiro e a família dele trataram os missionários com civilidade, permitindo que orassem, lessem, escrevessem, cantassem e conversassem sobre o evangelho. Porém, nenhum deles estava livre para partir.31

Após várias semanas, o juiz do condado e outras autoridades interrogaram alguns dos missionários. O juiz tratou os homens como criminosos, mal ouvindo o que diziam, e não permitiu que explicassem que sua mensagem estava em harmonia com o cristianismo e com a Bíblia.

“Por que motivo vieram para este país?”, os oficiais perguntaram a Christian.

“Para ensinar o verdadeiro evangelho de Jesus Cristo às pessoas”, respondeu ele.

“Você voltará à Dinamarca se for libertado da prisão?”

“Não, até que Deus me desobrigue por meio de Seus servos que me enviaram para cá.”

“Vai se abster de pregar e de batizar?”

“Se você ou qualquer um de seus sacerdotes puder me convencer de que nossa doutrina e nossa fé não estão de acordo com as doutrinas de Cristo”, disse Christian, “porque desejo obter a salvação e fazer a vontade de Deus”.

“Consideramos que está abaixo da dignidade de nossos sacerdotes argumentarem com você”, disse o principal dos interrogadores. “Proíbo-o agora de desencaminhar qualquer outra pessoa com suas falsas doutrinas.”32

Enquanto Johan e os missionários aguardavam seu julgamento, compartilharam uma cela com Johan Andreas Jensen. Sendo um capitão do mar, Jensen era um homem profundamente religioso que tinha doado todos os seus bens terrenos aos pobres e começado a pregar e a clamar arrependimento nas ruas. Em seu entusiasmo de proclamar a palavra de Deus, tinha tentado compartilhar seus pontos de vista religiosos com o rei Oscar I, da Suécia e Noruega, mas tinha sido rejeitado todas as vezes que procurou ter uma audiência. Frustrado, Jensen chamou o rei de “pecador exaltado”, sendo prontamente preso e colocado na cadeia.

Logo, os missionários compartilharam o evangelho restaurado com ele. A princípio, o capitão não se interessou pela mensagem, mas orou por eles, e eles oraram por ele. Certo dia, quando os missionários prestavam testemunho a Jensen, todos na cela de repente se viram tomados de alegria. Jensen chorou intensamente e seu rosto brilhou. Declarou que sabia que o evangelho restaurado era verdadeiro.

Os missionários pediram ao tribunal que libertasse Jensen apenas pelo tempo suficiente para que fosse batizado, mas seu pedido foi rejeitado. Jensen, porém, garantiu aos missionários que seria batizado assim que fosse libertado da prisão.33

“Isso fez com que todos nos humilhássemos em gratidão a Deus, e aquele foi verdadeiramente um dia glorioso para nós”, registrou Johan em seu diário. “Cantamos e louvamos a Deus por Sua bondade.”34

Capítulo 12

Com o rosto voltado a Sião

mulher conduzindo uma vaca

Na manhã de 6 de abril de 1853, Brigham Young estava com seus conselheiros, Heber Kimball e Willard Richards, no alicerce parcialmente escavado do novo templo, em Salt Lake City. Ele estava aguardando por aquele dia havia meses — talvez anos — e o céu estava extremamente límpido. Era o aniversário de 23 anos da Igreja e o primeiro dia da conferência geral de primavera. Milhares de santos tinham se reunido no quarteirão do templo, como faziam duas vezes por ano, para ouvir as palavras de seus líderes. Mas aquele dia era diferente. Eles também tinham ido até lá para ver a colocação das pedras angulares do templo.1

Brigham estava rejubilante. Dois meses e meio antes, ele havia realizado a abertura de terra do templo, e Heber havia dedicado o local. Desde essa época, os trabalhadores não tiveram tempo suficiente para escavar completamente o imenso alicerce, mas tinham cavado valas profundas ao longo das paredes, grandes o suficiente para acomodar as enormes pedras angulares de arenito. Para terminar a escavação, ainda seriam necessários dois meses de trabalho.2

Com os santos reunidos, Brigham e seus conselheiros colocaram a pedra angular da esquina sudeste do alicerce.3 Cada pedra angular tinha mais de duas toneladas.4 O templo teria seis torres e seria bem mais alto do que os templos de Kirtland e Nauvoo, exigindo um sólido alicerce para suportar seu peso. Numa reunião com o arquiteto Truman Angell, Brigham tinha esboçado o templo numa lousa e explicado que as três torres a leste representariam o Sacerdócio de Melquisedeque, e as três torres a oeste, o Sacerdócio Aarônico.5

Depois que as pedras angulares foram colocadas, Thomas Bulock, secretário da Igreja, leu um sermão redigido por Brigham Young sobre o propósito dos templos. Embora muitos santos tivessem recebido a investidura no Templo de Nauvoo ou na casa do conselho, um edifício em Salt Lake City que Brigham tinha temporariamente autorizado para a realização de alguns trabalhos do templo, a maioria somente tinha vivenciado a ordenança uma única vez e talvez não tivesse captado plenamente sua beleza e importância. Outros santos, inclusive muitos europeus recém-chegados, ainda não tinham tido a oportunidade de receber a investidura. Para ajudá-los a entender a ordenança sagrada e sua importância, Brigham fez uma descrição.6

“Sua investidura”, explicava o sermão, “é o recebimento de todas as ordenanças da casa do Senhor que são necessárias para que possam, depois de terem deixado esta vida, caminhar de volta à presença do Pai, passando pelos anjos que estão de sentinela, podendo lhes apresentar as palavras-chave, os sinais e símbolos pertencentes ao santo sacerdócio, e ganhar sua exaltação eterna, a despeito da Terra e do inferno”.7

Mesmo antes de chegar ao vale, Brigham já vinha planejando construir outro templo assim que a Igreja encontrasse um novo lugar de reunião. E, assim que chegou ao vale, ele viu o templo numa visão. “Há cinco anos, no mês de julho, vi aqui a pedra angular do templo, a menos de três metros de onde a colocamos”, testificou ele aos santos reunidos na conferência. “Toda vez que olho para aquele lugar, vejo novamente o templo como na visão que tive.”8

À medida que os santos se dedicassem ao projeto e pagassem seu dízimo, prometeu Brigham, o templo se ergueria em beleza e grandiosidade, superando tudo o que eles já tinham visto ou imaginado.9


Pouco depois da cerimônia de colocação da pedra angular, Ann Eliza Secrist recebeu quatro cartas de seu marido, Jacob, em um único dia. Cada carta contava um estágio diferente de sua jornada ao campo missionário. Na mais recente, datada de 28 de janeiro de 1853, ele dizia ter finalmente chegado a Hamburgo, uma cidade da Confederação Alemã.10

Oito meses após a partida de Jacob, Ann Eliza estava mais tranquila em relação à ausência dele. O Deseret News com frequência publicava as cartas dos élderes provenientes do mundo inteiro, dando aos santos um relatório do trabalho missionário em lugares bem distantes, como a Austrália, a Suécia, a Itália e a Índia. Às vezes, aqueles relatórios descreviam a feroz oposição contra os missionários. De fato, dois dias antes da chegada das cartas de Jacob, Ann Eliza tinha lido no Deseret News sobre os esforços do governo para expulsar um missionário de Hamburgo.

Em vez de temer por Jacob, Ann Eliza lhe escreveu uma carta encorajadora. “Não adianta tentarem parar esta obra”, testificou ela, “porque ela prosseguirá a despeito de todos os demônios da Terra e do inferno, e nada poderá deter seu progresso”.11

Sempre que Ann Eliza escrevia para o marido, ela falava sobre a saúde dos filhos. Naquele inverno, eles tinham contraído escarlatina, mas todos se recuperaram da doença na primavera. Depois, pegaram catapora, que os afligiu por um mês. Durante esse período, os filhos sempre falavam sobre o pai, especialmente durante as refeições, quando era servido algo que eles sabiam que ele teria gostado de comer.

Ela também escrevia sobre a fazenda da família, que ficava uns 30 quilômetros ao norte de Salt Lake City. Jacob e Ann Eliza tinham contratado alguns homens para mantê-la funcionando enquanto a família morava na cidade e, recentemente, um dos trabalhadores tinha solicitado vidros, pregos e madeira para terminar a construção de uma casa na propriedade. Ela enviou materiais que seriam usados na sua casa na cidade, que também estava inacabada. O mesmo homem posteriormente exigira pagamento por um trabalho que ele havia concordado em fazer de graça. Sem ter dinheiro nem trigo em mãos, Ann Eliza teve que vender uma vaca para pagá-lo.12

Apesar disso, na carta seguinte a Jacob, Ann Eliza ficou feliz em relatar que a fazenda estava prosperando, tendo boas colheitas. Também comentou que ela sentia uma forte impressão de que ela e os filhos deveriam voltar para a fazenda, construir uma pequena casa na propriedade e morar lá. Contudo, ela não queria tomar uma decisão tão importante sem antes pedir o conselho de Jacob. “Quero saber sua opinião sobre a questão”, declarou ela, “e quero que você me escreva o mais breve possível a respeito disso”.

Ela enviou a carta expressando mais amor e palavras motivadoras. “Embora estejamos distantes um do outro, separados por grandes mares, vastas pradarias e montanhas cobertas de neve, ainda assim penso continuamente em você e em seu bem-estar”, escreveu ela. “Não deixe que nada o preocupe a meu respeito, porque creio que Deus, a quem você está servindo, vai me proteger.”13


Naquela primavera, na ilha de Maui, jornais causaram um rebuliço ao publicar artigos sobre o sermão de Orson Pratt, em agosto de 1852, a respeito do casamento plural. Os havaianos já haviam praticado a poligamia, mas o governo proibira a prática e processava os que violassem a lei. Os missionários protestantes tinham rapidamente se aproveitado dos ensinamentos contidos no sermão de Orson e os distorcido a fim de ridicularizar os santos e lançar dúvidas sobre a Igreja.14

Convencido de que a verdade e a franqueza seriam a melhor maneira de responder às mentiras e ideias equivocadas sobre a Igreja, George Q. Cannon deixou de lado a tradução do Livro de Mórmon, traduziu a revelação sobre o casamento plural e pregou a respeito da prática para uma multidão de mil pessoas. O sermão de George dissipou a confusão sobre o casamento plural e esclareceu que não se esperava que as pessoas o praticassem a menos que o Senhor as ordenasse que o fizessem.15

Antes de seu sermão, George tinha mostrado sua tradução da revelação a Jonathan Napela. Napela ficou satisfeito com ela. Antes de seu batismo em 1852, Napela sofrera pressão de seus amigos protestantes para que abandonasse a Igreja. Sua fé havia sido fortalecida por estar trabalhando de perto com George na Igreja. Embora a tradução do Livro de Mórmon fosse uma tarefa árdua, de vez em quando ele e George paravam para conversar a respeito do livro. Napela podia sentir mudanças acontecendo em sua vida. Era como a passagem contida no livro de Alma: uma semente fora plantada e ela estava crescendo. Sentia que o evangelho restaurado de Jesus Cristo era certo e bom, e desejava compartilhá-lo com outras pessoas.16

Napela começou a acompanhar os missionários em suas visitas, e ele pregava o evangelho com poder e eloquência. Certo dia, ele até escreveu para Brigham Young a fim de contar a história de sua conversão. “É muito claro para nós que esta é a Igreja de Deus”, testificou Napela, “e tenho forte desejo de ir até onde você está, quando o momento certo chegar”.17

Quando os novos missionários chegaram às ilhas, a dificuldade que tinham com o idioma era quase cômica. Napela se ofereceu para lhes dar aulas do idioma, o que prontamente aceitaram. Forneceu-lhes bíblias e dicionários em havaiano, um lugar para estudar e algo para comer. Todas as manhãs e noites, os élderes recitavam passagens da Bíblia em havaiano e Napela fazia exercícios com eles nos fundamentos básicos do idioma. No final de cada dia, seus alunos estavam exaustos.

“Sempre fui muito trabalhador”, disse um missionário, “mas este é o trabalho mais árduo que já fiz”.18

Após uns poucos dias de instrução com Napela, os élderes conseguiam pronunciar algumas palavras embora nada compreendessem do que liam. Em um mês, os élderes estavam levando seus livros para lugares isolados nos bosques para praticar o idioma, traduzindo capítulos da Bíblia do inglês para o havaiano simples.19

Quando Napela concluiu suas instruções, os élderes se espalharam pelas ilhas, mais bem preparados para cumprir sua missão. Pouco depois, Napela foi ordenado élder, tornando-se um dos primeiros havaianos a portar o Sacerdócio de Melquisedeque. O evangelho criou raízes nele e, em parte graças a seus próprios esforços, estava começando a criar raízes no Havaí.20


William Walker teve seu primeiro vislumbre da Cidade do Cabo, África do Sul, em 18 de abril de 1853.21 A cidade ficava no extremo sudoeste de uma baía, junto ao sopé de um elevado planalto. Outro pico, quase tão alto quanto o primeiro, erguia-se no lado oeste da cidade. De onde estava, no convés de um navio a quase dois quilômetros da costa, o pico parecia um imenso leão deitado sobre a barriga.22

Oito meses antes, William e seus companheiros, Jesse Haven e Leonard Smith, estavam entre os 108 homens chamados para o serviço missionário na conferência especial de agosto de 1852. William estava nas montanhas a sudeste de Salt Lake City, cortando lenha para construir uma serraria, quando seu chamado foi anunciado. Ele foi até a cidade alguns dias depois para contratar alguns homens para ajudá-lo na serraria e, no caminho, ficou sabendo de sua nova designação.23

Sendo um veterano do Batalhão Mórmon que estava profundamente comprometido com a causa de Sião, William começou imediatamente a se preparar para a missão. Aos 32 anos de idade, estava deixando duas esposas, dois filhos pequenos e um sobrado de adobe na cidade. Vendeu sua parte na serraria, comprou provisões suficientes para sustentar a família por um ano e partiu de Salt Lake City 15 dias mais tarde.24

Depois que o navio ancorou na Cidade do Cabo, William e seus companheiros desembarcaram e se viram num mundo totalmente diferente de Utah.25 A Cidade do Cabo era um antigo assentamento holandês que tinha passado para o domínio britânico. Colonos brancos e africânderes — os descendentes dos antigos colonos holandeses — compunham uma parte dos 30 mil habitantes da cidade, ao passo que quase metade de sua população era mestiça ou negra, incluindo muitos muçulmanos e ex-escravos.26

Na noite de 25 de abril, os missionários realizaram sua primeira reunião na prefeitura. Jesse abriu seu Novo Testamento e pregou a partir do livro de Gálatas para uma congregação bem receptiva. Leonard pregou em seguida um sermão a respeito de Joseph Smith, do Livro de Mórmon e de revelação. Algumas pessoas da congregação começaram a fazer barulho e a atrapalhar os missionários. Teve início um tumulto, e a reunião terminou de modo caótico. Quando os missionários retornaram ao local, no dia seguinte, para realizar outra reunião, as portas estavam trancadas.27

Os missionários jejuaram e oraram para que o Senhor abrandasse o coração das pessoas a fim de que recebessem a verdade e lhes mostrassem alguma hospitalidade. Na maioria das noites, os élderes iam dormir com fome. “Nossos amigos parecem ser bem poucos”, escreveu William em seu diário. “O diabo está determinado a nos matar de fome.”28

Outro fator que complicava seu trabalho era o racial. Um ano antes, a assembleia legislativa de Utah havia debatido a questão da escravidão de negros em Utah. Nem Brigham Young, nem os legisladores queriam que a escravidão fosse difundida na região, mas muitos santos do sul dos Estados Unidos já tinham trazido escravos para o território. Brigham acreditava que todas as pessoas eram seres humanos e se opunha à escravidão, como a existente no sul dos Estados Unidos, onde os homens e as mulheres escravas eram considerados propriedade e careciam de diretos básicos. Porém, como a maioria das pessoas do norte dos Estados Unidos, ele considerava os negros aptos para a servidão.29

Durante os debates, Brigham declarou pela primeira vez que os homens descendentes de africanos não mais poderiam ser ordenados ao sacerdócio. Antes dessa época, alguns homens negros tinham sido ordenados e, posteriormente, não houve restrição para outras raças ou etnias. Ao explicar a restrição, Brigham repetiu uma noção muito difundida, porém equivocada, de que Deus havia amaldiçoado os negros descendentes de africanos. Contudo, ele também declarou que, em algum dia futuro, os santos negros “teriam todos os privilégios e muito mais” do que os desfrutados por outros membros da Igreja.30

O apóstolo Orson Pratt, que servia na assembleia legislativa, opôs-se à liberação da escravidão no território e advertiu os legisladores para que não a infligissem sobre um povo sem a autoridade de Deus. “Tomaremos então os inocentes africanos que não cometeram pecado algum”, perguntou ele, “e os condenaremos à escravidão e ao cativeiro, sem receber nenhuma autoridade do céu para assim o fazer?”31

Além disso, Orson Spencer, antigo presidente de missão que havia servido na assembleia legislativa, questionava como a restrição afetaria o trabalho missionário. “De que modo o evangelho poderá ser levado à África?”, perguntou ele. “Não poderemos lhes dar o sacerdócio. Como eles o obterão?”32

Porém, tais dúvidas sobre a restrição ao sacerdócio permaneceram sem solução, e a assembleia legislativa acabou votando para que fosse criado um sistema de “servidão” negra no território.33

Se o discurso de Brigham influenciou diretamente as ações de William e seus companheiros missionários na África do Sul, seus escritos não fazem nenhuma menção disso. O discurso não proibia os homens e as mulheres de raça negra de se filiarem à Igreja. Mas, embora as outras igrejas procurassem fazer conversos entre a população negra, William, Jesse e Leonard concentraram seus maiores esforços nos habitantes brancos da cidade.34

Certo dia, após um mês de pregação malsucedida, William se afastou vários quilômetros da cidade à procura de novos lugares para pregar. Chovia muito e, em pouco tempo, ele ficou com as calças e os sapatos encharcados. Depois de certo tempo, ele parou em uma hospedaria e se apresentou como missionário santo dos últimos dias.

O estalajadeiro o encarou sem demonstrar emoção. “Não me importo que diabo você seja”, disse o estalajadeiro, “desde que pague sua estadia”.

“Viajamos e pregamos o evangelho sem bolsa nem alforje”, começou a explicar William, mas o estalajadeiro prontamente o pôs para fora.

William se arrastou penosamente para dentro da noite chuvosa, com os pés doloridos e machucados. Logo o vento ficou mais forte, e ele implorava abrigo em toda casa pela qual passava. Quando chegou à cidade de Mowbray, a mais de seis quilômetros da Cidade do Cabo, já tinha sido rejeitado 16 vezes.

Em Mowbray, ele bateu na porta de uma casa, e dois homens apareceram. William perguntou ao mais jovem se ele tinha um quarto vago. O rapaz queria ajudá-lo, mas não tinha um lugar para acolhê-lo durante a noite.

Desapontado, William se despediu e voltou a andar na chuva. Contudo, pouco depois, o homem mais velho o alcançou e ofereceu a William um lugar para dormir em sua casa. Enquanto caminhavam, ele se apresentou, dizendo ser Nicholas Paul, sócio do outro homem que atendera à porta, Charles Rawlinson. Eram empreiteiros de obras da Inglaterra e tinham se mudado para a África do Sul para encontrar trabalho.

William e Nicholas chegaram à casa de Nicholas pouco depois das 9 horas. As roupas de William estavam ensopadas, por isso a esposa de Nicholas, Harriet, rapidamente acendeu a lareira. Depois, serviu-lhe uma refeição quente, e William cantou um hino e orou. Então, conversaram por duas horas antes de serem vencidos pelo sono e se recolherem para dormir.35


Poucos dias após o encontro com Nicholas e Harriet Paul, William se preparou para pregar a alguns prisioneiros numa cadeia que ficava próxima da casa da família Paul. Nicholas foi ouvir o sermão com Charles Rawlinson, e os dois homens ficaram impressionados com a mensagem de William. Harriet disse ao missionário que ele era bem-vindo para pousar na casa deles sempre que precisasse. Pouco depois, a família Paul ofereceu a casa deles para a realização de uma reunião da Igreja.

Nicholas empregava entre 40 e 50 pessoas em Mowbray e tinha boa reputação. Mas, quando algumas pessoas da cidade ficaram sabendo da reunião, ameaçaram quebrar as janelas e portas de sua casa e pôr fim ao encontro. Nicholas disse que todos eram bem-vindos para participar, mas ameaçou atirar em qualquer pessoa que tentasse insultar William ou qualquer outra pessoa que estivesse na casa. Quando chegou o dia da reunião, William pregou sem interrupção para uma casa lotada.36

Com a ajuda de Nicholas, a Igreja começou a crescer na Cidade do Cabo. Certa noite, pouco tempo depois da primeira reunião na casa da família Paul, William disse a Nicholas que não postergasse o batismo se estivesse convencido da verdade. Nicholas disse que estava pronto para ser batizado, mas, como estava muito escuro e chovia, ele achava que William preferiria não sair de casa numa noite daquelas.

“Sim, sairei”, respondeu William. “Nem a chuva, nem a escuridão me impedem de prosseguir.”

William batizou Nicholas imediatamente e, nos dias subsequentes, batizou Harriet e também Charles e a esposa, Hannah.37 Enquanto isso, Jesse Haven redigiu vários folhetos sobre a doutrina da Igreja e o princípio do casamento plural, e os missionários os distribuíram pela cidade.38

Nos primeiros dias de setembro, os missionários santos dos últimos dias tinham batizado mais de 40 pessoas e organizado dois ramos a sudeste da Cidade do Cabo.39 Entre os membros novos, estavam duas mulheres negras, Sarah Hariss e Raichel Hanable, e uma mulher africâner chamada Johanna Provis.40

Com dois ramos organizados, os missionários reuniram os santos da África do Sul em 13 de setembro e designaram cinco homens e três mulheres para servir missão na área da Cidade do Cabo ou distribuir folhetos na vizinhança deles.41 Mas Jesse Haven sentia que a região precisava de ainda mais missionários.

“Se tivermos meia dúzia de élderes a mais aqui, haverá muito trabalho para eles fazerem”, escreveu ele à Primeira Presidência. “Os que foram batizados são muito unidos e estão determinados a fazer o que é certo. Eles se regozijam por estarem vivos nestes dias e estão com o rosto voltado a Sião.”42


Por volta dessa época, George Q. Cannon e Jonathan Napela terminaram a tradução do Livro de Mórmon para o havaiano. George mal conseguia conter sua alegria. Nada em sua missão lhe proporcionara mais satisfação e crescimento espiritual. Depois de iniciar o projeto, ele tinha sentido mais o Espírito ao pregar, mais poder ao testificar e mais fé ao administrar as ordenanças do sacerdócio. Seu coração transbordava de gratidão.43

Vários dias mais tarde, numa conferência de 20 missionários em Wailuku, George e os outros élderes trocaram ideias sobre a melhor maneira de publicar o livro. George tinha trabalhado como aprendiz de tipógrafo no escritório do Times and Seasons em Nauvoo, por isso tinha uma noção do que seria necessário para realizar o projeto. Podiam contratar um tipógrafo nas ilhas ou podiam comprar uma prensa tipográfica e materiais, e publicar o livro eles mesmos.

“Da minha parte”, disse George, “não considero minha missão plenamente concluída até que eu veja o Livro de Mórmon na gráfica”.44

Os missionários concordaram e decidiram imprimir o livro por conta própria. Designaram George e dois outros a viajarem pelas ilhas para levantar fundos para a publicação, coletando doações dos santos e vendendo antecipadamente exemplares do livro.

Em seguida, trocaram ideias sobre a reunião dos santos. Mais de 3 mil havaianos tinham se filiado à Igreja nos três anos desde que os missionários haviam chegado às ilhas, mas sua pobreza e as rígidas leis de emigração do Havaí os proibiam de deixar permanentemente o reino. Ao ficar sabendo do problema, Brigham Young aconselhou os santos a encontrarem “uma ilha adequada, ou parte de uma ilha” onde pudessem se reunir em paz até que o caminho se abrisse para que eles fossem para Utah.45

Francis Hammond, um dos missionários designados a encontrar o local temporário de reunião, recomendou a bacia Palawai, em Lanai, uma ilha que ficava pouco a oeste de Maui. “Nunca vi um lugar melhor para a colonização dos santos nestas ilhas do que aquele”, comentou ele quando viu a região pela primeira vez. Seu único defeito, acreditava ele, era a escassez de chuvas durante parte do ano. Mas, se os santos construíssem reservatórios, como fizeram em Salt Lake City, teriam água em abundância durante a estação de estiagem.

No dia seguinte, os santos havaianos votaram em apoio à decisão de publicar o Livro de Mórmon e de encontrar um lugar de reunião nas ilhas.46 Duas semanas depois, George, Napela e vários missionários viajaram até Lanai para explorar a bacia Palawai. Partiram depois do desjejum, em 20 de outubro, e escalaram a íngreme e rochosa encosta de uma montanha, até um pequeno platô de onde eles podiam ter uma vista da bacia. A bacia tinha mais de três quilômetros de largura, era de um formato muito belo e estava isolada da vista do mar.

“Era um pedaço de terra esplêndido que parecia estar muito bem adaptado para um lugar de reunião”, escreveu George em seu diário. “Fez-me lembrar de Deseret.”47

Capítulo 13

Por todos os meios possíveis

acampamento com tendas indígenas

No outono de 1853, Augusta Dorius já morava em Salt Lake City havia um ano. A cidade já era quase tão grande quanto Copenhague. A maioria das construções era composta de cabanas de toras ou estruturas de adobe, térreas ou com um andar superior. Além da grande casa do conselho, onde muitas reuniões do governo e da Igreja eram realizadas, os santos tinham construído um escritório e um curral, para coleta do dízimo, e um salão social para bailes, peças de teatro e outros eventos da comunidade. Perto dali, no quarteirão do templo, havia várias oficinas para a construção do templo e de um novo tabernáculo de adobe que acomodaria aproximadamente 3 mil pessoas.1

Como outras jovens imigrantes que moravam no vale, Augusta trabalhava como empregada para uma família. O fato de morar com a família e trabalhar para ela a ajudou a aprender rapidamente a falar inglês. Ainda assim, ela tinha saudades da Dinamarca e de sua família.2 Seu irmão, Johan, tinha sido libertado da prisão na Noruega e agora ele e Carl estavam pregando o evangelho na Dinamarca e na Noruega às vezes como companheiros. O pai também pregava por toda a Dinamarca quando não estava cuidando das três irmãs menores de Augusta. A mãe de Augusta morava em Copenhague, ainda sem ter interesse pela Igreja.3

No final de setembro, Augusta ficou muito feliz quando uma companhia de mais de 200 santos dinamarqueses chegou a Salt Lake City. Embora sua família não estivesse entre eles, a chegada de outros dinamarqueses a ajudou a se sentir mais em casa em Utah. No entanto, assim que a companhia chegou, Brigham Young chamou os dinamarqueses recém-chegados para ajudarem a colonizar outra parte do território.4

Desde sua vinda para as Montanhas Rochosas, os santos tinham estabelecido assentamentos fora do Vale do Lago Salgado, incluindo Ogden, ao norte, e Provo, ao sul. Outros municípios haviam surgido entre esses assentamentos e além deles. Brigham também tinha enviado algumas famílias para construir uma forja no sul de Utah a fim de fabricar produtos de ferro e tornar o território mais autossuficiente.5

Brigham enviou os dinamarqueses para fortalecer os assentamentos do vale de Sanpete, situado a cerca de 160 quilômetros a sudeste de Salt Lake City.6 Os colonos haviam chegado a Sanpete no outono de 1849, a convite de Walkara, um poderoso líder da tribo ute que recebeu o batismo na primavera seguinte.7 Por volta dessa época, porém, surgiram problemas quando três colonos do vale Utah, próximo dali, mataram um índio ute chamado Old Bishop numa briga por causa de uma camisa.

Quando os utes retaliaram, Brigham tinha a princípio pedido aos colonos que não revidassem o ataque. Sua política geral era a de ensinar os santos a conviver em paz com os vizinhos índios. Mas, após consultar o líder do assentamento de Provo, que não falou a ele sobre o assassinato de Old Bishop, Brigham acabou ordenando à milícia que lutasse com os atacantes utes. No início de 1850, a milícia atacou um acampamento com aproximadamente 70 utes ao longo do rio Provo. Depois de dois dias de luta, o acampamento se dispersou, e a milícia perseguiu a maioria do bando até o extremo sul do lago Utah, onde cercou e matou os homens utes remanescentes.

A rápida e sangrenta operação militar deu fim aos combates na região de Provo.8 Mas a tensão por ela criada rapidamente se espalhou até o vale Sanpete, onde os colonos tinham tomado posse de boas terras, bloqueando o acesso dos índios a áreas de pesca e caça. Devido à fome e ao desespero, alguns índios começaram a roubar gado ou exigir alimentos dos colonos.9

Os líderes territoriais também haviam irritado Walkara e seu povo ao regulamentarem o comércio na região, inclusive a prática de longa data de alguns índios, que capturavam membros de outras tribos para os venderem como escravos. Embora as leis de Utah proibissem os índios de vender seus cativos a mercadores de escravos espanhóis e mexicanos, Walkara e outros índios ainda conseguiam vendê-los aos santos como servos contratados. Muitos desses cativos eram mulheres e crianças, e os santos os compravam, acreditando estarem resgatando-os de tortura, abandono ou morte. Alguns santos contratavam os antigos cativos como trabalhadores, ao passo que outros os tratavam como membros da família.

A perda do mercado espanhol e mexicano teve graves consequências para o estilo de vida dos utes, particularmente por terem passado a depender mais do tráfico de escravos após perderem suas terras para os novos assentamentos.10

A tensão chegou ao máximo em julho de 1853, quando um homem do vale Utah matou um índio ute numa briga e Walkara retaliou.11 Os líderes da milícia de Salt Lake City ordenaram às unidades que reagissem de modo defensivo e se abstivessem de matar utes, mas alguns colonos contrariaram as ordens, e ambos os lados atacaram de modo brutal.12

Embora a mudança para o vale de Sanpete a colocasse bem no meio desse conflito, Augusta decidiu se unir aos santos dinamarqueses. Ao viajar para o sul, eles viram que os colonos cautelosos haviam abandonado as pequenas fazendas e cidades para construir fortes.13

No vale Sanpete, a companhia se estabeleceu num lugar chamado Spring Town. As 15 famílias do lugarejo haviam disposto suas cabanas num círculo fechado. Como não houvesse cabanas restantes, Augusta e os outros novos colonos ficaram morando em seus carroções. Todas as manhãs e noites, um tambor ordenava aos habitantes do assentamento que se apresentassem, e o bispo Reuben Allred designava quem ficaria de guarda e atribuía outros deveres. Como Augusta havia aprendido a falar inglês ao trabalhar para a família do Vale do Lago Salgado, o bispo a contratou para ser sua intérprete para os santos dinamarqueses.14

Com o tempo, a comida escasseou no assentamento, e o bispo enviou cavaleiros para Manti, uma cidade próxima, pedindo ajuda. Quando o grupo retornou, trouxeram a notícia de que Walkara tinha se mudado para o sul e já não constituía uma ameaça.15 Em outras partes do território, parecia que o conflito estava chegando ao fim.16

Mas as fortes nevascas e as temperaturas congelantes daquele inverno deixaram tanto os colonos quanto os utes mais desesperados que nunca à medida que as provisões foram escasseando. Temendo um ataque iminente à sua cidade, os líderes de Spring Town decidiram que todos precisavam se mudar para Manti por motivos de segurança. Em dezembro, Augusta e os outros colonos abandonaram a cidade enquanto uma tempestade de neve os fustigava.17


Enquanto Augusta se estabelecia em Manti e o conflito com o povo de Walkara continuava sem solução, Matilda Dudley, de 35 anos, reuniu-se com várias de suas amigas em Salt Lake City para trocar ideias sobre o que poderiam fazer para ajudar as mulheres e crianças índias.18

Desde o início do conflito com Walkara, Brigham Young e outros líderes da Igreja haviam pedido aos santos que parassem com as hostilidades contra os utes e outros povos nativos. “Procurem por todos os meios possíveis levar aos índios uma mensagem de paz”, suplicou ele.

Na Conferência Geral de Outubro de 1853, Brigham tinha comentado que os missionários estavam viajando pelo mundo inteiro para reunir Israel, ao passo que os índios — que eram remanescentes da casa de Israel — moravam no meio deles. Ele então chamou mais de 20 missionários para passarem o inverno aprendendo os idiomas dos índios para que pudessem servir entre eles na primavera.

Brigham também aconselhou aos santos que não retaliassem caso os índios lhes roubassem cavalos, gados ou outras propriedades. “Vocês deveriam se sentir envergonhados por quererem matá-los”, disse ele. “Em vez de assassiná-los, preguem o evangelho a eles.”19 Parley Pratt também pediu aos santos que alimentassem e vestissem as mulheres e crianças índias.20

Essas palavras tinham inspirado Matilda, uma mãe que criava o filho sozinha. Quando ela era um bebê no leste dos Estados Unidos, os índios haviam matado o pai dela e raptado ela e sua mãe. Mas um índio idoso havia demonstrado compaixão, intervindo para lhes salvar a vida. Desde essa época, ela tinha passado a valorizar muito a união, a humildade e o amor. Acreditava que era importante para ela e suas amigas organizarem uma sociedade de mulheres para confeccionar roupas para os índios.21

Uma de suas amigas, Amanda Smith, concordou em ajudar. Amanda era sobrevivente do massacre de Hawn’s Mill e havia integrado a Sociedade de Socorro Feminina de Nauvoo. Embora Brigham Young tivesse suspendido as reuniões da Sociedade de Socorro nove meses após a morte de Joseph Smith, Amanda e outras mulheres da Igreja haviam continuado a servir em suas comunidades e sabiam o quanto as Sociedades de Socorro podiam fazer de bom.22

Em 9 de fevereiro de 1854, Matilda realizou a primeira reunião oficial de sua nova organização de auxílio. Mulheres de várias partes da cidade se reuniram na casa dela e elegeram as líderes do grupo. Matilda se tornou a presidente e tesoureira, e ela pediu que cada irmã pagasse 25 centavos de dólar para se unir à sociedade. Também propôs que se unissem para fazer um tapete de retalhos e o vendessem a fim de levantar fundos para a compra de materiais para confeccionar roupas para as mulheres e crianças índias.23

As mulheres começaram a se reunir semanalmente por todo o restante do inverno e na primavera, costurando retalhos para o tapete e desfrutando a companhia mútua. “O Espírito do Senhor estava conosco”, registrou Amanda, “e a união prevalecia”.24


Quando chegou a primavera no Vale do Lago Salgado, os homens chamados para a missão indígena rumaram para o Sul, acompanhados por um grupo de 20 missionários designados para servir nas ilhas havaianas. Por volta dessa época, Brigham Young e vários líderes da Igreja também partiram de Salt Lake City para visitar os assentamentos do sul e se encontrar com Walkara. O líder ute prometera recentemente dar fim ao conflito em troca de presentes e um pedido de que fosse eliminada a oposição do território ao comércio de escravos.25

Sabendo que o conflito continuaria até que os colonos e os utes honrassem as leis territoriais e respeitassem os direitos uns dos outros, Brigham fez arranjos para se encontrar com Walkara num lugar chamado Chicken Creek, próximo do assentamento de Salt Creek, onde os colonos haviam matado nove utes no outono anterior.26

O grupo de Brigham chegara a Chicken Creek em 11 de maio. Cerca de 12 pessoas do acampamento ute, incluindo a filha de Walkara, estavam doentes. Vários guerreiros guardavam a tenda de Walkara. Com a permissão dos utes, Brigham e outros líderes da Igreja entraram na tenda e encontraram Walkara envolto em um cobertor, deitado no chão de terra. Outros líderes utes dos vales vizinhos estavam sentados ao redor.

Walkara parecia enfermo e mal-humorado. “Não quero falar. Quero ouvir o presidente Young falar”, disse ele. “Não tenho disposição nem espírito e sinto medo.”

“Eu lhe trouxe alguns bois de corte”, disse Brigham. “Quero que um seja abatido para realizarmos um banquete enquanto estivermos aqui.” Ele ajudou Walkara a se sentar e se sentou ao lado dele.27

“Irmão Brigham, imponha-me as mãos”, disse Walkara, “porque meu espírito se retirou de mim e quero que retorne”. Brigham lhe deu uma bênção e, embora Walkara logo parecesse ter melhorado, ele ainda se recusava a falar.28

“Deixem que Walkara durma um pouco e descanse por algum tempo”, disse Brigham aos outros homens que estavam na tenda.29 Ele deu aos utes gado, tabaco e farinha e, naquela noite, todo o acampamento se banqueteou.30

Na manhã seguinte, Brigham abençoou a filha de Walkara, e o médico da companhia deu medicamentos a ela e a outras pessoas enfermas do acampamento. Brigham então prometeu continuar sua amizade com os utes e se ofereceu para supri-los com alimentos e roupas caso prometessem não lutar. Mas não concordou em cancelar a proibição ao comércio de escravos.31

Walkara concordou em não mais atacar os colonos. “Agora nos entendemos”, disse ele. “Todos podemos prosseguir no caminho sem ter medo.” Os dois homens apertaram a mão e fumaram o cachimbo da paz.32

Prosseguindo sua viagem para o Sul com seu grupo de líderes e missionários da Igreja, ele discursou em cada assentamento, falando a respeito dos índios.33 “O Senhor me disse que é dever deste povo salvar os remanescentes da casa de Israel, que são nossos irmãos”, disse Brigham a uma congregação.

Lembrou-os de que muitos santos, antes de terem vindo para o Oeste, haviam profetizado ou tido visões de que compartilhariam o evangelho com os índios e lhes ensinariam coisas como costura e agricultura. Mas agora essas mesmas pessoas nada queriam fazer em relação aos índios. “Chegou o momento”, declarou ele, “em que terão de realizar o que viram há muitos anos”.34

Depois de visitar Cedar City, o assentamento dos santos mais ao sul do território, Brigham se despediu dos homens que rumavam para as missões entre os índios e no Havaí. Depois de retornar para o Norte, no primeiro domingo após voltar para casa, ele falou para as mulheres de Salt Lake City, dizendo que cada ala organizasse Sociedades de Socorro como a de Matilda Dudley para ajudar a confeccionar roupas para as mulheres e crianças índias.35

As alas do Vale do Lago Salgado logo organizaram mais de 20 Sociedades de Socorro para os índios. As mulheres visitavam as casas e pediam doações de roupas ou tapetes, material de costura e objetos que elas pudessem vender para levantar fundos.36


Entre os missionários que viajaram para o Sul com Brigham Young, estava Joseph F. Smith, de 15 anos, o filho caçula de Hyrum Smith, o patriarca martirizado. Na noite de 20 de maio de 1854, depois que Brigham partiu em sua viagem de volta para casa, Joseph estendeu um cobertor no chão duro e se deitou para dormir em Cedar City. Estivera na estrada durante toda a tarde, viajando pelo território a caminho da costa da Califórnia. Ainda assim, não conseguia dormir. Olhou para o céu, viu as inúmeras estrelas da Via Láctea e sentiu saudades de casa.

Joseph era o mais jovem dos 20 missionários que iam para o Havaí. Embora dois dos primos de seu pai tivessem sido chamados como ele, sentia que havia sido privado da companhia de todos que ele amava e reverenciava.37 Os rapazes de sua idade geralmente não eram chamados para servir missão. Joseph foi um caso especial.

Por quase dez anos — desde que seu pai e seu tio haviam sido assassinados —, ele vinha cultivando um temperamento “muito esquentado”. A coisa só havia piorado com o passar dos anos, quando passou a sentir que as pessoas não tinham demonstrado o devido respeito por sua mãe, Mary Fielding Smith. Joseph acreditava que ela havia sido frequentemente menosprezada após a morte do marido, em especial durante a jornada para o Oeste.38

Lembrava-se de como o capitão da sua companhia havia reclamado que Mary e a família dela retardariam o comboio de carroções. Porém, Mary havia jurado que ela e a família chegariam antes dele ao vale, e Joseph quisera ajudá-la a cumprir o juramento. Embora tivesse apenas 9 anos na época, ele conduziu um carroção, cuidou do gado e fez tudo que a mãe lhe pedia. No final, a forte fé e determinação dela fizeram com que a família chegasse ao vale antes do capitão, assim como ela dissera que faria.39

A família se estabeleceu ao sul de Salt Lake City, e Mary morreu de infecção pulmonar no outono de 1852. Joseph desmaiou quando ficou sabendo do falecimento dela.40 Por algum tempo, ele e sua irmã caçula, Martha Ann, moraram numa fazenda com uma mulher bondosa, mas ela também morreu. Sua tia, Mercy Thompson, passou então a cuidar de Martha Ann, enquanto o apóstolo George A. Smith, primo de seu pai, assumiu o papel de guardião de Joseph.

Joseph também contava com o apoio de seus irmãos mais velhos. Embora sua irmã mais velha, Lovina, continuasse em Illinois com o marido e os filhos, seu irmão mais velho, John, e suas irmãs mais velhas, Jerusha e Sarah, moravam perto dele.

Como muitos rapazes de sua idade, Joseph trabalhava cuidando do gado e das ovelhas da família.41 Porém, mesmo que estivesse ocupado com o trabalho, rapidamente se tornou indisciplinado e turbulento. Quando recebeu seu chamado para a missão, poderia tê-lo rejeitado, como alguns homens faziam, e continuado a dar vazão a sua raiva. Mas o exemplo de seus pais significava muito para ele. Em questão de semanas, foi ordenado ao Sacerdócio de Melquisedeque, recebeu sua investidura e foi designado para pregar o evangelho de Jesus Cristo.42

Ao se deitar sob as estrelas em Cedar City, não sabia muito sobre o lugar para onde estava indo e o que o esperava lá. Afinal, tinha apenas 15 anos. Às vezes se sentia forte e importante, mas em outras ocasiões tinha noção de sua fraqueza e ignorância.

O que ele sabia sobre o mundo ou sobre como pregar o evangelho?43


Uma paz cautelosa desceu sobre o vale Sanpete no verão de 1854. Nessa época, Augusta Dorius tinha se unido ao bispo Reuben Allred e uma companhia de 15 famílias na construção de um forte, 11 quilômetros ao norte de Manti. A maioria dos membros da companhia era composta de dinamarqueses vindos de Spring Town, mas um santo canadense chamado Henry Stevens, sua esposa, Mary Ann, e seus quatro filhos tinham seguido com eles. Henry e Mary Ann eram membros da Igreja havia muitos anos e estavam entre os mais recentes pioneiros que se haviam mudado para o vale Sanpete.44

O bispo Allred estabeleceu a companhia ao longo de um córrego, próximo de uma cadeia de montanhas de baixa altitude. O local parecia ideal para o assentamento embora o temor do ataque dos índios, que tiravam seu sustento da terra, tivesse afastado a maioria das pessoas daquela região.

Os santos começaram imediatamente a construir seu forte. Extraindo pedras calcárias das montanhas próximas, construíram muros de quase três metros de altura, com aberturas a cada 6 metros para defesa. Na frente da estrutura, à qual deram o nome de forte Ephraim, construíram uma torre e um imenso portão, onde os guardas podiam ficar de vigia, atentos a perigos. Dentro dele, o forte era grande o suficiente para abrigar os cavalos, o gado e as ovelhas dos colonos durante a noite. Ao longo do lado interno dos muros, havia casas para os colonos, feitas de barro e toras.

Augusta morava com o bispo Allred e a esposa dele, Lucy Ann. A família Allred tinha sete filhos morando com eles, incluindo Rachel, uma jovem índia que eles tinham adotado. Embora os colonos do forte Ephraim estivessem mal equipados, estavam esperançosos em relação ao futuro de seu novo assentamento. Durante o dia, as crianças brincavam no forte, enquanto os homens e as mulheres trabalhavam.45

Mais de dois anos já haviam se passado desde que Augusta partira da Dinamarca. Muitas famílias a tinham acolhido e cuidado dela, mas ela queria ter sua própria família. Aos 16 anos, havia chegado à idade em que algumas mulheres da fronteira se casavam. Ela já tinha até recebido algumas propostas de casamento, mas ainda se achava muito jovem.

Então, Henry Stevens a pediu em casamento, e ela pensou seriamente a respeito. Algumas mulheres se davam muito bem num casamento plural, mas outras consideravam a prática difícil e às vezes solitária. Com frequência, aquelas que decidiam viver o princípio o faziam mais por fé do que por amor romântico. Do púlpito, e em particular, os líderes da Igreja com frequência aconselhavam aos que praticavam o casamento plural que cultivassem a abnegação e o puro amor de Cristo no lar.46

No vale Sanpete, aproximadamente um quarto dos colonos fazia parte de famílias que praticavam o casamento plural.47 Ao refletir sobre o princípio, Augusta sentiu que ele era correto. Embora mal conhecesse Henry e Mary Ann, que era frágil e sempre doente, ela acreditava que fossem pessoas boas que queriam cuidar dela e lhe prover o sustento. Ainda assim, seria um ato de fé se unir àquela família.

Augusta por fim decidiu aceitar a proposta de Henry, e eles logo viajaram para Salt Lake City a fim de serem selados na casa do conselho. Quando retornaram ao forte Ephraim, Augusta assumiu seu lugar na família. Como a maioria das mulheres casadas, ela ordenhava as vacas, fazia velas, manteiga e queijo, fiava lã, tecia e confeccionava roupas para a família, às vezes adornando as roupas femininas com belos bordados de crochê.

A família não tinha fogão, por isso Augusta e Mary Ann cozinhavam na lareira, que também aquecia e iluminava sua casa simples. À noite, às vezes participavam de bailes e outras atividades com os vizinhos.48


No dia 26 de setembro, a chuva tornava as ilhas havaianas pouco visíveis para Joseph F. Smith e os outros missionários que rumavam para o porto de Honolulu. No final da tarde, o aguaceiro cessou e o sol irrompeu em meio à névoa, revelando uma bela vista da ilha mais próxima. Do convés do navio, os missionários viam a água da tempestade escoar por um estreito desfiladeiro que ia dar no oceano Pacífico.49

Os missionários chegaram a Honolulu no dia seguinte, e Joseph foi enviado para a casa de Francis e Mary Jane Hammond na ilha de Maui. A maioria dos missionários originais enviados ao Havaí, inclusive George Q. Cannon, já havia retornado aos Estados Unidos. Sob a liderança de Francis, a obra missionária continuava a florescer na ilha embora muitos santos estivessem se preparando para se mudar para um novo local de reunião, em Lanai, onde os santos tinham estabelecido um assentamento no vale Palawai.50

Quase imediatamente após sua chegada à casa da família Hammond, Joseph foi acometido do que os missionários chamavam de “febre lahaina”. Mary Jane, que dirigia uma escola para os havaianos enquanto o marido pregava, começou a cuidar de Joseph para que ele recuperasse a saúde e o apresentou aos membros locais.51

Em 8 de outubro de 1854, o primeiro domingo de Joseph em Maui, ela o levou para uma reunião dominical com seis santos havaianos. Tendo ouvido falar que Joseph era sobrinho do profeta Joseph Smith, os santos estavam ansiosos para ouvi-lo pregar. Aparentemente o amaram imediatamente mesmo que não conseguisse falar uma única frase no idioma deles.

Nos dias seguintes, o estado de saúde de Joseph piorou. Depois de dar aulas na escola, Mary Jane dava um chá de ervas para Joseph e imergia os pés dele em água para ajudar a baixar a febre. Ele suou a noite inteira e, pela manhã, sentiu-se melhor.

Pouco depois, Francis o levou para conhecer Lanai. Ali moravam cerca de uma centena de santos, mas os missionários esperavam que mais de mil se reunissem nos meses subsequentes. A fim de se prepararem para a chegada deles, alguns missionários tinham começado a arar a terra, plantar sementes e mapear uma cidade.52

Depois de sua visita a Lanai, Joseph voltou a Maui, onde moravam Jonathan e Kitty Napela. Joseph queria ser um bom missionário, por isso se dedicou ao trabalho, estudando o idioma e se reunindo com frequência com os santos havaianos.

“Sinto-me feliz de dizer que estou pronto para enfrentar tudo o que for necessário pela causa na qual estou engajado”, escreveu ele para George A. Smith, “e espero e oro sinceramente que eu possa me provar fiel até o fim”.53

Capítulo 14

Difícil estarmos separados

homem puxando um carrinho de mão

No final de março de 1855, Ann Eliza Secrist já estava sem receber notícias do marido, Jacob, havia nove meses. Algumas correspondências tinham sido destruídas durante o conflito recente com Walkara. E o fechamento das rotas do correio durante o inverno, sem dúvida, explicava em parte a ausência de notícias. Ela queria escrever para ele, mas não sabia para onde enviar as cartas. A última coisa que ficara sabendo era que Jacob estava pregando o evangelho na Suíça. Mas uma carta recente de Daniel Tyler, o líder da missão naquele país, dava a entender que ele não sabia onde Jacob estava servindo.1

Mais de um ano antes, Jacob escrevera que em breve retornaria a Utah. Faltavam seis meses para o terceiro aniversário de seu chamado missionário, e Ann Eliza esperava que ele voltasse para casa por volta dessa época. Outros missionários que partiram do território com ele já estavam de volta, e os filhos começavam a perguntar por que o pai ainda não voltara para casa.2

Muito havia acontecido na família recentemente. Quando irrompeu a luta entre os colonos e os índios utes, Ann Eliza decidiu não voltar para a fazenda, mas permanecer em Salt Lake City, onde era mais seguro morar. Por algum tempo, ela alugara parte da casa na cidade para uma família recém-chegada de imigrantes escoceses. Também criara dois porcos bem gordos que proveram grande parte do alimento para a família durante o inverno. As crianças estavam frequentando a escola, melhorando na leitura e aprendendo o evangelho. Durante a ausência de Jacob, ela tinha sido cuidadosa com os recursos da família e procurara ficar longe de dívidas.3

Em 25 de março de 1855, três santos suíços visitaram Ann Eliza e as crianças. Um dos santos era Serge Louis Ballif, um dos primeiros conversos da Igreja na Suíça. Ele era o líder da missão suíça quando Jacob lá chegou. Antes de Serge e a família emigrarem para Sião, Jacob lhe entregara uma história escrita de sua missão e presentes para serem entregues a Ann Eliza e às crianças.

No final da história sobre a missão, Jacob anotou algumas reflexões sobre seu serviço missionário. “Ainda fiz pouco e só o tempo vai dizer o quanto farei de bom enquanto estiver na Suíça”, escreveu ele. “Tenho visto uns poucos se regozijarem muito com meus ensinamentos e confio que ainda verei neste país o momento em que os santos se regozijarão com o que ensino, que é simples.”4

Para Louisa e Mary Elizabeth, Jacob enviara tesouras, instruindo as meninas que as mantivessem brilhantes. Para Moroni, enviou uma caixinha cheia de soldadinhos de brinquedo e algumas bolas de gude a fim de serem compartilhados com o irmão de 2 anos, Nephi. Também prometeu levar para os meninos espadas da Europa.5

Depois de ler as experiências pessoais de Jacob, Ann Eliza lhe escreveu aos cuidados do escritório da missão em Liverpool, Inglaterra. Foi breve em sua carta, sem saber se chegaria até Jacob antes que ele retornasse para casa. Como sempre, compartilhou notícias das crianças e da fazenda.

“Tenho feito o melhor que posso o tempo todo desde que você partiu”, escreveu ela. “Oro a Deus que o abençoe e o preserve continuamente. Esse é o sincero desejo de sua afetuosa esposa.”6


Em 5 de maio de 1855, George Q. Cannon acordou pela manhã, em um dia gelado de primavera, no Vale do Lago Salgado. Ele voltara do Havaí e estava em casa desde novembro passado.7 Doze dias depois de seu retorno, pegara emprestado um terno que mal lhe servia e se casara com Elizabeth Hoagland, na casa dos pais dela — um momento pelo qual ele e Elizabeth ansiavam desde antes de George partir para servir sua primeira missão.8

Cinco meses depois do casamento, eles foram convidados a participar da dedicação da casa de investiduras, um novo edifício no quarteirão do templo, onde os santos poderiam receber as ordenanças sagradas enquanto o templo estava em construção.

Depois da dedicação, Elizabeth receberia a investidura, e ela e George seriam selados. O casal, em seguida, partiria para São Francisco, onde George serviria missão com o encargo de publicar a tradução do Livro de Mórmon em havaiano.

George e Elizabeth chegaram à casa de investiduras pouco antes das 8 horas. Era um edifício simples, sem adornos, construído com sólidas paredes de adobe, cinco chaminés e um alicerce de arenito. No interior, o prédio era dividido em várias salas para a realização das ordenanças de investidura e de selamento.

Brigham Young realizou o serviço dedicatório no andar de cima, e Heber Kimball proferiu a oração dedicatória. Quando a oração terminou, Brigham anunciou que a estrutura estava pura e declarou que aquela era a casa do Senhor.9 Heber, Eliza Snow e outros administraram a investidura a cinco homens e três mulheres, incluindo Elizabeth. Depois, Heber selou George e Elizabeth para o tempo e a eternidade.

Mais tarde naquele dia, conforme planejado, o casal se despediu de suas respectivas famílias. George imaginava que a separação seria difícil para Elizabeth, uma professora que nunca saíra de perto da família, mas ela se manteve firme. Abraham Hoagland, o pai dela e bispo em Salt Lake City, abençoou o casal e os incentivou a fazer o que era certo. “Cuide bem de Elizabeth e a trate com carinho”, disse ele a George.10

O casal viajou para o Sul seguindo a mesma rota que George tomara rumo à Califórnia, em 1849. Em 19 de maio, chegaram a Cedar City na mesma ocasião em que a Primeira Presidência estava lá para inspecionar a nova indústria de ferro na cidade. George ficou impressionado com o progresso dos santos ali. Além de estabelecerem uma forja, tinham construído casas confortáveis, uma capela e um muro de proteção ao redor da cidade.11

No dia seguinte, Brigham organizou uma estaca e chamou Isaac Haight para presidi-la.12

Mais tarde, na casa de Haight, George e Elizabeth conversaram com Brigham Young e Jedediah Grant, que fora chamado recentemente para a Primeira Presidência depois do falecimento de Willard Richards, em 1854. Brigham e Jedediah abençoaram George para que escrevesse e publicasse com sabedoria e inspiração e falasse sem temor. Também abençoaram Elizabeth para que realizasse um bom trabalho ao lado de George e que um dia pudesse se reunir a seus entes queridos no vale.

Depois, Brigham incentivou George a desenvolver o máximo possível seus talentos. “Você tem que ressoar!”, acrescentou Jedediah. “Mostre-lhes que você é um Cannon [canhão em inglês].”13


Na mesma época em que o casal Cannon partiu para a Califórnia, Martha Ann Smith, de 13 anos, recebeu uma carta do irmão mais velho, Joseph F. Smith, que estava no Havaí. “Estou muito bem e com boa saúde”, escreveu ele alegremente, “e cresci muito desde que você me viu pela última vez”.

Joseph não disse se esse crescimento era físico ou espiritual. Parecia muito mais interessado em dar conselhos fraternos à irmã caçula do que em descrever sua nova vida como missionário no Pacífico.

“Tenho muitos conselhos para você, Marty, que lhe serão benéficos por toda a sua vida neste mundo”, declarou ele com altivez. Incentivou-a a dar ouvidos aos irmãos mais velhos e não brigar com as irmãs. “Seja discreta e fervorosa”, aconselhou ele, “e há de crescer seguindo os passos de sua mãe”.14

Martha Ann gostou muito dos conselhos do irmão. Ela tinha apenas 11 anos quando a mãe faleceu, mas as lembranças dela permaneciam vivas em sua mente. Na infância, Martha Ann raramente vira a mãe viúva sorrir. Inclusive, quando Martha Ann ou os irmãos conseguiam fazer a mãe rir, consideravam aquilo um feito notável. Mas Mary tinha sido uma mãe amorosa, e para Martha Ann o mundo parecia vazio sem ela.

Martha Ann tinha poucas lembranças do pai, Hyrum Smith. Ela tinha só 3 anos quando ele morreu, mas ainda se lembrava de quando a mãe confeccionou uma calça para ele. Depois de vestir a calça, ele caminhou orgulhosamente de um lado para o outro, com as mãos no bolso. Ela se lembrava dele como um pai amoroso, bondoso e afetuoso com os filhos.15

Logo depois que chegou ao Vale do Lago Salgado, a família Smith se estabeleceu ao lado de um riacho, próximo a um desfiladeiro, a sudeste da cidade, e todos trabalharam juntos para estabelecer uma fazenda. Poucos anos depois, a família e os vizinhos foram organizados na Ala Sugar House, sob a liderança do bispo Abraham Smoot, um dos primeiros conversos de Wilford Woodruff. A ala ganhou esse nome devido à fábrica de propriedade da Igreja na região, administrada pelo bispo Smoot, que produzia açúcar de beterraba.16

Martha Ann e os irmãos se apoiavam mutuamente quando outras provações surgiam em seu caminho. O inverno ameno de 1854–1855 provocou secas em todo o território de Utah, que dependia do degelo de pesadas nevascas nas montanhas para suprir seus córregos e rios. A seca afligiu a família de Martha Ann, assim como todas as outras famílias. À medida que as semanas passavam e pouco chovia, a terra do vale foi ficando mais seca, matando as plantações que os santos semearam anteriormente naquele ano. As valas de irrigação começaram a ficar secas e rachadas.17

Para piorar as coisas, enxames de gafanhotos infestaram os assentamentos, devorando as escassas plantações e arruinando as perspectivas de uma boa colheita. Os santos de Sugar House e de outros assentamentos tentaram semear mais, porém a seca tornou o cultivo difícil, e os gafanhotos continuaram a aparecer.18

Parecia não ter haver fim para as provações sofridas pela família Smith, e era previsível como a seca e a infestação afetariam a vida dos santos. Sendo a caçula da família, Martha Ann não tinha as mesmas responsabilidades que os irmãos dela tinham.19 Mas se esperava que todos os santos trabalhassem juntos para superar as dificuldades e ajudar a estabelecer Sião. O que ela poderia fazer?

Joseph lhe deu mais conselhos na carta seguinte. “Tenha paciência e longanimidade”, escreveu ele. “Seja mórmon em todos os aspectos e você será abençoada.”20


Nas pradarias, a quase 2 mil quilômetros a Leste dali, em um pequeno assentamento de emigrantes chamado Mormon Grove, o converso dinamarquês Nicolai Dorius e uma companhia de carroções de quase 400 santos da Dinamarca, Noruega, Nova Escócia e Inglaterra partiam rumo ao Vale do Lago Salgado.21 Os líderes da companhia esperavam que a jornada levasse quatro meses, o que significava que Nicolai poderia se reunir à filha Augusta, agora com 17 anos de idade, já em setembro daquele ano.22

Seis meses antes, Nicolai tinha saído de Copenhague com as três filhas mais novas, Caroline, Rebekke e Nicolena. Os filhos Johan e Carl ainda estavam servindo missão na Noruega, por isso ele não pôde se despedir deles pessoalmente.23

Os emigrantes, tal como Nicolai, estavam ansiosos para chegar a Sião, não apenas devido à sua fé no evangelho restaurado de Jesus Cristo, mas também porque queriam fugir da iniquidade do mundo e encontrar uma vida melhor para eles mesmos e para a família na terra prometida. Inspirados pela entusiástica descrição de Utah feita pelos missionários, muitos imaginavam o Vale do Lago Salgado como um Jardim do Éden e fizeram todo tipo de sacrifício para lá chegarem.24

Levou seis semanas para cruzarem o oceano. Peter Hansen, o primeiro missionário na Dinamarca, assumiu o encargo de liderar a companhia a bordo do navio. Ele e os dois conselheiros organizaram os santos em sete distritos e chamaram élderes para manter a ordem e a limpeza em cada unidade. Quando o navio aportou em New Orleans, o capitão elogiou o bom comportamento deles.

“No futuro”, disse ele, “se eu puder escolher, não transportarei ninguém a não ser santos dos últimos dias”.25

Em New Orleans, Nicolai e as filhas tinham embarcado em um barco a vapor e subido o gelado rio Mississippi com sua companhia. Uma tragédia os acometeu quando Nicolena, de 6 anos, ficou doente e morreu pouco depois de partirem de New Orleans. Muitas outras pessoas morreram nos dias que se seguiram. Quando Nicolai chegou a Mormon Grove, Caroline, de 14 anos, tinha morrido também, restando apenas ele e Rebekke, de 11 anos, para se juntarem a Augusta quando chegassem a Utah.26

Em Mormon Grove, os santos que emigravam encontraram trabalho temporário a fim de juntar dinheiro para comprar bois, carroções e suprimentos para a jornada para o Oeste.27 Eles também foram organizados em companhias. Nicolai, Rebekke e outros santos da Dinamarca e da Noruega foram incluídos numa companhia liderada por Jacob Secrist.28 Depois de ficar longe da esposa e dos quatro filhos por quase três anos, Jacob estava ansioso por se reunir a eles em Utah. Como não falava dinamarquês, que era o idioma falado pela maioria das pessoas da companhia, ele dependia de Peter Hansen para traduzir para ele.29

A companhia partiu de Mormon Grove em 13 de junho de 1855. Movendo-se para o Oeste, Jacob com frequência se impacientava com os emigrantes escandinavos. A maioria nunca tinha conduzido bois antes e, às vezes, era preciso quatro homens para manter dois bois se movendo em uma linha reta.30 Mais preocupante era a saúde da companhia. Os santos emigrantes geralmente tinham poucas mortes, ou nenhuma, em suas companhias.31 Mas, no primeiro dia de viagem, um homem da companhia de Secrist morreu de cólera. Outras oito pessoas morreram nas duas semanas subsequentes.32

Os élderes do acampamento jejuaram e deram bênçãos de cura e consolo para os enfermos, mas a cólera continuou a ceifar mais vidas. Quase no final de junho, o próprio Jacob ficou enfermo demais para acompanhar os carroções. Outros líderes da companhia enviaram um transporte para buscá-lo e, quando ele se reuniu novamente ao acampamento, os élderes o abençoaram. No entanto, sua saúde continuou a piorar e ele faleceu na tarde de 2 de julho. Os emigrantes quiseram transportar seus restos mortais até sua esposa e seus filhos no vale, mas, sem ter como preservar o corpo, enterraram-no à margem da trilha.33

Nicolai, Rebekke e o restante da companhia prosseguiram viagem durante todo o mês de agosto e as primeiras semanas de setembro. Não houve outros surtos de cólera entre eles. Em 6 de setembro, subiram a última passagem para as montanhas e acamparam ao lado de um córrego, a pouca distância de seu destino.

Na manhã seguinte, os emigrantes se lavaram e vestiram roupas limpas em preparação para a chegada ao Vale do Lago Salgado. Peter Hansen disse que deviam se limpar depois que chegassem à cidade, já que teriam uma estrada poeirenta pela frente, mas os emigrantes decidiram se arriscar a se sujarem com a poeira.

Viajaram os poucos quilômetros restantes cheios de esperança, ávidos para ver o local sobre o qual tanto ouviram falar. Mas, ao entrarem no vale, não viram um Jardim do Éden. Encontraram um vale assolado pela seca, coberto de arbustos de artemísia, brancas salinas e gafanhotos até onde a vista alcançava.34


A notícia da morte de Jacob Secrist foi publicada no Deseret News, em 8 de agosto, aproximadamente um mês depois da chegada da companhia ao vale. A morte dele foi noticiada com a de dois outros missionários, Albert Gregory e Andrew Lamoreaux, que também morreram a caminho de casa em Utah. “Esses irmãos estavam a caminho de casa com o coração jubiloso”, declarava a notícia. “Mas os decretos de uma Providência onisciente foram cumpridos e, como bons soldados, eles se curvaram humildemente com sua armadura e agora descansam de seus labores, e suas obras os seguirão.”35

Nessa época, Ann Eliza recebeu a última carta de Jacob. Era datada de 21 de maio, de St. Louis. “Estou com boa saúde e pronto para subir o rio Missouri”, dizia ele em um trecho da carta. “Que o Deus de Israel abençoe você com as bênçãos de Seu Espírito e com saúde, fé e uma vida longa.”36

Depois que a companhia chegou, no início de setembro, dois homens entregaram os pertences pessoais de Jacob e um cavalo a Ann Eliza. Conforme prometido, Jacob tinha uma espada para cada um dos filhos e material para a confecção de belos ternos. Para as filhas, ele trouxera vestidos e tecidos. Seu carroção também continha suas cartas e outros documentos, e suprimentos para um ano para a família.37

De acordo com o que planejara alguns anos antes, Ann Eliza se mudou com os filhos de volta para a fazenda, ao norte de Salt Lake City. As cartas que ela e Jacob trocaram foram organizadas e preservadas. Em uma delas, que enviara no primeiro ano da missão de Jacob, Ann Eliza refletia sobre o sacrifício que eles foram conclamados a fazer.

“Parece difícil estarmos separados daqueles a quem mais amamos neste mundo”, escreveu ela, “mas, quando reflito sobre o motivo pelo qual foram enviados, sim, o de auxiliar no progresso do reino de Deus, não tenho razão para reclamar, nem murmurar”.

“Nem preciso fazê-lo”, escreveu ela, “sabendo que maior será minha exaltação naquele mundo, onde não há tristeza nem pranto, e onde todas as lágrimas serão enxugadas de nossos olhos”.38


Na Conferência Geral de Outubro de 1855, Brigham Young sabia que os santos de Utah estavam passando dificuldades. Os gafanhotos tinham devastado muitas de suas hortas e plantações, e a seca destruíra o que os gafanhotos não o fizeram. Nuvens de pó fustigavam os vales, e incêndios grassavam nos desfiladeiros secos, destruindo o pasto para o gado. Sem ter como alimentar as parelhas de bois que carregavam pedras para o local do templo, o trabalho na casa do Senhor foi interrompido.

Brigham e seus conselheiros acreditavam que a seca e a infestação eram um “castigo suave” do Senhor. “Deem ouvidos aos sussurros do Espírito e não tentem ao Senhor de modo a fazer com que caia sobre nós uma vara disciplinadora mais pesada”, instruiu ele aos santos naquele outono, “para que nos livremos mais plenamente desses julgamentos do Rei das alturas do céu”.39

Mais preocupante para Brigham era o efeito da devastação na coligação. Embora as missões da Índia, China e Tailândia tivessem resultado em poucas conversões, as missões da Europa e da África do Sul tinham produzido ramos de santos que desejavam se reunir em Sião. A emigração era cara, porém, e a maioria dos recém-conversos era pobre e precisava de empréstimos do Fundo Perpétuo de Emigração.40

Infelizmente, a seca havia devastado a economia em Utah, que dependia quase inteiramente de colheitas bem-sucedidas. Privados de seu meio de sustento, muitos santos não conseguiam pagar o dízimo nem devolver o que haviam pegado emprestado do fundo. Logo, a Igreja incorreu em pesadas dívidas ao pedir empréstimos para ajudar a financiar as grandes companhias de carroções que iriam para o Oeste naquele ano.41

Em uma epístola de outubro de 1855 aos santos, a Primeira Presidência lembrou aos membros da Igreja que a doação ao fundo de emigração ajudava a trazer seus companheiros santos a um local onde poderiam desfrutar da industriosidade e do trabalho honesto. “Essa é a verdadeira caridade”, declarou a presidência, “não apenas alimentar os famintos e vestir os desnudos, mas colocá-los em uma situação na qual possam produzir, com seu trabalho, a própria subsistência”.42

Brigham e seus conselheiros rogaram aos santos que doassem o que pudessem para o Fundo Perpétuo de Emigração. Cientes de que a maioria dos santos não poderia contribuir muito, também propuseram um meio mais econômico para a coligação. Em vez de virem para Sião em dispendiosos carroções puxados por bois, os futuros emigrantes poderiam viajar com carrinhos de mão.

Seria mais rápido e mais barato atravessar as planícies puxando carrinhos de mão, explicou a Primeira Presidência, do que viajar de carroção. Cada carrinho de mão consistiria de um caixote de madeira montado sobre um eixo com duas rodas de carroção. Como os carrinhos eram menores do que os carroções, os emigrantes não poderiam trazer muitos suprimentos e provisões neles. Mas carroções que partiriam do vale poderiam encontrar os carrinhos de mão no meio do caminho para lhes prover a assistência necessária.

“Que todos os santos que tiverem condições se reúnam em Sião e venham enquanto o caminho está aberto diante deles”, declarou a Primeira Presidência. “Que venham a pé, com carrinhos de mão de uma só roda ou de duas. Que cinjam os lombos e caminhem, e nada os impedirá nem os deterá.”43

Brigham imediatamente compartilhou o plano com o apóstolo Franklin Richards, presidente da Missão Europeia. “Quero que isso seja experimentado”, escreveu ele. “Depois, veremos que se tornará o modo preferido de cruzar as planícies.”44

Capítulo 15

Nas tempestades e nas calmarias

homens acenando da doca para passageiros de um navio

Em 26 de janeiro de 1856, o apóstolo Franklin Richards publicou a epístola da Primeira Presidência no Latter-day Saints’ Millennial Star, o jornal da Igreja na Inglaterra. Como editor do jornal, Franklin apoiou de modo entusiasmado o plano dos carrinhos de mão. “Os fiéis pobres das terras estrangeiras têm o consolo de saber que não foram esquecidos”, escreveu ele com regozijo.1

Desde os primeiros dias da Igreja, o Senhor ordenara aos santos que se coligassem e se preparassem para as tribulações que precederiam a Segunda Vinda de Jesus Cristo.2 Franklin acreditava que essas dificuldades ocorreriam em breve e que os santos europeus precisavam agir rapidamente para evitá-las.

Sabendo que alguns santos se preocupavam com as dificuldades da coligação por carrinhos de mão, apresentou a proposta como uma prova de fé. Também lembrou aos emigrantes que as ordenanças de exaltação os aguardavam na casa de investiduras. “Venham, todos os fiéis, que se mantiveram firmes nas tempestades e nas calmarias”, declarou ele. “Estamos prontos para lhes dar as boas-vindas em seu lar e para lhes conceder as bênçãos pelas quais tanto ansiaram.”3

Quase terminando seu chamado como presidente de missão, Franklin também planejava retornar para casa em Utah. Escrevendo para outros missionários que retornavam, ele os aconselhou a auxiliar os emigrantes de carrinhos de mão até que todos chegassem em segurança ao vale.

“Em sua jornada para casa”, orientou ele, “vocês devem procurar ajudá-los constantemente com sua experiência, orientá-los e consolá-los com seus conselhos, animá-los com sua presença, fortalecer-lhes a fé e manter o espírito de união e paz entre eles”.

“Os santos têm o direito de considerá-los anjos da libertação”, escreveu ele. “Cumpram essa responsabilidade como homens de Deus, pois cabe a vocês fazê-lo.”4


Naquele inverno, Jesse Haven viajou até Londres depois de ter servido por quase três anos como presidente de missão da África do Sul. Seus companheiros, William Walker e Leonard Smith, já tinham chegado à Inglaterra alguns meses antes, com 15 santos sul-africanos que rumavam para Sião.5 Em alguns dias, tanto William quanto Leonard estariam zarpando de Liverpool com quase 500 membros emigrantes da Igreja.6

Ávido para se reunir com a família, Jesse ansiava por sua própria viagem para casa. No entanto, ele já sentia saudades dos santos sul-africanos. Tinha sido um desafio constante encontrar pessoas para ensinar em uma região tão grande e diversificada, mas ele e seus companheiros foram bem-sucedidos e deixaram lá muitos amigos.7 Mais de 170 pessoas tinham sido batizadas na África do Sul, e quase todas permaneciam fiéis.

Embora Jesse tivesse o desejo de realizar mais em sua missão, ele acreditava que a Igreja na África do Sul cresceria com o tempo e que muitos mais de seus membros viriam para Sião.

“Não é uma questão tão fácil, como poderia se supor à primeira vista, estabelecer o evangelho em um país”, escreveu Jesse no relatório oficial para a Primeira Presidência, “onde as pessoas falam três ou quatro idiomas e são de diferentes origens, níveis, condições, castas e cor de pele, e apenas 200 ou 300 mil habitantes estão espalhados por um território que tem mais que o dobro do tamanho da Inglaterra”.8

Em um dia ensolarado de março, logo depois da chegada de Jesse à Inglaterra, outro grupo de cerca de 500 santos partiu de Liverpool rumo a Sião. Eram santos do Reino Unido, da Suíça, da Dinamarca, do leste da Índia e da África do Sul. Antes de partirem, Jesse se despediu dos emigrantes da África do Sul, triste por não poder se juntar a eles na viagem. Ele partiria da Inglaterra dois meses depois, com um grupo ainda maior de emigrantes.9

Muitos desses emigrantes pretendiam viajar com carrinhos de mão assim que chegassem às Grandes Planícies. Desde que chegara à Inglaterra, Jesse ouvira muitas coisas sobre os carrinhos de mão, mas estava inseguro em relação à utilização deles. “Não sei se funcionam bem; ainda não tenho muita fé neles”, confidenciou no diário. “Estou mais propenso a achar que o plano será um fracasso, mas, como foi recomendado pelo presidente Brigham Young, vou apoiar a ideia e recomendá-la também.”10

Em 25 de maio, Jesse partiu da Inglaterra em um navio com mais de 850 membros da Igreja, sendo a maioria santos ingleses de longa data que tinham recebido auxílio financeiro do Fundo Perpétuo de Emigração. Era a maior companhia de santos que cruzaria o oceano Atlântico até então. Antes de partirem, o apóstolo Franklin Richards chamou Edward Martin para liderá-los e designou Jesse como um de seus conselheiros. Sendo um líder muito capaz, Edward era um dos primeiros conversos britânicos, um veterano do Batalhão Mórmon e um dos muitos missionários enviados por todo o mundo em 1852.11

Franklin e outros líderes da missão se despediram dos santos nas docas de Liverpool. Antes de o navio zarpar, deram três vivas para os santos que emigravam. Os santos responderam com três vivas também, e Franklin e os outros líderes se despediram, dando outro viva como bênção de despedida para os santos.12


O navio chegou a Boston pouco mais de um mês depois. Como outros a bordo, Elizabeth e Aaron Jackson já eram membros da Igreja há muitos anos. Os pais de Elizabeth se filiaram à Igreja em 1840, pouco depois da chegada dos primeiros missionários à Inglaterra, e Elizabeth foi batizada um ano depois, aos 15 anos de idade. Ela se casou com Aaron, um élder da Igreja, em 1848. Ambos trabalharam nos moinhos de seda da Inglaterra.13

Viajando com o casal Jackson estavam os três filhos — Martha, de 7 anos; Mary, de 4 anos; e Aaron Jr., de 2 anos — e a irmã de Elizabeth, Mary Horrocks, de 19 anos.

Em Boston, a família embarcou em um trem com a maioria da companhia e viajou para Iowa City, um ponto de partida para os santos que seguiam para o Oeste. Quando chegaram, Elizabeth e Aaron esperavam encontrar os carrinhos de mãos prontos, mas o número de santos indo para o Oeste naquela estação fora maior do que o esperado. Três companhias de carrinhos de mão já tinham partido de Iowa City naquele verão, e uma quarta companhia, liderada por James Willie, um ex-missionário, partiria em breve. Não havia carrinhos de mão prontos para todos.14

Sabendo que precisariam partir em breve para chegar ao Vale do Lago Salgado antes do inverno, os emigrantes recém-chegados ajudaram a montar os carrinhos de mão. Eles se dividiram em duas companhias de carrinhos de mão, sendo uma liderada por Edward Martin e a outra, por Jesse Haven. Outros emigrantes se uniram a outras duas companhias de carroções, também lideradas por ex-missionários.15

As quatro companhias partiram de Iowa City no final de julho e início de agosto. Cerca de cinco pessoas eram designadas para cada carrinho de mão, sendo-lhes permitido levar pouco menos de oito quilos de pertences cada uma. Um carrinho de mão pesava aproximadamente 91 quilos quando totalmente carregado. Cada companhia de carrinhos de mão também viajava com parelhas de mulas e carroções, que carregavam as barracas e as provisões.16

Quase no final de agosto, as companhias pararam em uma cidade chamada Florence, perto do antigo assentamento de Winter Quarters. Franklin Richards, que viajava com uma companhia menor e mais rápida de ex-missionários, já estava ali, preparando-se para prosseguir até Utah, de modo a chegar a tempo para a próxima conferência geral. Em uma reunião, Franklin trocou ideias com os líderes das companhias a fim de decidirem se os emigrantes deveriam passar o inverno em Florence ou prosseguir viagem para Sião apesar do risco de encontrarem mau tempo na trilha à frente.17

Nas epístolas aos santos do mundo inteiro, a Primeira Presidência alertara repetidamente os santos a respeito dos perigos de iniciar a viagem para o vale no final da estação. As companhias de carroções precisavam partir de Florence na primavera ou no início do verão para chegarem a Salt Lake City em agosto ou setembro. Embora os líderes da Igreja acreditassem que as companhias de carrinhos de mão conseguiriam viajar mais rápido do que as companhias de carroções, ninguém tinha certeza disso, pois as primeiras companhias de carrinhos de mão ainda estavam na trilha. Se a companhia Martin partisse de Florence no final de agosto, eles ainda estariam na trilha no final de outubro ou início de novembro quando, às vezes, começava a nevar.18

Sabendo disso, alguns homens pediram a Franklin que recomendasse à companhia que passasse o inverno em Florence. Outros o aconselharam a enviar os emigrantes para Sião a despeito do perigo. Duas semanas antes, a companhia de carrinhos Willie enfrentara o mesmo dilema, e a maioria dos membros tinha decidido seguir em frente, seguindo o conselho do capitão Willie e de outros líderes, que prometeram que Deus os protegeria dos perigos. Franklin também tinha fé que Deus abriria um caminho para que os emigrantes chegassem em segurança ao vale, mas queria que eles decidissem por si mesmos se permaneceriam ou partiriam.19

Reunindo as companhias, Franklin os alertou dos perigos de viajar tão tarde na estação de emigração. Alguns bebês e santos idosos provavelmente morreriam, disse ele. Outros membros da companhia seriam acometidos de doenças e exaustão. Se os emigrantes quisessem, poderiam passar o inverno em Florence, consumindo as provisões que já tinham comprado para a viagem. Franklin até se ofereceu para comprar mais provisões para a estadia deles.20

Vários ex-missionários falaram depois de Franklin. A maioria incentivou os santos a prosseguir viagem até o vale. O filho de Brigham Young, Joseph, pediu-lhes que não seguissem em frente naquela estação. “Isso resultaria em agonias indescritíveis, em enfermidades e na perda de muitas vidas”, disse ele. “Não quero que isso pese na minha consciência, mas desejo que todos permaneçam aqui para passar o inverno e partir na primavera.”

Quando os missionários terminaram de falar, Franklin se levantou novamente e pediu aos emigrantes que decidissem a questão por meio de votos. “Se soubessem que seriam tragados pela tempestade”, perguntou ele, “vocês parariam ou voltariam?”21

Com entusiasmo, a maioria dos emigrantes tirou o chapéu, ergueu as mãos e votou para prosseguir até Sião.22 Franklin uniu as duas companhias de carrinhos de mão sob a liderança de Edward Martin e designou Jesse Haven para ajudar a liderar uma companhia de carroções com o capitão William Hodgetts. As companhias partiram de Florence poucos dias depois, com uma grande manada de gado.

Embora Elizabeth e Aaron Jackson fossem jovens e saudáveis, o esforço diário de arrastar o pesado carrinho de mão por trilhas pedregosas, areais profundos e riachos logo começou a ser muito cansativo. Alguns emigrantes também tinham dificuldades para acompanhar a companhia quando seus carrinhos de mão de baixa qualidade quebravam. No final de cada dia, os santos chegavam ao acampamento famintos e com a certeza de que o trabalho estafante reiniciaria na manhã seguinte.23


Em setembro de 1856, enquanto as companhias de carrinhos de mão e carroções viajavam para o Oeste, a Primeira Presidência e o Quórum dos Doze começaram a pregar arrependimento e uma reforma moral por todo o território de Utah. Embora muitos santos vivessem em retidão, os líderes da Igreja estavam preocupados com o fato de que muitos outros não estavam se empenhando ativamente para se tornarem um povo de Sião nem preparando-se para a Segunda Vinda. Preocupavam-se também com a influência de pessoas que moravam no território e não eram membros da Igreja, com a fé e o comprometimento fraco de alguns dos emigrantes e com os que tinham saído da Igreja e passaram a combatê-la.

Jedediah Grant, segundo conselheiro na Primeira Presidência, liderou o empenho para uma reforma moral, sob a direção de Brigham Young. A partir do início de setembro, Jedediah pediu aos santos que abandonassem o mal e fossem rebatizados para renovar seus convênios e obter a remissão de seus pecados. Logo, outros líderes da Igreja se uniram a ele, divulgando por todos os lugares a mensagem, até que um espírito de reforma se espalhou por toda parte.24

Os sermões deles, com frequência, eram muito inflamados. “Estou falando a vocês em nome do Deus de Israel”, proclamou Jedediah em Salt Lake City, em 21 de setembro. “Vocês precisam ser batizados e lavados de seus pecados, de seus retrocessos, de suas apostasias, de suas imundícies, de suas mentiras, de seus palavrões, de seus desejos impuros e de tudo o que é mau perante o Deus de Israel.”25

Na Ala Sugar House, Martha Ann Smith já estava interessada em se aprimorar, graças, em parte, aos constantes conselhos que recebia do irmão Joseph, que estava no Havaí. A princípio, ela acreditava que ir para a escola ajudaria. Como o território não tinha um sistema escolar público, ela frequentava uma escola administrada por sua ala. Mas, no final do ano letivo, estava buscando outras maneiras de se tornar uma pessoa melhor.

Na primavera, Martha Ann foi morar com o irmão mais velho John e a família dele, e esse novo lar lhe ofereceu oportunidades de aprimoramento pessoal. Mas, por mais que Martha Ann gostasse de John, não se dava muito bem com a esposa Hellen nem com os cunhados dele. “Eles contam mentiras quando não estou vendo e zombam de suas irmãs e as chamam de mentirosas”, confidenciou ela em uma carta a Joseph. Sabendo que Joseph a repreenderia por falar mal da família, ela acrescentou: “Se você os conhecesse tão bem quanto eu, não me culparia”.26

Naquele verão, porém, uma carta proveniente do Leste chamou a atenção de Martha Ann, desviando-a das contendas familiares. Lovina, sua irmã mais velha, escreveu que finalmente se mudaria para o vale com o marido e com os quatro filhos. Quase que imediatamente depois, John foi para o Leste para lhes levar suprimentos e os ajudar na viagem.

Martha Ann e as irmãs esperavam que John chegasse com Lovina e a família dela em uma das companhias de carrinhos de mão ou de carroções que chegariam naquele outono. Mas, quando as primeiras companhias chegaram naquela estação, John e Lovina não estavam entre eles. De fato, não receberam notícias de onde estavam até que a terceira companhia de carrinhos de mão chegou no início de outubro.

“A companhia de carrinhos de mão chegou ao vale”, informou Martha Ann a Joseph, “e eles disseram que a companhia em que John se encontra está três semanas atrás deles”.

Não tinham notícia de Lovina e da família dela.27


John Smith não estava três semanas atrás. Ele chegou ao vale dois dias depois, com Franklin Richards e a pequena companhia de ex-missionários. Enquanto rumava para o Leste, John os encontrou em Independence Rock, aproximadamente 600 quilômetros de Salt Lake City. Eles o informaram que a família de Lovina chegara a Florence tarde na estação e tinha decidido não prosseguir viagem naquele ano.28

Desapontado, John pensou em prosseguir viagem. O tempo nas planícies ainda estava quente e claro. Ele poderia viajar os 1.100 quilômetros até Florence, passar o inverno com Lovina e a família dela, e ajudá-los a vir ao Oeste na primavera. Mas, se fizesse isso, teria que deixar Hellen e os filhos aos próprios cuidados em Utah. John perguntou a Franklin o que deveria fazer, e o apóstolo o aconselhou a voltar com ele e sua companhia ao vale.29

Em 4 de outubro, na noite em que chegaram a Salt Lake City, Franklin disse à Primeira Presidência que as companhias Willie e Martin e duas outras companhias de carroções estavam a uns 800 ou 950 quilômetros dali. Ao todo, mais de mil santos ainda estavam a leste das Montanhas Rochosas, e Franklin achava que a companhia Martin não conseguiria chegar antes do final de novembro.30

O relatório de Franklin alarmou a presidência. Sabendo que algumas companhias tinham partido da Inglaterra tarde na estação, presumiram que Franklin e os agentes de emigração os instruiriam a esperar até a primavera para virem para o Oeste. A Igreja enviara provisões para o Leste a fim de reabastecer as companhias restantes, o que significava que os emigrantes não teriam alimento suficiente para sustê-los durante a jornada. Se as companhias não perecessem no gelo e na neve, morreriam de fome — a menos que os santos do vale fossem resgatá-los.31

Nas reuniões da Igreja do dia seguinte, em tom de urgência, Brigham falou sobre os emigrantes que estavam em perigo. “Eles devem ser trazidos para cá; devemos enviar ajuda a eles”, declarou. “Essa é minha religião. Esses são os ditames do Espírito Santo para mim. Temos que salvar as pessoas.”32

Brigham conclamou os bispos a reunir parelhas de mulas e suprimentos imediatamente. Pediu que os homens ficassem prontos para partir assim que possível e conclamou as mulheres para que começassem a organizar as doações de cobertores, de roupas e de sapatos.

“Nossa religião e profissão de fé não vão salvar uma alma sequer dentre nós no reino celestial de nosso Deus”, disse ele, “a menos que coloquemos em prática os princípios que agora lhes ensino. Vão e tragam as pessoas que se encontram nas planícies”.33

Antes de saírem da reunião, algumas mulheres tiraram as meias quentes, as anáguas e tudo o que podiam doar e acomodaram esses itens em carroções.34 Outros homens e mulheres começaram imediatamente a coletar alimentos e suprimentos e a se preparar para cuidar dos emigrantes quando chegassem.

Dois dias depois, mais de 50 homens e 20 carroções de resgate partiram do vale e começaram a cruzar as montanhas. Outros os seguiram nas semanas subsequentes. Entre as primeiras equipes de resgate, estavam cinco dos missionários da companhia de Franklin Richards que tinham retornado do campo havia apenas três dias.35

Capítulo 16

Sem dúvidas e sem desespero

pés cobertos de neve pendendo de um carrinho de mão

Enquanto as equipes de resgate se apressavam para se dirigir ao Leste, a companhia de Edward Martin e a companhia de carroções de Hodgetts acampavam perto do Forte Laramie, um posto militar a meio caminho entre Florence e Salt Lake City. O suprimento de alimentos dos emigrantes estava escasseando, e não havia equipes de resgate provenientes do vale à vista.

O encarregado do forte abriu os armazéns para os santos, que venderam relógios e outros pertences para comprar um pouco mais de farinha, toucinho e arroz. Porém, mesmo assim, as provisões não seriam suficientes para atender às necessidades deles nos 800 quilômetros restantes da jornada.1

Jesse Haven temia pelos santos dos carrinhos de mão. Meio quilo de farinha por dia não era suficiente para sustentar uma pessoa que puxava um carrinho de mão por trilhas arenosas e ribanceiras rochosas, e essa quota logo teria que ser reduzida. O esforço era particularmente árduo para os santos idosos, que começaram a morrer em número alarmante.

“Eles são verdadeiramente pessoas pobres e aflitas”, relatou Jesse em uma carta a Brigham Young. “Fico extremamente triste por eles.”2

Os emigrantes continuaram a se esforçar para avançar. A companhia de carroções de Jesse viajava perto da companhia Martin, ajudando no que podia. Os emigrantes de carrinhos de mão estavam avançando mais lentamente. Pouco depois de partirem do forte, Aaron Jackson, o inglês que trabalhara na indústria da seda, foi acometido por uma febre. A doença minou suas forças, e ele parecia ter perdido a disposição de prosseguir.

Aaron queria comer mais do que sua ração, mas não havia comida suficiente. Depois de inspecionar os estoques de comida, o capitão Martin reduzira a ração diária da companhia para 340 gramas de farinha por pessoa. A família e os amigos de Aaron procuraram fazer com que ele continuasse a viagem, mas o esforço o deixou ainda mais exausto.3

Na manhã de 19 de outubro, Aaron se sentou para descansar ao lado da trilha, enquanto os outros da companhia prosseguiam até o rio North Platte. Por volta do meio-dia, ele ainda se sentia fraco demais para se mover. A temperatura tinha caído drasticamente nos últimos dias, e começara a nevar. Se ele não se levantasse e se reunisse com sua companhia, em breve congelaria até a morte.

Algum tempo depois, dois homens da companhia encontraram Aaron, colocaram-no em um carroção com outros santos enfermos e o levaram até o North Platte. Ele encontrou a família na margem do rio, preparando-se para atravessá-lo com o carrinho de mão. Como os bois do carroção estavam fracos demais para puxar a carga em segurança pela correnteza, Aaron teve que descer do carroção para cruzar o rio a pé.

Entrou debilmente na água gelada enquanto a esposa, Elizabeth, e a cunhada Mary ficaram com as crianças e com o carrinho de mão. Ele conseguiu caminhar por uma curta distância, mas tropeçou em um banco de areia e desabou de exaustão. Mary correu até ele e o colocou de pé enquanto um homem a cavalo o pegou e o levou para o outro lado do rio.4

Um vento norte soprou sobre a companhia, e começou a chover granizo. Mary voltou ao carrinho de mão, e ela e Elizabeth o puxaram até a outra margem. Como outros emigrantes, estavam tendo dificuldades para cruzar o rio; mulheres e homens voltaram a entrar nas águas para resgatar os amigos. Alguns carregaram os santos que eram muito idosos, ou muito jovens, ou que estavam muito enfermos para atravessar sozinhos. Sarah Ann Haigh, de 19 anos, entrou várias vezes nas águas geladas, ajudando várias pessoas a cruzar o rio.

Sem conseguir mais andar, Aaron Jackson foi colocado em um carrinho de mão e carregado até o acampamento daquela noite, com os pés pendendo na parte de trás do carrinho. Elizabeth e Mary seguiram logo atrás, prontas para cuidar dele assim que chegassem ao acampamento. Atrás deles, os santos se arrastavam na tarde que findava, com as roupas esfarrapadas endurecidas pelo frio cobrindo-lhes o corpo.5


À noite, Elizabeth ajudou o marido a se deitar e adormeceu ao lado dele. Quando acordou, algumas horas depois, foi ouvir a respiração de Aaron e nada escutou. Alarmada, colocou a mão nele e viu que seu corpo estava rígido e gelado.

Elizabeth gritou, pedindo ajuda, mas não havia nada que alguém pudesse fazer. Pensou em acender uma fogueira para enxergar Aaron, mas não tinha como fazê-lo.

Deitada ao lado do corpo inerte do marido, Elizabeth não conseguiu dormir. Aguardou e orou, sofrendo muito enquanto esperava os primeiros sinais do alvorecer. As horas se passaram lentamente. Ela sabia que ainda tinha filhos para cuidar — e a irmã Mary para ajudá-la. Mas até Mary estava ficando doente. A única pessoa com quem Elizabeth verdadeiramente poderia contar era o Senhor. Naquela noite, ela Lhe pediu ajuda, confiando que Ele a consolaria e a ajudaria a cuidar das crianças.

Quando amanheceu, os emigrantes ficaram desanimados ao verem uma grossa camada de neve cobrindo o chão. Um grupo de homens levou embora Aaron e outras 13 pessoas que tinham morrido durante a noite. Como o solo estava duro demais para ser cavado, enrolaram os mortos em cobertores e os cobriram com a neve.6

O capitão Martin ordenou à companhia que prosseguisse viagem a despeito do clima. Os emigrantes puxaram e empurraram seus carrinhos de mão por alguns quilômetros em meio à nevasca e aos ventos cada vez mais fortes. A neve molhada ficava presa nas rodas, tornando os carrinhos cada vez mais pesados e difíceis de puxar.7

No dia seguinte, a companhia prosseguiu em meio à neve ainda mais profunda.8 Muitos não tinham sapatos ou botas adequadas para protegê-los do frio. Os pés ficaram em carne viva e sangrando devido à queimadura do frio. Os santos procuravam manter o ânimo cantando hinos.9 Porém, quatro dias depois de terem cruzado o rio North Platte, tinham feito pouco progresso.

Fracos e famintos, eles estavam com dificuldades para continuar caminhando. A farinha estava quase no fim. O gado estava morrendo, magro demais para prover o sustento necessário. Algumas pessoas não tinham forças para montar as barracas, por isso dormiam na neve.10

Em 23 de outubro, o capitão Martin decidiu parar com a companhia para descansar em um lugar chamado Red Buttes. Com o passar dos dias, a situação do acampamento só piorou. A temperatura continuava a cair, e as mortes na companhia logo chegaram a mais de 50 pessoas. À noite, os lobos se infiltravam no acampamento, cavavam as sepulturas e se alimentavam dos corpos.11

Todos os dias, o capitão Martin reunia os santos para orar pedindo socorro e abençoar os enfermos e os aflitos do acampamento. Parecia cansado e triste, mas assegurava aos santos que o auxílio estava a caminho.12

Na noite de 27 de outubro, Elizabeth se sentou em uma pedra e reuniu os filhos à sua volta. A milhares de quilômetros da Inglaterra, desamparados e presos na neve, em um país de montanhas rochosas, ela estava ficando desanimada. Agora, ela era uma viúva. Os filhos não tinham mais um pai. Nada os protegia das nevascas além de roupas puídas e alguns cobertores.

Às vezes, à noite, adormecia e sonhava que Aaron estava em pé a seu lado. “Anime-se, Elizabeth”, dizia ele, “o socorro está próximo”.13

No dia seguinte, depois de ingerir seu escasso desjejum, os emigrantes avistaram três pessoas a cavalo descendo uma colina próxima. À medida que se aproximavam, os santos reconheceram Joseph Young, o filho de Brigham Young, de 22 anos, que servira como missionário na Inglaterra por três anos. Com ele, estavam Daniel Jones e Abel Garr, dois homens do Vale do Lago Salgado. Os três cavalgaram até o acampamento, reuniram todos e distribuíram a comida e os suprimentos que traziam em seus cavalos.

“Há muitas provisões e roupas chegando para vocês pela estrada”, anunciou Joseph, “mas amanhã pela manhã vocês precisam sair daqui”. Outras equipes de resgate estavam a uns 70 quilômetros dali, em carroções repletos de alimentos, roupas e cobertores. Se os emigrantes se apressassem, eles os encontrariam em poucos dias.14

Os emigrantes se animaram, abraçaram e beijaram os três homens. As famílias riam aliviadas, abraçavam-se e choravam muito. “Amém!”, eles gritavam.

A companhia cantou um hino e se retirou para suas barracas quando a noite chegou. Partiriam rumo a Oeste pela manhã.15


Três dias depois, em 31 de outubro, a companhia Martin encontrou as outras equipes de resgate na trilha. George D. Grant, o líder do pequeno grupo, ficou perplexo com o que viu. Quinhentos ou seiscentos santos puxavam seus carrinhos de mão, formando uma fileira irregular de aproximadamente 5 ou 6 quilômetros de comprimento. Viu que estavam exaustos demais depois de fazerem esse esforço o dia inteiro, cruzando a neve e a lama. Algumas pessoas estavam deitadas nos carrinhos, enfermas ou exaustas demais para caminhar. As crianças choravam, algumas arrastando-se ao lado dos pais pela neve. Todos pareciam estar com muito frio, e alguns tinham os membros rígidos e sangrando por causa da exposição à neve.16

Nos dias que se seguiram, as equipes de resgate ajudaram a companhia Martin a seguir para o Oeste. Esperando proteger os emigrantes do frio, a equipe de resgate queria levá-los até uma caverna que ficava próxima de dois altos despenhadeiros, em um lugar chamado Devil’s Gate. Mas, para chegar lá, eles teriam que cruzar o gelado rio Sweetwater. Ainda horrorizados com a última travessia de um rio, muitos emigrantes estavam com medo de cruzá-lo. Alguns conseguiram atravessar o rio nos carroções. Outros o fizeram a pé. Vários resgatadores e uns poucos emigrantes carregaram pessoas através da correnteza gelada. Cinco jovens resgatadores — David P. Kimball, George W. Grant, Allen Huntington, Stephen Taylor e Ira Nebeker — passaram horas nas águas geladas, ajudando heroicamente a companhia a fazer a travessia.

Assim que os emigrantes se alojaram na caverna, que mais tarde passou a se chamar Martin’s Cove, começou novamente a nevar. O acampamento ficou insuportavelmente frio, e mais pessoas morreram. Um emigrante descreveu a caverna como “um túmulo superlotado”.17

Em 9 de novembro, Jesse Have e os outros santos das duas companhias de carroções remanescentes estavam com a companhia Martin na caverna. O tempo havia clareado, e os resgatadores decidiram manter a companhia viajando para o Oeste apesar de não haver suprimentos e provisões suficientes para suster a todos nos 500 quilômetros que faltavam até Salt Lake City. Os emigrantes descartaram a maioria de seus carrinhos de mão e quase todos os seus pertences, guardando apenas o que tinham para combater o frio. Somente um terço dos santos da companhia Martin conseguia caminhar. Os outros foram colocados nos carroções.18

George D. Grant viu que eles precisavam de mais ajuda do que seus homens poderiam oferecer. “Vamos fazer tudo o que pudermos, sem dúvidas e sem desespero”, relatou George em uma carta para Brigham. “Nunca vi tamanha energia e fé entre os ‘rapazes’ nem um espírito tão bom quanto o que há entre os que vieram comigo.”

“Temos orado sem cessar”, testificou ele, “e as bênçãos de Deus têm estado sobre nós”.19

Ephraim Hanks, Arza Hinckley e outros resgatadores encontraram a companhia a oeste de Martin’s Cove e forneceram mais alimentos e apoio para os emigrantes. Dez outros carroções de resgate chegaram até os emigrantes em um lugar chamado Rocky Ridge, ainda a uns 400 quilômetros de Salt Lake City. Àquela altura, mais de 350 homens do vale tinham se arriscado, enfrentando a neve profunda para ajudar. Estabeleceram acampamentos ao longo da trilha, limparam a neve, acenderam fogueiras e proveram mais carroções para que ninguém precisasse caminhar. Também prepararam refeições para os emigrantes e dançaram e cantaram para distraí-los de seus sofrimentos.20

As condições climáticas continuavam severas, mas os santos sentiam que Deus os estava apoiando. “Quase todos os dias, tempestades violentas e muito ameaçadoras caíam sobre nós e, julgando pelo aspecto delas, era de se achar que não conseguiríamos suportá-las”, escreveu Joseph Simmons, um dos resgatadores, para um amigo no vale. “Sem a ajuda celestial, teríamos ficado presos pela neve nas montanhas há muito tempo.”21


Quando Brigham tomou mais conhecimento do que acontecia com os santos que ainda estavam na trilha, esforçou-se para se concentrar inteiramente no alívio ao sofrimento deles. “Meus pensamentos estão com aqueles que viajam pela neve”, disse ele a uma congregação em 12 de novembro. “Estou constantemente pensando neles.”22

Em 30 de novembro, enquanto presidia uma reunião dominical em Salt Lake City, Brigham ficou sabendo que os carroções de resgate que transportavam os integrantes da companhia Martin chegariam naquele dia. Rapidamente cancelou todas as reuniões do dia. “Quando aquelas pessoas chegarem”, disse ele, “quero que sejam acolhidas pelas famílias que têm casas confortáveis e boas”.23

Os emigrantes chegaram à cidade ao meio-dia. Àquela altura, estavam totalmente abatidos. Mais de 100 pessoas da companhia tinham morrido. Muitos dos sobreviventes tinham queimaduras de frio nas mãos e nos pés, precisando de amputação. Se as equipes de resgate não tivessem chegado a tempo, muitas outras pessoas teriam perecido.

Os santos do território acolheram os emigrantes em suas casas. Elizabeth Jackson e os filhos foram para a casa de seu irmão Samuel, em Ogden, a norte de Salt Lake City, onde descansaram e se recuperaram de sua brutal jornada.24

Jesse Haven, que chegou a Salt Lake City duas semanas depois da companhia Martin, chorou quando viu o vale pela primeira vez depois de quatro anos. Foi direto para casa, ver as esposas, Martha e Abigail, e o filho, Jesse, que tinha nascido enquanto ele estava na África do Sul. Depois, foi visitar Brigham Young, grato pelo profeta ter enviado as equipes de resgate para salvar os santos.

“O outono de 1856 ficará na minha lembrança por muito tempo”, escreveu ele em seu diário, pouco depois de ter chegado ao vale. “Estou nesta Igreja há 19 anos. Vi mais sofrimento no outono passado do que jamais vira antes entre os santos.”25

Patience Loader, integrante da companhia Martin, relembrou posteriormente como o Senhor a abençoou com forças para suportar a jornada. “Posso dizer que depositamos nossa confiança em Deus”, testificou ela. “Ele ouviu e respondeu nossas orações e nos trouxe para os vales.”26

Capítulo 17

Eles aceitaram a reforma

bandeiras americanas e um lago na montanha ao fundo

Enquanto o inverno de 1856 e 1857 chegava com muita neve e gelo ao Vale do Lago Salgado, Joseph F. Smith trabalhava na Grande Ilha do Havaí. Assim como George Q. Cannon, ele aprendera o idioma havaiano rapidamente e se tornara um líder na missão. Agora, quase três anos depois que recebera o chamado, estava com 18 anos e ansioso para continuar servindo ao Senhor.1

“Sinto como se ainda não tivesse cumprido minha missão”, ele escreveu para sua irmã, Martha Ann, “e não quero voltar para casa até que sinta o contrário”.2

Pouco tempo depois, Joseph recebeu uma carta de seu irmão John em Utah. “O Natal e o Ano Novo já se passaram, sem grandes comemorações”, relatou John. Embora os santos gostassem de comemorar esses feriados com grandes bailes e festas, os líderes da Igreja tinham desencorajado tais festividades naquele ano. A reforma moral iniciada por Jedediah Grant no outono anterior continuava em andamento, e tais celebrações foram consideradas inadequadas.

“Estamos nos esquecendo de quem somos, temos sido pouco cautelosos, ignorando os ensinamentos e os princípios de nossa religião, e permitindo que as coisas do mundo exerçam uma poderosa influência sobre nós”, explicou John, de 24 anos de idade, que fora chamado recentemente como patriarca presidente da Igreja, o mesmo ofício que o pai e o avô possuíram. Ele apoiava integralmente a reforma embora sua timidez exacerbada o impedisse de se juntar a outros líderes na pregação pública.3

Joseph também soube da reforma por meio de cartas de outros membros da família. Desde setembro, os líderes da Igreja estavam rebatizando os santos arrependidos em quaisquer fontes de água que encontrassem — mesmo que precisassem quebrar o gelo para tal.4 Além disso, a Primeira Presidência instruíra os bispos a parar de administrar o sacramento nas alas até que mais santos fossem rebatizados e provassem que estavam dispostos a cumprir os convênios.5

A tia de Joseph, Mercy Thompson, achava que a reforma estava trazendo bons resultados para ela e para os santos. “Fico admirada com o que o Senhor tem feito por mim”, ela escreveu a Joseph. “Sinto que Ele tem feito muito mais do que cumprir Suas promessas.”6

Para incentivar a retidão, os líderes da Igreja admoestaram os santos a confessar seus pecados publicamente nas reuniões das alas. Em uma carta a Joseph, Mercy escreveu sobre Allen Huntington, um dos rapazes que ajudaram os emigrantes das companhias de carrinhos de mão a atravessar o rio Sweetwater. Allen sempre fora um jovem rebelde, mas, pouco depois do resgate, ele se pronunciou na Ala Sugar House, confessou seus pecados passados e contou como o resgate mudara seu coração.

“Ele viu tão claramente o poder de Deus que se rejubilou enquanto viajava para encontrar as companhias na estrada e trazê-las para o vale”, relatou Mercy. “Ele exortou seus jovens amigos a se afastarem de coisas tolas e a buscarem primeiro edificar o reino de Deus. A mãe dele chorou de alegria. O pai se levantou e declarou que aquele era o momento mais feliz de sua vida.”7

Alguns homens também tinham sido chamados como “missionários familiares” para visitar as famílias da Igreja. Durante as visitas, os missionários faziam uma série de perguntas formais para saber como os membros da família estavam cumprindo os Dez Mandamentos, como demonstravam amor uns aos outros e ao próximo, e como participavam da adoração na Igreja com os membros da ala.8

Ao incentivar uma retidão maior, os líderes da Igreja chamaram mais homens e mulheres para praticar o casamento plural. Logo no início da reforma, Brigham Young pediu que John Smith se casasse com uma segunda esposa. Só de pensar que John se casaria com outra mulher, sua esposa, Hellen, ficou profundamente incomodada. Mas, se o Senhor queria que ela e John obedecessem ao princípio, então Hellen preferia que a cerimônia de casamento fosse feita o mais rápido possível. Talvez depois disso ficasse mais fácil viver o princípio.

John se casou com uma mulher chamada Melissa Lemmon. “Foi muito difícil para mim, mas graças ao Senhor a cerimônia já passou”, Hellen escreveu para Joseph no Havaí. “O Senhor vai provar Seu povo em todas as coisas, e considero ser esta a maior de todas as provações. Mas oro ao Pai Celestial que me dê sabedoria e força mental para superar todas as provações que surgirem.”9

Joseph também ficou sabendo mais a respeito da reforma pelas cartas de sua irmã, Martha Ann. “Fui batizada e estou começando a viver de acordo com os princípios e os ensinamentos de minha religião”, ela escreveu em fevereiro. “Estou começando a enxergar minhas faltas e trabalhando para corrigir meus modos.” Depois de passar meses brigando com Hellen, Martha Ann finalmente fizera as pazes com a cunhada.10

“Eles aceitaram a reforma e me tratam melhor agora”, Martha Ann contou a Joseph. “Somos boas amigas.”11

Vendo que muitos jovens da ala estavam se casando, Martha Ann começou a pensar se não estava na hora de ela se casar também. Ela estava secretamente apaixonada por William Harris, o enteado do bispo Abraham Smoot. “Minhas mãos tremem quando falo que o amo, mas é a mais pura verdade”, confidenciou a Joseph. “Ele é um bom rapaz e conquistou minha afeição.”

Ela rogou ao irmão que guardasse aquele segredo. “Não fale sobre isso em suas cartas, exceto nas que me enviar”, ela escreveu, “e me diga o que você acha”.

No entanto, William em breve partiria para a missão na Europa, o que Martha Ann considerou uma dolorosa provação. “Estou superando essa questão; ou melhor, estou me esforçando para superá-la”, lamentou ela na carta. “Acho que tudo ficará bem.”12


Na primavera de 1857, Brigham Young e outros líderes da Igreja estavam satisfeitos com a reforma dos santos e reinstituíram o sacramento em toda a Igreja. Brigham disse repetidas vezes que os santos eram um “povo abençoado por Deus”.13

No entanto, alguns problemas haviam surgido durante a reforma. Os líderes tinham falado duramente contra os apóstatas e os habitantes locais que não eram membros da Igreja. Sentindo-se intimidados, alguns deixaram o território. Os bispos, os missionários familiares e os membros da Igreja também tiveram conflitos, pois as visitas frequentes e as confissões públicas se mostraram constrangedoras, perturbadoras e intimidadoras. Com o tempo, os líderes da Igreja começaram a incentivar que as entrevistas e as confissões fossem feitas em particular.14

Os líderes da Igreja costumavam usar linguagem moderada e edificante em seus sermões para incentivar os santos a serem melhores. O Livro de Mórmon fornecia exemplos claros de como a pregação vigorosa poderia inspirar as pessoas a se reformarem; no entanto, naquele inverno os líderes da Igreja com frequência tinham usado uma linguagem exacerbada para chamar os santos ao arrependimento. Algumas vezes, Brigham e outros até se valeram de escrituras do Antigo Testamento para ensinar que certos pecados graves só poderiam ser perdoados pelo derramamento do sangue do pecador.15

Tais ensinamentos remetiam à linguagem do fogo do inferno e do enxofre usada pelos pregadores protestantes que queriam amedrontar os pecadores e trazê-los para a reforma.16 Brigham percebeu que, às vezes, deixou que seus ardentes sermões fossem longe demais, e ele não pretendia que as pessoas fossem mortas por seus pecados.17

Um dia, Brigham recebeu uma carta de Isaac Haight, o presidente da estaca em Cedar City, contando a respeito de um homem que confessara um pecado sexual praticado com a noiva, depois de ter recebido a investidura. Depois daquilo, ele tinha se casado com ela, mas dissera que faria qualquer coisa para restituir aquele pecado mesmo que isso significasse ter o sangue dele derramado.

“O que devo falar para ele?”, perguntou Isaac.

“Diga ao rapaz para ir e não pecar mais, que se arrependa de todos os pecados e seja batizado”, respondeu Brigham.18 Em meio às duras repreensões da reforma, com frequência ele aconselhava os líderes a ajudar os pecadores a se arrepender e a buscar misericórdia. Tanto a pregação enérgica de Brigham quanto o conselho para buscar a misericórdia tinham a intenção de ajudar os santos a se arrependerem e se aproximarem do Senhor.19


Quando o período de reforma terminou, os santos começaram novamente a ficar frustrados com as autoridades no governo territorial, nomeadas pelo governo federal. No início de 1857, a câmara legislativa de Utah enviou uma petição a James Buchanan, o recém-eleito presidente dos Estados Unidos, solicitando que lhes fosse concedida maior liberdade para nomear os próprios líderes territoriais.

“Resistiremos a qualquer tentativa dos oficiais do governo de anular nossas leis territoriais”, advertiram eles, “ou de nos impor leis que não são aplicáveis e direitos que não estão vigentes neste território”.20

Os oficiais do governo no território, por sua vez, estavam igualmente frustrados com o desdém dos santos em relação a eles, a maneira como intimidavam os líderes nomeados pelo governo federal e a falta de separação entre Igreja e estado no governo territorial. Em março, alguns oficiais renunciaram às nomeações e voltaram para o Leste contando histórias a respeito dos casamentos plurais e do governo aparentemente antidemocrático dos santos, como fizeram Perry Brocchus e outros alguns anos antes.

No início daquele verão, depois que as planícies nevadas descongelaram e as rotas de correio reabriram, os santos ficaram sabendo que o presidente Buchanan e seus conselheiros haviam ficado profundamente alarmados e enfurecidos por causa da petição cheia de palavras duras que enviaram, e dos relatos sobre o tratamento dispensado aos ex-oficiais territoriais. O presidente considerou as ações dos santos como rebelião e nomeou novos oficiais para os cargos vagos em Utah.21 Enquanto isso, os jornais e os políticos do Leste exigiam que ele lançasse uma ação militar para remover Brigham do cargo de governador, suprimir a rebelião dos santos e garantir que os novos funcionários federais assumissem seus cargos e fossem protegidos.

Para os críticos, esse plano parecia exacerbado e caro, mas logo surgiram rumores de que o presidente pretendia colocá-lo em prática. Buchanan considerava ser seu dever estabelecer a autoridade federal em Utah. Na época, os Estados Unidos estavam passando por tensões significativas sobre a questão da escravidão, e muitas pessoas temiam que os proprietários de escravos nos estados do Sul pudessem algum dia formar seu próprio país. O envio de um exército para Utah poderia dissuadir outras regiões de desafiar o governo federal.22

Com o fim de seu mandato como governador, Brigham previa que o presidente nomearia alguém de fora do território para substituí-lo. A mudança não afetaria a posição dele entre os santos, mas diminuiria sua capacidade de ajudá-los politicamente. Se o presidente o destituísse do cargo e enviasse um exército para impor a mudança, os santos teriam pouca esperança de se autogovernar. Novamente estariam sujeitos aos caprichos dos homens que desprezavam o reino de Deus.23

Cerca de um mês após ouvir os rumores das intenções de Buchanan, Brigham soube que o apóstolo Parley Pratt fora assassinado. O assassino, Hector McLean, era o ex-marido de Eleanor McLean, uma das esposas plurais de Parley. Eleanor se filiara à Igreja na Califórnia depois de anos sofrendo com o abuso e o alcoolismo de Hector. Hector culpou Parley por Eleanor tê-lo deixado e enviou os filhos para morar com familiares no sul dos Estados Unidos. Eleanor tentou se juntar aos filhos, e Parley foi atrás dela para ajudá-la. No entanto, em maio de 1857, Hector seguiu Parley e o assassinou brutalmente.24

A morte de Parley chocou Brigham e os santos. Por mais de 25 anos, Parley fora um dos principais escritores e missionários santos dos últimos dias. O folheto que ele escreveu A Voice of Warning [Uma Voz de Advertência] ajudara a trazer um número incontável de pessoas à Igreja. A perda de seu serviço incansável e sua voz incomparável foi profundamente dolorosa aos santos.

No entanto, editores de jornais em todo o país celebraram o assassinato de Parley. Para eles, Hector McLean fizera justiça com o homem que destruíra seu lar. Um jornal até recomendou que o presidente Buchanan nomeasse Hector como o novo governador de Utah.25

Semelhantemente àqueles que perseguiram os santos no Missouri e em Illinois, o assassino de Parley nunca foi punido pelo seu crime.26


Enquanto a tensão entre os santos e o governo dos Estados Unidos aumentava, Martha Ann Smith se preparava para se despedir de William Harris, que logo partiria para a missão europeia. Martha Ann esperava se casar com William quando ele voltasse para casa. No dia em que ele se reuniu com a Primeira Presidência para ser designado para a missão, Martha Ann ficou ajudando a mãe dele, Emily Smoot, a preparar as malas para a jornada.

Enquanto o faziam, William irrompeu na sala. “Pegue seu chapéu, Martha, e me siga”, disse ele. Enquanto estava impondo as mãos sobre a cabeça de William, Brigham Young sugerira que William levasse Martha Ann até a cidade e se cassasse com ela antes de partir para a Europa.

Surpresa, Martha Ann se voltou para Emily. “O que devo fazer? O que devo fazer?”, ela perguntou.

“Querida”, disse Emily, “coloque seu vestido branco e vá em frente”.

Martha rapidamente se vestiu e subiu no carroção ao lado de William. Eles se casaram na casa de investidura e Martha foi morar com William e a família Smoot. Dois dias depois, William colocou seus pertences em um carrinho de mão e partiu do vale com um grupo de 70 missionários.27

Quando os missionários chegaram na cidade de Nova York, algumas semanas mais tarde, William ficou surpreso com a hostilidade que muitas pessoas demonstravam contra os santos. “Ouvimos todos os tipos de abusos contra os mórmons e as autoridades da Igreja”, ele escreveu ao cunhado Joseph F. Smith. “Utah é o assunto que mais aparece em todos os jornais daqui. Eles dizem que enviarão um governador e tropas para Utah, que farão cumprir a lei dos Estados Unidos, libertarão as mulheres e, se o velho Young resistir, vão enforcá-lo.”28


Em 24 de julho de 1857, no décimo aniversário da chegada dos santos ao vale, a família Smoot se juntou a Brigham Young e a 2 mil santos em um piquenique, em um lago na montanha, a leste de Salt Lake City. Bandas de vários assentamentos tocavam enquanto os santos passaram a manhã pescando, dançando e confraternizando uns com os outros. Bandeiras americanas foram hasteadas no topo de duas árvores altas. Durante toda a manhã, os santos comemoraram com fogos de canhões, assistiram às manobras da milícia do exército territorial e ouviram discursos.

Por volta da hora do almoço, Abraham Smoot e Porter Rockwell entraram a cavalo no local, interrompendo as festividades. Abraham acabara de retornar de uma viagem de negócios para a Igreja na região leste dos Estados Unidos. No caminho, ele vira carroções de carga viajando para o Oeste, com suprimento para um exército de 1.500 soldados, que o presidente estava enviando oficialmente para Utah com um novo governador. O governo também interrompera o serviço postal para o território de Utah, cortando eficazmente toda a comunicação entre os santos e o Leste.29

No dia seguinte, Brigham e os santos viajaram de volta para a cidade para se preparem para a invasão. Em 1º de agosto, Daniel Wells, o comandante da milícia territorial, ordenou a seus oficiais que preparassem todas as comunidades para a guerra. Os santos precisavam fazer um estoque de provisões, evitando todo tipo de desperdício. Proibiu que se vendessem grãos e outros suprimentos às companhias de carroções que passavam em direção à Califórnia. Se o exército sitiasse os vales, os santos precisariam de todas as suas reservas para sobreviver.30

Brigham também solicitou que os presidentes de missão e os líderes da Igreja nos ramos e nos assentamentos remotos enviassem os missionários e outros santos de volta para Utah.

“Desobriguem os élderes que estão trabalhando lá há muito tempo”, instruiu a George Q. Cannon, que agora presidia a missão do Pacífico, em São Francisco. “Incentive o maior número possível de jovens a retornar, pois os pais estão extremamente ansiosos para vê-los.”31

Brigham ouvira rumores de que o general William Harney, um homem conhecido por sua brutalidade, liderava o exército que vinha para Utah. Embora Harney alegasse não sentir hostilidade contra a maioria dos santos, aparentemente estava decidido a punir Brigham e outros líderes da Igreja.32

“Se serei enforcado, com ou sem julgamento perante a lei”, Brigham especulou, “ainda vamos ver”.33


Enquanto os santos em Salt Lake City e seus arredores se preparavam para a invasão, George A. Smith visitava os assentamentos do Sul no território para avisá-los sobre o exército que se aproximava. Em 8 de agosto, ele chegou a Parowan, uma cidade que ajudara a estabelecer seis anos antes. Os santos de lá o amavam e confiavam nele.34

As notícias sobre o exército já tinham chegado à cidade e todos estavam tensos. Eles temiam que tropas adicionais da Califórnia invadissem o sul de Utah primeiro, atacando os assentamentos mais suscetíveis antes de seguirem para o norte. Assentamentos pobres como Parowan, que viviam no limite da sobrevivência, não seriam páreo para o exército.35

George se preocupava com a segurança de sua família e de seus amigos que viviam na região. Ele lhes disse que o exército pretendia travar uma guerra de extermínio contra a Igreja. Para garantir a sobrevivência dos santos de Parowan, George os aconselhou a entregar os cereais excedentes ao bispo para que fossem armazenados para os tempos incertos que viriam pela frente. Deveriam também usar o algodão para fazer roupas.36

No dia seguinte, George falou com mais vigor. A Igreja era odiada no Leste, ele declarou. Se os santos não confiassem em Deus, o exército os dividiria e os conquistaria facilmente.

“Cuidem de suas provisões, pois precisaremos delas”, ele instruiu. Ele sabia que os santos se sentiriam tentados a ajudar e alimentar os soldados quando eles chegassem — fosse por caridade ou por lucro.

“Vocês vão vender seus grãos e suas forragens para eles?”, George perguntou. “Digo que maldito é o homem que colocar óleo e água sobre a cabeça deles.”37

Capítulo 18

Temo ser tarde demais

bandeira branca em uma haste

No verão de 1857, Johan e Carl Dorius foram para Sião em uma companhia de carrinhos de mão com cerca de 300 santos escandinavos.1 A maioria dos integrantes da companhia chegara no leste dos Estados Unidos em maio. Tendo permanecido para pregar o evangelho na Noruega e na Dinamarca depois de seu pai e de suas irmãs imigrarem para Sião, Johan sentiu o coração bater de alegria quando finalmente viu os Estados Unidos.2 Em terra, porém, ele e sua companhia logo souberam do assassinato de Parley Pratt e do exército de 1.500 soldados que marchava para subjugar os santos em Utah.3

Souberam também dos emigrantes de carrinhos de mão que pereceram na trilha no ano anterior. Como previsto por Brigham, sob condições normais, a viagem com carrinhos de mão provara ser mais rápida e mais barata do que com os tradicionais carroções. Das cinco companhias de carrinhos de mão que foram para o vale, as três primeiras chegaram sem maiores incidentes. E os resultados trágicos das outras duas poderiam ter sido evitados com um melhor planejamento e com o aconselhamento de alguns líderes de emigração. Para evitar outras catástrofes, os agentes de emigração agora se certificavam de liberar as companhias de carrinho de mão a tempo suficiente para que chegassem ao vale em segurança.4

No final de agosto, Johan, Carl e sua companhia viajaram por algum tempo com o exército bem armado e bem abastecido que marchava para Utah. Embora muitos acreditassem que o objetivo do exército era dominar e oprimir os santos, os emigrantes não receberam assédio nem abusos enquanto viajavam lado a lado.5

Um dia, a cerca de 300 quilômetros do Vale do Lago Salgado, os emigrantes encontraram na trilha um dos bois do exército com um pé machucado. “Vocês podem ficar com o boi”, disse o líder do carroção de suprimentos do exército. “Acho que vocês precisam de um pouco de carne.”

Os santos alegremente aceitaram o animal. Os carroções de apoio do vale deveriam estar a caminho, mas ainda não tinham chegado. Com pouca comida, os santos consideraram a carne uma bênção de Deus.

Por fim, os carrinhos de mão ultrapassaram o exército. À medida que se aproximavam de Utah, Johan ficou ainda mais ansioso para começar a importante tarefa que tinha pela frente. Enquanto cruzavam o Atlântico, ele se casara com uma jovem norueguesa santo dos últimos dias chamada Karen Frantzen. Ao mesmo tempo, o irmão Carl se casara com Elen Rolfsen, outra jovem norueguesa da Igreja. Em Utah, os ex-missionários planejavam se estabelecer pela primeira vez em anos — provavelmente próximos ao restante da família Dorius — e aproveitar a nova vida em Sião.6

No entanto, o futuro ainda estava incerto. Os soldados tinham tratado os santos com bondade na trilha. Será que fariam o mesmo quando entrassem no território?


Em 25 de agosto de 1857, Jacob Hamblin, o presidente da missão indígena, no sul de Utah, acompanhava George A. Smith a Salt Lake City. Eles viajavam para o norte com um grupo de líderes da tribo indígena paiute. Sabendo que os paiutes poderiam se aliar aos santos se a violência irrompesse com o exército, Brigham convidara os líderes para um conselho na cidade.7 Jacob seria o tradutor durante a reunião.8

A meio caminho de Salt Lake City, o pequeno grupo acampou do outro lado de um riacho, perto de uma companhia de emigrantes originários principalmente do Arkansas, um estado no sul dos Estados Unidos. Depois do pôr do sol, alguns homens da companhia do Arkansas se aproximaram do acampamento e se apresentaram.9

A companhia tinha cerca de 140 pessoas, a maioria de jovens ansiosos para começar vida nova na Califórnia. Vários eram casados e viajavam com crianças pequenas. Os líderes eram Alexander Fancher e John Baker. O capitão Fancher, que já viajara antes para a Califórnia, era um líder natural e conhecido por sua integridade e coragem. Ele e a esposa Eliza tinham nove filhos e todos estavam na companhia. O capitão Baker viajava com três de seus filhos adultos e um neto pequeno.

A companhia tinha mulas, cavalos e bois para puxar os carroções e as carruagens. Eles também viajavam com centenas de bois da raça longhorn, que poderiam vender com lucro quando chegassem à Califórnia desde que mantivessem o gado alimentado e saudável na trilha.10

Na época em que o capitão Fancher viajara pela primeira vez para a Califórnia, a rota do Sul passando por Utah tinha muitas áreas abertas de pasto e pontos de irrigação. Desde aquela época, novos assentamentos ao longo da trilha foram tomando aquela área, ficando difícil para as grandes companhias de carroções cuidarem de seus animais sem a cooperação dos santos. Agora, com o exército se aproximando, muitos santos estavam tratando os viajantes com desconfiança e hostilidade. Muitos, inclusive, obedeciam ao conselho de não vender provisões para os forasteiros.11

A indiferença dos santos preocupava a companhia do Arkansas. A trilha à frente passava por uma das áreas mais quentes e secas nos Estados Unidos. A jornada seria difícil se não tivessem um lugar para descansar, reabastecer a companhia, alimentar os animais e dar de beber a eles.12

Jacob Hamblin os informou sobre os bons locais para acampamento ao longo da trilha. O melhor deles era um vale exuberante, ao sul de sua fazenda, com muita água e pasto para o gado. Era um local tranquilo chamado Mountain Meadows.13


Vários dias depois, a companhia do Arkansas parou em Cedar City, 400 quilômetros ao sul de Salt Lake City, para comprar suprimentos antes de se dirigir para Mountain Meadows. Cedar City era o último grande assentamento no sul de Utah e o local onde estava a indústria de ferro dos santos, que enfrentava agora dificuldades. Os residentes estavam empobrecidos e relativamente isolados.14

A companhia encontrou um homem fora da cidade disposto a vender 50 alqueires de trigo em grão. Alguns membros da companhia levaram o trigo, assim como o milho que tinham comprado dos índios, para um moinho operado por Philip Klingensmith, o bispo local, que cobrou um preço excepcionalmente alto para moer os grãos.15

Enquanto isso, outros membros da companhia tentaram fazer compras em um armazém na cidade. O que aconteceu a seguir permanece incerto. Anos mais tarde, os colonos de Cedar City relataram que o balconista da loja não tinha os itens que os emigrantes precisavam — ou simplesmente se recusara a vender.16 Algumas pessoas se lembravam de ver alguns membros da companhia enfurecidos, ameaçando ajudar os soldados a exterminar os santos quando o exército chegasse. Outros colonos disseram que um homem na companhia alegava ter a arma que matara o profeta Joseph Smith.17

O capitão Fancher procurou acalmar os homens irados.18 Contudo, aparentemente alguns deles encontraram a casa do prefeito, Isaac Haight, que também servia como presidente da estaca e major na milícia territorial, e o ameaçaram.19 Issac escapou pela porta dos fundos, encontrou John Higbee, o xerife da cidade, e pediu que prendesse aqueles homens.

Higbee confrontou os homens e lhes disse que perturbar a paz e usar linguagem profana era contra as leis locais. Os homens o desafiaram a prendê-los e depois foram embora.20


No final do dia, Isaac Haight e outros líderes de Cedar City enviaram uma mensagem a William Dame, o comandante da milícia distrital e presidente da estaca em Parowan, pedindo orientação sobre o que fazer com os emigrantes. Embora a maior parte dos integrantes da companhia não tivesse causado problemas, e ninguém tivesse ferido fisicamente os moradores, as pessoas na cidade estavam iradas quando os emigrantes partiram. Alguns até começaram a tramar uma vingança.

William compartilhou a mensagem de Isaac com um conselho composto por líderes da Igreja e da cidade, e eles chegaram à conclusão de que a companhia de Arkansas provavelmente era inofensiva. “Não façam caso das ameaças”, William aconselhou Isaac por carta. “São palavras ao vento e não podem machucar ninguém.”21

Insatisfeito, Isaac mandou chamar John D. Lee, um santo dos últimos dias de uma cidade vizinha. John ensinava os paiutes locais a cultivar a terra e tinha um bom relacionamento com eles. Ele era muito trabalhador e estava ansioso para se tornar conhecido nos assentamentos do sul.22

Enquanto aguardava a chegada de John, Isaac se reuniu com outros líderes em Cedar City para expor seu plano de vingança. Ao sul de Mountain Meadows, ao longo da estrada para a Califórnia, havia um estreito desfiladeiro onde os paiutes poderiam atacar a companhia de carroções, matar alguns ou todos os homens e levar o gado. Os paiutes eram geralmente pacíficos e alguns tinham se filiado à Igreja, mas Isaac acreditava que John conseguiria convencê-los a atacar a companhia.23

Assim que John chegou, Isaac contou sobre os emigrantes, repetindo os rumores de que um deles se gabara de ter a arma que matara o profeta Joseph.24 “A não ser que algo seja feito para prevenir”, disse Isaac, “os emigrantes vão levar avante as ameaças que fizeram e roubar a todos os que vivem nos assentamentos remotos do Sul”.25

Ele pediu que John convencesse os paiutes a atacar a companhia. “Se eles matarem alguns deles ou todos”, ele disse, “muito melhor”. Mas ninguém poderia saber que o ataque tinha sido comandado por colonos brancos.

A culpa teria que recair sobre os paiutes.26


Na tarde de domingo, no dia 6 de setembro, os líderes de Cedar City se reuniram novamente para falar sobre a companhia do Arkansas, agora acampada em Mountain Meadows. Convencidos de que um membro da companhia estava ligado às mortes de Joseph e Hyrum Smith, ou que algumas pessoas estavam dispostas a ajudar o exército a matar os santos, alguns homens do conselho apoiaram o plano para incitar os paiutes a atacar a companhia.27

Outros no conselho pediram cautela, e assim mais homens expressaram dúvidas sobre o plano.28 Frustrado, Isaac se levantou bruscamente da cadeira e saiu da sala. O conselho, enquanto isso, propôs o envio de um correio expresso para saber a opinião de Brigham Young.29 Porém, até o meio-dia da segunda-feira, ninguém tinha sido enviado.

Naquele mesmo dia, 7 de setembro, Isaac recebeu uma mensagem de John D. Lee. Naquela manhã, John e um grupo de paiutes tinham atacado os emigrantes na Mountain Meadows. Embora os paiutes estivessem inicialmente relutantes em participar, John e outros líderes locais prometeram recompensá-los com os espólios se eles se juntassem ao ataque.30

Isaac entrou em choque quando soube da notícia. Segundo o plano, o ataque deveria ter ocorrido depois que a companhia de Arkansas deixasse os prados, não antes. John relatou que sete emigrantes tinham sido mortos e outros 16 ficaram feridos. Os emigrantes tinham colocado os carroções em um círculo, atirado de volta e matado pelo menos um paiute.31

Com um cerco em andamento em Mountain Meadows, Isaac escreveu para Brigham Young em busca de conselho. Ele relatou que os paiutes atacaram uma companhia de carroções. Contou que os emigrantes tinham ameaçado os santos em Cedar City, mas omitiu o papel dos colonos na conspiração e na execução do ataque.32

Isaac entregou a carta a James Haslam, um jovem membro da milícia, e ordenou que fosse a cavalo, o mais rápido possível, para Salt Lake City.33 Em seguida, escreveu para John. “Faça o melhor que puder para manter os índios longe dos emigrantes”, ele escreveu, “e os proteja de maiores danos até novas ordens”.34

Naquela noite, Isaac ficou sabendo que, depois que John e os paiutes atacaram a companhia, alguns santos dos últimos dias armados tinham revistado a área em busca de dois membros da companhia que tinham saído de Mountain Meadows no início da semana para encontrar e trazer de volta o gado disperso. Os homens encontraram os emigrantes e mataram um deles. O outro conseguira escapar e retornara ao acampamento da companhia, ciente de que havia sido atacado por dois homens brancos.

Agora os emigrantes sabiam que os santos dos últimos dias estavam envolvidos no ataque ao acampamento.35


Dois dias depois, em 9 de setembro, Isaac se encontrou com o xerife John Higbee, que acabara de voltar da emboscada.36 Desde os primeiros assassinatos, John D. Lee havia liderado pequenos ataques contra a companhia.37 Higbee sabia que o suprimento de água e de comida dos emigrantes logo acabaria. Porém, nos dias seguintes, outras companhias de carroções poderiam passar pela área e descobrir o papel dos santos no ataque.38

Para esconder o envolvimento dos colonos, Isaac e Higbee decidiram que a milícia local teria que acabar com o cerco. Todos na companhia que pudessem implicar os responsáveis pelos ataques teriam que ser mortos.39

Depois da reunião, Isaac foi a Parowan a fim de obter a permissão de William Dame para ordenar que a milícia atacasse os emigrantes. Ainda acreditando que os emigrantes haviam sido vítimas de um ataque de índios, William e os membros do conselho quiseram enviar a milícia para Mountain Meadows a fim de proteger a companhia e ajudá-la a retomar a viagem.40

Em uma reunião particular com William, no entanto, Isaac admitiu que os santos dos últimos dias estavam envolvidos nos ataques e que os emigrantes sabiam disso. Ele disse que a única opção agora era matar qualquer sobrevivente com idade suficiente para testemunhar contra os colonos.41

Considerando o que lhe fora dito, William deixou de lado a decisão do conselho e autorizou um ataque.42


No dia seguinte, 10 de setembro, Brigham Young se reuniu com Jacob Hamblin em Salt Lake City para saber como os paiutes armazenavam alimentos. Se os santos fossem obrigados a fugir para as montanhas quando o exército chegasse, Brigham queria saber como sobreviver em terrenos difíceis.42

Porém, o exército já parecia menos ameaçador do que os santos tinham imaginado. Um representante do exército chegara recentemente à cidade e declarara que os soldados não pretendiam ferir os santos. Também parecia improvável que a maioria do exército chegasse na área antes do inverno.44

Enquanto Brigham e Jacob conversavam, o mensageiro de Cedar City, James Haslam, interrompeu a reunião com a mensagem sobre o cerco em Mountain Meadows.45 Brigham leu a carta e então olhou para o mensageiro. James cavalgara 400 quilômetros em três dias — praticamente sem dormir. Percebendo que não tinha tempo a perder, Brigham perguntou se ele poderia levar sua resposta de volta a Cedar City. Ele respondeu que sim.46

Brigham lhe disse que dormisse um pouco e retornasse para pegar a resposta.47 James saiu e Brigham escreveu a resposta. “No tocante às companhias de emigrantes que passam por nossas colônias, não podemos interferir com eles até que sejam notificados para manterem distância”, ele instruiu. “Não os provoquem. É esperado que os índios façam o que bem lhes aprouver, mas vocês devem se esforçar para manter um bom relacionamento com eles.

Deixem que sigam em paz”, insistiu Brigham.48

Uma hora depois, Brigham entregou a carta a James e o acompanhou até onde estava o cavalo. “Irmão Haslam”, ele disse, “quero que cavalgue o mais rápido que puder”.49


Embora para os santos de Salt Lake City não fosse mais esperado que os soldados invadissem suas ruas naquela estação, os santos no sul de Utah continuavam sem saber das declarações de paz do exército e das instruções de Brigham para não interferirem nas companhias de emigração. Os santos em Cedar City ainda acreditavam que o exército pretendia destruí-los.

Por mais de uma semana, as mulheres da cidade observaram os homens de sua família cada vez mais agitados em relação aos emigrantes do Arkansas. Eles ficavam até tarde da noite fora de casa, realizavam conselhos e planejavam maneiras de lidar com a situação. Agora, a milícia estava a caminho de Mountain Meadows.50

Na tarde de 10 de setembro, as mulheres se reuniram para a reunião mensal da Sociedade de Socorro. Algumas se sentiram ameaçadas quando os emigrantes passaram por Cedar City. Outras, inclusive Annabella Haight e Hannah Klingensmith, eram esposas de líderes que participaram dos eventos na semana anterior.51

“Estes são tempos difíceis”, disse Annabella às mulheres, “e devemos fazer nossas orações pessoais em favor dos maridos, filhos, pais e irmãos”.

“Sejamos consistentes em nossas orações pessoais em favor de nossos irmãos que estão agindo em nossa defesa”, concordou Lydia Hopkins, a presidente da Sociedade de Socorro. Ela e as conselheiras instruíram as mulheres presentes e designaram várias delas a visitar outras mulheres da cidade.

Antes de terminarem a reunião, cantaram um hino.

O arrependimento nossa alma vem limpar,

E do pecado nos livrar;

A coroa de glória nos espera e em breve chegará.52


Enquanto isso, em Mountain Meadows, cerca de 60 a 70 milicianos de Cedar City e de outros assentamentos vizinhos estavam reunidos com John D. Lee no rancho de Jacob Hamblin, que ainda não retornara de Salt Lake City.53 Alguns eram adolescentes, mas a maioria tinha entre 20 e 30 anos de idade.34 Uns poucos pensavam que estavam lá para enterrar os mortos.55

À noite, John Higbee, John D. Lee, Philip Klingensmith e outros líderes repassaram os planos do ataque com os milicianos. Um a um, os homens concordaram com o plano, convencidos de que, se deixassem a companhia do Arkansas seguir em frente, os inimigos da Igreja ficariam sabendo a verdade sobre o cerco.56

Na manhã seguinte, em 11 de setembro, Nephi Johnson, de 23 anos de idade, estava no alto de uma colina observando Mountain Meadows. Como falava fluentemente o idioma dos paiutes, foi-lhe ordenado que liderasse o ataque dos índios. Nephi queria esperar a resposta de Brigham Young, mas a milícia insistiu em atacar naquele momento. Ele acreditava que não tinha outra saída a não ser cooperar.57

Ficou observando quando um sargento da milícia, carregando uma bandeira branca de trégua, encontrou um dos emigrantes do lado de fora da barricada da companhia e se ofereceu para ajudar os sobreviventes. Depois que aceitaram a oferta, John D. Lee se aproximou da barricada para negociar o resgate. Ele instruiu a companhia a esconder as armas nos carroções e deixar o gado e os bens como presentes para os paiutes.58

John ordenou os emigrantes a segui-lo. Dois carroções com os doentes, os feridos e as crianças pequenas foram na frente, seguidos por uma fileira de mulheres e crianças maiores. Os meninos mais velhos e os homens andavam a uma certa distância atrás, cada um com um miliciano armado ao lado. Alguns homens e mulheres carregavam crianças pequenas no colo.59

Nephi sabia o que aconteceria em seguida. Os emigrantes passariam pelo rancho de Hamblin. Em algum ponto, Higbee daria o sinal para que cada miliciano se voltasse e atirasse no emigrante ao lado. Nephi ordenaria, então, o ataque dos paiutes.60

Logo, John D. Lee e os emigrantes passaram abaixo de onde Nephi estava escondido com os paiutes. Ele aguardou o sinal de Higbee, mas ele não o fez. Confusos, os paiutes tiveram dificuldade para permanecer escondidos enquanto se apressavam para acompanhar a procissão.61 Por fim, Higbee virou o cavalo para encarar a milícia.

“Parem!”, gritou ele.62


Quando os homens da milícia ouviram o sinal de Higbee, a maioria apontou a arma para os homens e os meninos e os matou instantaneamente. O estrondo do tiroteio parecia ecoar através do prado enquanto a fumaça das armas encobria os emigrantes.63 Nephi deu o sinal para os paiutes atacarem; eles tomaram suas posições e atiraram nos emigrantes mais próximos.64

Os emigrantes que sobreviveram à primeira onda de ataques fugiram para salvar a vida. Higbee e outros homens a cavalo os impediram enquanto os milicianos que estavam a pé os perseguiam e os abatiam, poupando apenas algumas das crianças menores.65 Nos carroções que transportavam os doentes e os feridos, John D. Lee cuidou para que não fosse poupado ninguém que pudesse contar a verdadeira história.66

Depois, o fedor de sangue e de pólvora ficou pairando sobre Mountain Meadows. Mais de 120 emigrantes foram mortos desde o primeiro ataque, quatro dias antes. Enquanto alguns dos atacantes saqueavam os corpos, Philip Klingensmith reuniu 17 crianças pequenas e as levou para o rancho de Hamblin. Quando a esposa de Jacob Hamblin, Rachel, viu as crianças, a maioria chorando e cobertas de sangue, ficou extremamente triste. Uma das crianças mais novas, uma menina de 1 ano, fora atingida por um tiro no braço.67

John D. Lee queria separar a menina ferida das duas irmãs, mas Rachel o convenceu a mantê-las juntas.68 Naquela noite, enquanto Rachel cuidava das crianças angustiadas, John se deitou do lado de fora da casa e dormiu.69


Na manhã seguinte, Isaac Haight e William Dame chegaram no rancho de Hamblin. Era a primeira vez que ambos visitavam Mountain Meadows desde que o cerco começara.70 Quando soube o número de pessoas que foram mortas, William entrou em choque. “Devo reportar esse assunto às autoridades”, ele disse.

“E implicar você mesmo e os outros?”, disse Isaac. “Tudo foi feito sob suas ordens.”71

Mais tarde, John D. Lee levou os dois homens ao local do massacre. Os sinais da carnificina estavam por todos os lados e alguns homens estavam enterrando os corpos em covas rasas.72

“Eu não sabia que havia tantas mulheres e crianças”, disse William com o rosto pálido.73

“O coronel Dame conversou comigo e me ordenou que fizesse isso, e agora ele quer se voltar contra mim”, disse Isaac a John, sua voz enchendo-se de ódio. “Ele tem que assumir o que fez, como um homem.”

“Isaac”, disse William, “eu não sabia que havia tanta gente”.

“Isso não faz diferença”, respondeu Isaac.74


Mais tarde, depois que os mortos foram enterrados, Philip Klingensmith e Isaac falaram aos milicianos que mantivessem em segredo sua participação no massacre.75 Pouco depois, James Haslam, o mensageiro enviado a Salt Lake City, chegou com as instruções por escrito de Brigham Young para que deixassem que os emigrantes partissem em paz.

Isaac começou a chorar.76 “Temo ser tarde demais”, ele disse. “Tarde demais.”77

Capítulo 19

Nas câmaras do Senhor

soldados marchando com rifles

Em 13 de setembro de 1857, Johan e Carl Dorius empurravam seus carrinhos de mãos rumo a Salt Lake City na companhia das esposas Karen e Elen. Tendo descartado a bagagem extra ao longo da trilha para aliviar a carga, eles e o restante da companhia entraram na cidade vestindo os mesmos trapos que vinham usando por semanas. Algumas das mulheres tinham substituído os sapatos desgastados por um pedaço de lona enrolado nos pés. Ainda assim, depois de meses na trilha, os emigrantes se sentiam gratos por chegarem a Sião e orgulhosamente hastearam a bandeira dinamarquesa no carrinho de mão que ia à frente do grupo.1

À medida que passavam pela cidade, os santos lhes traziam bolos e leite para lhes dar as boas-vindas. Os irmãos Dorius logo avistaram o pai entre a multidão. Nicolai os cumprimentou efusivamente e os apresentou à nova esposa, Hannah Rasmusen, também da Dinamarca. Os irmãos e as famílias seguiram com os carrinhos de mão para uma área descampada na cidade, descarregaram seus poucos pertences e foram com Nicolai e Hannah para uma casa pequena e confortável no extremo sul da cidade.2

Nicolai e Hannah tinham viajado na mesma companhia de carroções para o Oeste, dois anos antes. Hannah era casada na época, mas, durante a jornada, o marido abandonou a ela e ao filho adolescente, Lewis. Conhecendo a dor de um casamento desfeito, Nicolai podia compreendê-la. Os dois foram selados na casa de investidura no dia 7 de agosto de 1857, e Lewis assumiu para si o nome Dorius.3

Enquanto Johan, Carl e as esposas descansavam da jornada, os santos em todo o território se preparavam para a chegada do exército. Com muita cautela, Brigham Young declarou lei marcial em 15 de setembro e emitiu uma proclamação proibindo o exército de entrar no território. Embora os mensageiros do exército insistissem que as tropas vinham apenas para instalar um novo governador territorial, os espiões dos santos estiveram nos acampamentos do exército e ouviram os soldados se gabando do que fariam aos santos quando chegassem a Utah.4

Atormentado pela memória de milícias e turbas saqueando as casas, queimando os assentamentos e matando os santos no Missouri e em Illinois, Brigham estava preparado para esvaziar o vale e destruir Salt Lake City se o exército a invadisse. “Antes que eu sofra novamente o que já sofri”, declarou em meados de setembro, “não haverá um edifício, um pedaço de madeira ou pau, uma árvore, um pedaço de grama e feno ao alcance de nossos inimigos que não sejam queimados”.5

Ele continuou a falar sobre esse assunto nos dias que antecederam a conferência de outubro. “Andemos, pois, nos preceitos do nosso Salvador”, disse ele aos santos. “Sei que tudo ficará bem, e a suprema providência de Deus, que tudo sabe, permitirá que sejamos vencedores.”6

Embora não falassem inglês, Johan e Carl Dorius participaram da conferência geral pela primeira vez no dia 7 de outubro. Antes de terminar a reunião, Brigham ofereceu a oração de encerramento. “Abençoa Teus santos nos vales e nas montanhas”, ele orou. “Esconda-nos nas câmaras do Senhor, onde reuniste Teu povo e onde temos descansado em paz por muitos anos.”7

Uma semana depois, Nicolai e Hannah se mudaram para o Forte Ephraim, no vale de Sanpete, onde moravam as filhas de Nicolai, Augusta e Rebekke. Johan e Karen, no entanto, permaneceram na cidade com Carl e Elen. Como a maioria dos santos que migraram para o vale, eles se batizaram novamente para renovar os convênios e começaram a se preparar para receber as ordenanças do templo na casa de investidura.

Johan e Carl também ficaram disponíveis para defender a cidade.8


Nessa época, John D. Lee se reuniu com Brigham Young e Wilford Woodruff em Salt Lake City para relatar o massacre que acontecera em Mountain Meadows. A maior parte do que John lhes contou sobre a companhia de Arkansas era falso. “Muitos deles fizeram parte da turba no Missouri e em Illinois”, mentiu. “Enquanto viajavam ao Sul, eles amaldiçoavam Brigham Young, Heber C. Kimball e os líderes da Igreja.”9

John também repetiu um falso rumor que dizia que os emigrantes haviam envenenado o gado e provocado os paiutes. “Os índios os atacaram por cinco dias, até matarem todos os homens”, afirmou, sem mencionar uma palavra a respeito da participação dos santos no episódio. “Depois cercaram as mulheres e as crianças e lhes cortaram a garganta, exceto umas oito ou dez crianças, que trouxeram e venderam para os brancos.”

Escondendo seu próprio papel no ataque, John afirmou que ele fora aos prados somente depois do massacre para ajudar a enterrar os corpos. “Foi algo terrível e horripilante”, relatou. “O ar estava impregnado de um fedor horrível.”

“É desolador”, disse Brigham, acreditando no relatório.10 Dois meses depois, John escreveu seu relato do massacre e o enviou a Salt Lake City. Brigham, então, incluiu longos trechos da carta em seu relatório oficial do massacre ao comissário de assuntos indígenas em Washington, D.C.11


Enquanto isso, os rumores do massacre se espalharam pela Califórnia. Um mês depois do ocorrido, o primeiro relato detalhado dos assassinatos foi publicado em um jornal de Los Angeles.12 Em seguida, outros jornais também publicaram a história.13 A maioria das reportagens especulava sobre o envolvimento dos santos no ataque. “Quem pode ser tão cego para não ver que as mãos dos mórmons estão manchadas com esse sangue?”, questionou um editorial.14

Sem saber da participação protagonista dos santos de Cedar City no massacre, George Q. Cannon tratou essas publicações com desdém. Como editor do Western Standard, o jornal da Igreja em São Francisco, ele escreveu acusando os repórteres de incitarem o ódio contra os santos. “Estamos cansados desse abuso contínuo e do acúmulo de falsas acusações”, escreveu ele. “Sabemos que os mórmons no território de Deseret são um povo trabalhador, pacífico e temente a Deus, e que eles foram maltratados e difamados.”15

Por essa época, os missionários espalhados pelo mundo começaram a voltar para casa, obedecendo ao chamado de Brigham Young para ajudar suas famílias e proteger Sião do exército. Em 22 de outubro, o jovem de 18 anos, Joseph F. Smith, e outros élderes da missão havaiana chegaram totalmente sem dinheiro ao escritório do Western Standard. George deu um casaco e um cobertor a Joseph e o enviou para casa, com seus companheiros.16

Depois de pouco mais de um mês, em 1º de dezembro, os apóstolos Orson Pratt e Ezra Benson chegaram a São Francisco com os élderes da missão britânica. Sabendo que o presidente dos Estados Unidos declarara que os santos estavam em rebelião aberta contra o governo, os apóstolos tinham viajado com nomes falsos para não serem detidos a caminho de Utah. Na cidade, chamaram George e o aconselharam a voltar com eles para Sião.

Com tanta hostilidade dirigida aos santos na Califórnia, George foi facilmente convencido. Ele já havia terminado a impressão do Livro de Mórmon em havaiano, um dos principais objetivos de sua missão. “Deixo São Francisco sem qualquer pesar”, escreveu ele no diário.17

Enquanto isso, com a notícia correndo de que grupos de homens estavam atacando os membros da Igreja para vingar o massacre de Mountain Meadows, muitos santos fugiram da Califórnia em pequenas companhias.18 Joseph F. Smith conseguiu trabalho ao ser contratado para dirigir uma parelha de bois até Utah. Um dia, ele estava recolhendo lenha quando alguns homens entraram no acampamento e ameaçaram matar qualquer “mórmon” que encontrassem.

Alguns homens no acampamento se esconderam no mato ao lado de um riacho próximo. Joseph quase fugiu para a mata também, mas parou.19 Certa vez, ele encorajara a irmã Martha Ann a “ser mórmon em todas as circunstâncias”.20 Por que ele não faria o mesmo?

Joseph entrou no acampamento, com a lenha ainda nos braços. Um dos homens a cavalo se aproximou dele com uma pistola na mão. “Você é mórmon?”, inquiriu ele.

Joseph encarou o homem, certo de que seria morto. “Sim, senhor”, respondeu. “Sou mórmon roxo, de quatro costados até debaixo d’água.”

O homem olhou Joseph, confuso. Baixou a pistola e parecia paralisado por um momento. “Toque aqui, companheiro”, disse estendendo a mão. “Fico contente em ver um homem que defende suas convicções.”

Ele e os outros cavaleiros se viraram e saíram do acampamento, e Joseph e a companhia agradeceram ao Senhor por protegê-los do perigo.21


Enquanto muitos santos da Califórnia partiram para Utah imediatamente, outros não estavam preparados para tal. Várias famílias também tinham construído casas e negócios lucrativos em San Bernardino, o maior assentamento dos santos na Califórnia. Eles tinham orgulho de suas belas fazendas e pomares. Nenhum deles queria ver os anos de trabalho árduo serem desperdiçados.22

Entre esses santos estavam Addison e Louisa Pratt, que moravam na cidade desde que ele retornara das Ilhas do Pacífico, em 1852. Louisa estava disposta a se mudar novamente mesmo estimando sua casa e seu pomar na Califórnia. Mas Addison estava mais hesitante em partir. A crise em Utah lhe causou grande preocupação e ele ficara ressentido.

Addison enfrentara vários dissabores nos últimos cinco anos. Ele estava disposto a servir outra missão no Pacífico sul, mas o governo do protetorado francês no Taiti praticamente proibiu sua pregação. Além disso, seu ex-companheiro na missão, Benjamin Grouard, afastara-se da Igreja.23

Addison também preferia o clima quente da Califórnia ao clima muitas vezes imprevisível de Utah. E ele era altamente leal aos Estados Unidos. Se os soldados americanos invadissem Utah, ele achava que não poderia combatê-los com a consciência tranquila.

A relutância dele em se mudar incomodou Louisa. As três filhas mais velhas já estavam casadas. Duas delas, Ellen e Lois, planejavam se mudar para Utah com os maridos. Ann, a filha mais nova, também queria ir. Só Frances e o marido ficariam na Califórnia.24

À noite, enquanto todos os moradores de San Bernardino dormiam, Louisa frequentemente saía para regar as árvores em seu pomar, que estavam começando a dar frutos. “Devo ir e deixá-las?”, ela se perguntou. Ao Norte, uma estrada no cânion serpenteava pela montanha escura até o topo de um desfiladeiro alto. Do outro lado da montanha, centenas de quilômetros se estendiam de deserto estéril. Escolher a árdua jornada para Utah seria mais fácil, ela pensava, se Addison estivesse disposto a ir junto.25

Enquanto refletia sobre a escolha que precisava fazer, Louisa sentiu o coração bater de amor pela Igreja. No batismo, ela prometera se juntar aos santos. E ela sabia que, se os membros da Igreja escolhessem seguir cada um seu caminho, em breve eles se tornariam uma comunidade de desconhecidos. A decisão ficou clara. Ela voltaria para Utah.

Louisa e Ann partiram da Califórnia no começo de janeiro, com Ellen, Lois e suas famílias. Nada do que Louisa disse foi capaz de convencer Addison a ir com eles. Ele apenas disse que a encontraria no vale no ano seguinte e talvez levasse Frances e o marido com ele. Addison acompanhou a família até atravessarem as montanhas, certificando-se de que tivessem um lugar em uma companhia de carroções.

Por muitos dias, Louisa e as filhas choraram pelos entes queridos que haviam deixado para trás.26


No final de março de 1858, as tropas dos Estados Unidos, agora sob o comando do general Albert Sidney Johnston, estavam acampadas nos arredores do território de Utah. Em um esforço para desacelerar o avanço das tropas, a milícia dos santos passou parte do outono atacando os suprimentos do exército e queimando os carroções e os fortes. Os ataques frustraram e humilharam os soldados, que passaram o inverno agachados na neve ao lado das ruínas carbonizadas de seus carroções, sobrevivendo com rações escassas e amaldiçoando os santos.

Naquele inverno, Thomas Kane, o fiel aliado dos santos no Leste, também foi para Salt Lake City, arriscando-se em uma perigosa viagem por mar até a Califórnia, através do istmo do Panamá, e depois viajando por terra até Utah. Com o apoio não oficial do presidente James Buchanan, ele se reuniu com Brigham e outros líderes da Igreja antes de seguir para os acampamentos do exército para negociar a paz. Os líderes do exército, no entanto, zombaram da conversa de Thomas sobre a paz.27

“Nossos inimigos estão determinados a nos matar se puderem”, disse Brigham aos santos em uma conferência especial em Salt Lake City.28 Para salvar vidas e talvez despertar a solidariedade de prováveis aliados nos estados do Leste, ele anunciou um plano para que os santos que moravam em Salt Lake City e arredores se mudassem para Provo e outros assentamentos mais ao sul.29 A medida ousada desestabilizaria a vida de muitos membros da Igreja, e Brigham não tinha plena certeza de que era a coisa certa a fazer.

“‘Um profeta ou um apóstolo podem errar?’ Não me façam tal pergunta, pois sempre reconhecerei que sim”, ele declarou. “Mas afirmo que não tenho a menor intenção de desviar este povo da verdade e que não cometo um erro propositadamente embora eu possa errar muito.”30

Brigham acreditava que era melhor agir firmemente, em vez de correr o risco de deixar que os santos suportassem os mesmos horrores que tinham vivenciado no Missouri e em Illinois. Em poucos dias, ele chamou 500 famílias e as instruiu a se mudarem para o sul imediatamente e semear os campos para alimentar os milhares de santos que se seguiriam. Também enviou homens para avaliar um novo lugar onde pudessem se estabelecer e instruiu os santos das cidades do Sul a se prepararem para receber os exilados.31 Logo, os santos no Vale do Lago Salgado estavam carregando os carroções e se preparando para se mudar.32

Poucas semanas depois, Alfred Cumming, recém-nomeado governador do território de Utah, chegou a Salt Lake City a convite de Thomas Kane. Como um gesto de paz, ele veio sem escolta do exército.33 Alfred tinha 55 anos e servira ao governo dos Estados Unidos em vários postos durante sua carreira. Além disso, ele aparentava não ter os preconceitos usuais em relação aos santos.

Ao entrar em Salt Lake City, ele viu pessoas carregando móveis e mercadorias em carroças, juntando o gado e indo para o Sul. “Não vão embora! Vocês não serão feridos!”, Alfred anunciou. “Não serei seu governador se não me quiserem!”34 Suas palavras em nada mudaram a decisão deles.

Em Salt Lake City, Alfred e Thomas investigaram algumas das acusações de rebelião contra os santos e se reuniram com Brigham e outros líderes da Igreja. Depois de alguns dias, Alfred estava convencido de que as acusações eram exageradas.35

Pouco mais de uma semana depois de sua chegada, ele falou a uma congregação em Salt Lake City. “Se eu errar em minha administração”, disse ele aos santos, “desejo, meus amigos, que vocês venham me aconselhar”. Ele reconheceu que os santos tinham sido muito difamados fora de Utah e prometeu cumprir suas responsabilidades com boas intenções.36

Quando terminou, os santos ainda estavam cautelosos, mas Brigham se levantou e expressou seu apoio. As boas-vindas foram mornas, mas Alfred tinha motivos para esperar que os santos o aceitassem como seu novo governador.37


Apesar das palavras tranquilizadoras do governador, a estrada para o sul de Provo ficou congestionada de carroções, carruagens e gado por mais de 65 quilômetros.38 A família de Brigham ocupava vários edifícios em Provo. Outros santos não tinham ideia de onde se estabeleceriam assim que chegassem aos assentamentos do Sul. Não havia casas suficientes para todos, e algumas famílias não tinham nada além dos carroções ou das barracas para se abrigar. E com o exército ainda a caminho, muitas pessoas se perguntavam quanto tempo demoraria até que vissem fumaça subindo do Vale do Lago Salgado.39

Em 7 de maio, Martha Ann Smith Harris se mudou com a sogra e o restante da família Smoot para um lugar chamado Pond Town, cerca de 22 quilômetros ao sul de Provo.40 Antes de deixar Salt Lake City, o bispo Smoot colocou cinco barris de pólvora na fundação de sua casa para facilitar a destruição caso o exército se apoderasse da cidade. Outros membros da Ala Sugar House seguiram a família Smoot até Pond Town, e o bispo Smoot e seus conselheiros logo recomendaram a organização de uma nova ala ali.41

A mudança interrompeu a rotina habitual de Martha Ann de fiar e tecer, de ordenhar vacas, de fazer manteiga, de ensinar na escola e de ensinar a sogra a ler e a escrever. Porém, deu a ela e aos outros membros da família novas oportunidades de trabalho.42 Os santos em Pond Town e em outros assentamentos se estabeleceram perto de água doce, construíram abrigos, semearam plantações e jardins e montaram lojas e moinhos.43

Os ventos da primavera sopraram frios a princípio, e os abrigos rústicos mal conseguiam protegê-los das intempéries.44 A escassez de água e o desabastecimento atrapalharam os assentamentos temporários, mas a maioria dos santos se contentou em se afastar do exército. Com o tempo, eles se ajustaram ao novo lar.45

A maioria dos parentes de Martha Ann, no lado da família Smith, mudou-se para o Sul, mas o irmão Joseph, recém-retornado do Havaí, permaneceu em Salt Lake City para servir na milícia com outros jovens, inclusive Johan e Carl Dorius. “Estou fazendo muito pouco ou nada aqui agora”, relatou Joseph em uma carta. “A cidade, as casas e o campo parecem desertos e solitários.”46

Martha Ann tinha poucas notícias do marido, William, que ainda estava em missão na Inglaterra. Ele escrevera pela última vez no final de novembro de 1857, logo depois que Brigham Young chamara os missionários de volta para casa. “Martha querida, minha mente está cheia de reflexões e mal sei por onde começar”, escreveu William. “Considerando as condições atuais, em breve cruzarei o oceano e chegarei em casa no Oeste.”

“Adeus, meu amor”, acrescentou, “até que nos encontremos novamente”.

Na carta, William informou que estaria em casa na primavera, mas a primavera estava terminando, e Martha Ann não tinha nem sinal da chegada dele.47


Antes da mudança para o Sul, aproximadamente 8 mil pessoas moravam em Salt Lake City. No meio de junho, apenas cerca de 1.500 pessoas lá permaneciam. A maioria das casas e das lojas tinha sido abandonada, e as portas e janelas, lacradas. Os jardins dos santos estavam verdes e florescendo lindamente apesar da falta de cuidados. Às vezes, o único som na cidade era o fraco escoar da água nas valas de irrigação que corriam pelas ruas.48

Uma comissão de paz chegou por volta dessa época e ofereceu a Brigham Young e aos santos o perdão completo do presidente por seus crimes, quaisquer que fossem, em troca de obediência ao governo. Os santos não achavam que tivessem cometido crimes, mas mesmo assim aceitaram o perdão.

No leste dos Estados Unidos, as pessoas continuavam a desconfiar dos santos e a compreendê-los mal. Porém, depois que os oficiais do governo tinham visitado Utah e Brigham cedera pacificamente o governo a Alfred Cumming, muitos no Leste deixaram de acreditar que os santos estivessem rebelados.49 Os editores de jornais que criticaram Brigham Young agora criticavam o presidente James Buchanan.

“A guerra mórmon foi, sem dúvida alguma, um grande erro do começo ao fim”, escreveu um repórter. “Não importa o modo como a vemos, foi uma sucessão de erros estúpidos.”50

No dia 26 de junho de 1858, o exército marchou até Salt Lake City. O local parecia uma cidade fantasma. O mato estava crescendo nas ruas e nos jardins na frente das casas. Antes de ir embora, os santos aterraram a fundação do templo para protegê-la dos saques dos soldados. Quando as tropas passaram pelo lote do templo, encontraram o que parecia ser um terreno arado.51


No final da Guerra de Utah, como ficou conhecida a crise, Brigham Young incentivou todos a voltar para casa. Em julho, muitos dos santos começaram a retornar para o Norte. Em um ponto estreito onde as montanhas dividem os vales de Utah e de Salt Lake, viram o exército marchando em direção a eles. As tropas se dirigiam para o acampamento Floyd, um novo posto avançado em uma área remota chamada Cedar Valley, 65 quilômetros a sudoeste de Salt Lake.52

Enquanto o exército passava pelos santos, alguns soldados importunavam as moças ou os homens que viajavam em carruagens com suas esposas plurais. Por fim, a estrada ficou congestionada e os santos que retornavam aguardaram por três horas até que o exército passasse. Quando o caminho finalmente ficou livre, os santos continuaram a viagem para casa.53

A mudança para o sul espalhara a Igreja por todo o vale sulino, e seriam necessários tempo e recursos para reuni-los novamente ao norte. Quando os santos voltaram para casa, encontraram as casas, as fazendas e as obras públicas em desordem. Muitas alas tinham parado de funcionar. A maioria das Sociedades de Socorro e das Escolas Dominicais tinham se desfeito completamente.54

Quando a família Smoot partiu de Pond Town, em meados de julho, Martha Ann dirigira uma parelha de cavalos para seus sogros. No dia 12 de julho, quando contornou a montanha e entrou no Vale do Lago Salgado, viu uma figura à distância, cavalgando em direção a ela em uma mula branca. Eles se aproximaram e, para surpresa de Martha Ann, o cavaleiro era seu marido, William, que voltava para casa.55

Capítulo 20

Os sinais foram dados

carroça puxada por mula descendo o desfiladeiro

No verão de 1858, por volta da época em que o exército passou por Salt Lake City, um professor chamado Karl Maeser recebeu uma oferta tentadora da família de John Tyler, ex-presidente dos Estados Unidos. Durante meses, Karl ensinara música aos filhos de John e Julia Tyler em uma vasta fazenda de plantio no sul dos Estados Unidos. Karl era um imigrante alemão que causara uma excelente impressão na família Tyler, com sua refinada educação, seu cavalheirismo e seu humor sutil. Eles ofereceram um salário para que Karl morasse perto da família e continuasse a ensinar seus filhos.1

A oferta era generosa demais para ser recusada. Uma crise financeira arruinara a economia pouco depois que Karl e sua esposa, Anna, chegaram da Alemanha. Dezenas de milhares de pessoas perderam o emprego nas cidades por todos os Estados Unidos, Canadá e Europa. Por um tempo, Karl e Anna tiveram dificuldades para encontrar trabalho e alimentar a família. Ensinar os filhos da família Tyler trouxe alguma estabilidade financeira ao casal Maeser e ao filho de 3 anos, Reinhard.2

Mas Karl não tinha a intenção de aceitar a oferta do casal Tyler. Certa vez, ele dissera a Julia Tyler que tudo o que ele precisava para ser feliz era de uma casa pequena com um pomar para a família. O que deixou de mencionar é que ele e Anna eram santos dos últimos dias e que tinham vindo para os Estados Unidos para se reunirem em Sião. Um dos motivos de Karl ter procurado trabalho no Sul, além de prover o sustento da família, era juntar dinheiro suficiente para migrar para o Oeste.3

Karl conhecera a Igreja enquanto vivia na Alemanha. Depois de ler um livro hostil à Igreja e sua mensagem, ele entrou em contato com os líderes da missão europeia. O apóstolo Franklin Richards e um missionário, que se chamava William Budge, logo vieram para a Alemanha e ensinaram o evangelho à família de Karl. Ele e Anna aceitaram imediatamente a mensagem.

Como era ilegal se filiar à Igreja na Alemanha, Franklin teve que batizar o professor à noite. Quando Karl saiu das águas do batismo, ergueu as mãos para o alto e orou: “Pai, se o que acabei de fazer é do Teu agrado, dá-me um testemunho, e o que quer que me pedires, farei”.4

Karl não falava inglês na época, então ele e Franklin estavam se comunicando com a ajuda de um intérprete. Mas, enquanto caminhavam de volta à cidade, Karl e Franklin, de repente, começaram a entender um ao outro, como se estivessem falando a mesma língua. Aquela manifestação do dom de línguas era o testemunho que Karl estava buscando, e ele tinha a intenção de permanecer fiel à palavra que dera, custasse o que custasse.5

Agora, passados três anos, ele continuava a se esforçar para cumprir a promessa que fizera no batismo. Decidido a ir para Sião, Karl recusou a oferta do casal Tyler e foi com a família para a Filadélfia, uma cidade grande a nordeste dos Estados Unidos, onde logo foi chamado para presidir um pequeno ramo da Igreja.6

Antes da recente crise em Utah, ramos como aquele tinham exercido um importante papel no apoio ao trabalho missionário e à emigração, defendendo a Igreja dos críticos e trabalhando ao lado do governo em favor da Igreja. Porém, depois que Brigham Young chamou os missionários de volta e aconselhou os santos do Leste a virem para o Oeste, muitos daqueles ramos ficaram com poucos membros e sem recursos suficientes para manter suas atividades.7

Ser membro da Igreja no Leste era muito desafiador. A reputação da Igreja naquela área piorara muito rápido na última década. Muitas pessoas continuavam a pensar que os santos tinham se rebelado e que não eram patriotas. Um líder da Igreja recebeu ameaças de morte na cidade de Nova York, e alguns membros tiveram seu corpo coberto de piche e penas devido a suas crenças. Outros escondiam sua condição de membros da Igreja para evitar maiores perseguições.8

Na Filadélfia, Anna ganhava dinheiro como costureira e arrumadeira, enquanto Karl ministrava aos membros do ramo, frequentava as conferências regionais da Igreja e ajudava a planejar a próxima estação de emigração. Eles faziam o que podiam para fortalecer aquele pequeno ramo.9 No entanto, para que a Igreja prosperasse ali e em todo o mundo, os santos precisavam combater as muitas ideias falsas e os mal-entendidos sobre eles.

E precisavam de mais missionários no campo para continuar o trabalho de salvação.


No começo de setembro de 1858, George Q. Cannon estava publicando o Deseret News em uma cidade no centro de Utah chamada Fillmore. A matriz do jornal era em Salt Lake City, mas, quando os santos foram para o Sul no início daquele ano, George, com a ajuda da família, embalou o pesado equipamento de impressão e o transportou por aproximadamente 240 quilômetros até Fillmore.10

Agora que já era seguro voltar para Salt Lake City, George decidiu levar de volta o maquinário de impressão para o Norte. Em 9 de setembro, ele e o irmão mais novo, David, colocaram os equipamentos nos carroções e voltaram para a cidade com a família de George, que estava em crescimento. George e Elizabeth tinham agora um filho de 1 ano, John, e mais um bebê estava a caminho. George se casara com uma segunda esposa, Sarah Jane Jenne, que também estava grávida.

Quatro dias depois de deixarem Fillmore, a família Cannon parou para descansar em uma cidade, a cerca de 115 quilômetros de Salt Lake City. Enquanto George desatrelava os animais, um homem em uma carroça puxada por mulas parou ao lado dele. Era um mensageiro de Brigham Young que estivera procurando por George desde a noite anterior. Ele disse que Brigham esperava que George já estivesse na cidade. A Igreja estava novamente enviando missionários, e um grupo de élderes o aguardava para partir em uma missão no leste dos Estados Unidos.

George ficou confuso. Que missão no Leste? Em meia hora, ele e Elizabeth arrumaram uma pequena mala e rapidamente se dirigiram para Salt Lake City, enquanto David seguiu logo atrás com Sarah Jane e a impressora. George chegou na cidade na manhã seguinte, às 5 horas e, depois do desjejum, foi imediatamente para o escritório de Brigham. Brigham o saudou e perguntou: “Você está pronto?”

“Estou”, respondeu George.

Brigham se voltou para um dos homens atrás dele. “Falei que ele estaria”, disse ele. Um secretário, então, entregou para George as instruções sobre a missão.11

A assembleia legislativa do território de Utah estava entrando novamente com uma petição no Congresso dos Estados Unidos para receber a condição de estado e ter o direito de eleger ou indicar todos os oficiais do governo local. Sabendo que outra petição seria negada se a opinião pública sobre a Igreja continuasse ruim, Brigham queria que George fosse em uma missão especial para presidir os santos no Leste, publicar artigos positivos nos jornais e melhorar a reputação da Igreja em todo o país.12

George sentiu imediatamente o peso da missão. Ele teria que partir no dia seguinte, o que lhe dava pouco tempo para acomodar a família no vale. No entanto, ele acreditava que o Senhor proveria um caminho para cumprir Sua vontade. As experiências no Havaí e na Califórnia haviam preparado George para uma missão dessa magnitude e responsabilidade. Ele sabia que seus irmãos e outros familiares, inclusive os tios Leonora e John Taylor, poderiam ajudar suas esposas e seus filhos.

Brigham abençoou George e o designou missionário por imposição de mãos. George abençoou Elizabeth e John e os deixou aos cuidados do Senhor, assim como Sarah Jane, que ainda estava viajando para o Norte. Na tarde do dia seguinte, ele e um pequeno grupo de missionários seguiram para o Leste através das Montanhas Rochosas.13


Enquanto isso, no Forte Ephraim do vale de Sanpete, Augusta Dorius Stevens tinha finalmente a maior parte da família perto dela. As cunhadas Elen e Karen haviam seguido com seu pai, Nicolai, para o Forte Ephraim quando os santos se mudaram para o Sul. Os irmãos mais velhos de Augusta, Carl e Johan, vieram pouco depois, quando foram liberados do serviço na milícia em Salt Lake City. A irmã mais nova, Rebekke, também vivia na cidade. Somente a mãe deles, Ane Sophie, permanecia na Dinamarca e ainda não era membro da Igreja.14

Desde que se casara com Henry Stevens, há quatro anos, Augusta administrava a casa e cuidava da primeira esposa doente de Henry, Mary Ann, a quem ela amava profundamente.15 Aos 19 anos de idade, Augusta também se tornou a primeira presidente da Sociedade de Socorro Feminina do Forte Ephraim. Além de cuidar dos doentes e aflitos, ela e as irmãs da Sociedade de Socorro fabricavam tecidos, faziam mantas, forneciam comida e abrigo aos necessitados e cuidavam dos órfãos. Quando alguém na cidade falecia, elas lavavam e vestiam o morto, costuravam as roupas funerárias, consolavam os que estavam de luto e preservavam o corpo com gelo do rio San Pitch antes do funeral.16

Pouco antes de a família Dorius se reunir, Augusta deu à luz um menino chamado Jason, que morreu durante uma epidemia antes de completar 1 ano. Apesar de sua dor, Augusta encontrara um lar, e certamente consolo, ao lado da grande comunidade de santos escandinavos no vale de Sanpete, que mantinham os costumes, as tradições e o idioma para enfrentar as provações do novo lar. Enquanto estavam na missão, os irmãos de Augusta tinham ensinado e batizado muitos daqueles santos, o que sem dúvida fortaleceu os laços dela com eles.

Quando chegaram ao Forte Ephraim, em 1858, Carl e Johan foram trabalhar pela primeira vez no cultivo da terra, mas os gafanhotos destruíram suas plantações. Colonos mais experientes como Augusta e Henry tinham passado por desafios semelhantes no vale de Sanpete. Os primeiros santos que chegaram àquela região enfrentaram vários anos de geadas devastadoras e infestação de insetos. Para sobreviver, eles viviam em dois fortes, trabalhavam em plantações comunitárias e compartilhavam a água para irrigação. Quando finalmente conseguiram uma boa colheita, encheram os armazéns de grãos e armazenaram outros alimentos.17

No verão de 1859, a vida de Augusta mudou quando Brigham Young chamou várias famílias de Sanpete para se estabelecerem próximas ao antigo povoado de Spring Town, onde Augusta vivera por pouco tempo assim que chegara ao vale. Pouco depois do chamado, Augusta e Henry se mudaram para lá. Os homens avaliaram o local, planejaram uma cidade e separam um campo de 260 hectares para o cultivo. O campo foi, então, dividido em lotes de dois a quatro hectares, que foram depois repartidos entre as famílias. Em breve, casas, cabanas e uma capela de madeira embelezavam o novo assentamento. Com tantos dinamarqueses morando naquela área, os moradores a apelidaram de Pequena Dinamarca.18

Depois de se estabelecer em Spring Town, Henry começou a construir um moinho de grãos. Enquanto cortava e transportava madeira das montanhas naquele inverno, ele pegou um resfriado terrível e logo desenvolveu uma tosse persistente. A tosse se transformou em asma, tornando o trabalho de Henry muito difícil. Como não havia médicos na cidade, Augusta usou todos os remédios possíveis para aliviar a respiração de Henry. Porém, nada funcionou.19

Cerca de um ano depois que Augusta e Henry se mudaram para Spring Town, a Primeira Presidência chamou os irmãos de Augusta, Johan e Carl, para servir missão novamente na Escandinávia. Como eles não tinham recursos para pagar a viagem, os santos de Forte Ephraim e de Spring Town lhes deram um carroção, um cavalo e uma mula.20


No verão de 1860, poucos meses depois que os irmãos Dorius partiram, George Q. Cannon foi chamado de volta da missão no Leste.21 Nos últimos dois anos, ele e Thomas Kane, um antigo aliado dos santos, tinham publicado vários artigos positivos e procurado influenciar o governo para o benefício da Igreja. Com a estreita colaboração de Karl Maeser e de outros líderes da Igreja, George também fortalecera os santos em Nova York, em Boston, na Filadélfia e em outros ramos do Leste.22

Contudo, a opinião pública permanecia firme contra a Igreja. Um novo partido político, os republicanos, havia se formado recentemente para acabar com a escravidão e a poligamia, denunciando essas práticas como “relíquias gêmeas da barbárie”.23 Os republicanos relacionavam as duas práticas porque erroneamente presumiam que as mulheres eram coagidas ao casamento plural, sem ter como escapar. Das duas questões, no entanto, a escravidão era a que causava uma divisão maior no país, levando muitas pessoas, inclusive George, a prever uma calamidade nacional.

“Nenhum homem que ame a liberdade e as instituições livres e liberais pode testemunhar essas coisas sem sentir que a glória de nossa nação está desaparecendo rapidamente”, escreveu George em uma carta a Brigham Young. “A destruição do governo dos Estados Unidos é inevitável. É apenas uma questão de tempo.”24

Durante a missão, George também recebeu uma carta de Brigham sobre a recente decisão da Primeira Presidência e do Quórum dos Doze. Em uma reunião, em outubro de 1859, Brigham havia proposto chamar um novo apóstolo para substituir Parley Pratt. Ele pedira recomendações aos Doze. “Qualquer homem que permaneça fiel terá inteligência suficiente para magnificar esse chamado”, disse Brigham aos Doze.

“Eu gostaria de saber quais os critérios para a seleção desse homem”, disse Orson Pratt, irmão mais novo de Parley.

“Se me for sugerido um homem com bom senso natural; que tenha, como as mais altas qualificações, a retidão e a humildade suficientes para buscar ao Senhor a fim de obter conhecimento, e que Nele confie para receber forças”, Brigham respondeu, “eu preferiria esse homem a um que fosse instruído e talentoso”.

“Se o Senhor indicar um menino de 12 anos, ele é a pessoa que todos deveríamos estar dispostos a apoiar”, disse Orson. “Mas, se me for dado julgar, eu escolheria um homem experiente, que tenha sido provado em muitas circunstâncias, que seja fiel e diligente, e um homem talentoso que defenda a Igreja em qualquer situação em que for colocado.”

Brigham ouvia enquanto os apóstolos recomendavam vários homens para a posição. “Indico George Q. Cannon como um dos apóstolos”, disse ele enfim. “Ele é modesto, mas não acho que ele permitirá que a modéstia refreie seu compromisso de cumprir seu dever.”25

O chamado foi anunciado na conferência geral da primavera, enquanto George se preparava para voltar para casa. Ele recebeu o chamado com o sentimento de sua própria fraqueza e inadequação. “Tremi de medo e pavor”, escreveu ele a Brigham, aos 33 anos de idade, logo que soube do chamado, “e de alegria ao pensar na bondade do Senhor que me favoreceu, e no amor e na confiança de meus irmãos”.26

Ao voltar para casa alguns meses mais tarde, George passou à frente de várias companhias de carroção e de duas companhias de carrinhos de mão, que ele organizara com santos dos ramos do Leste, da Europa e da África do Sul.27

Ciente da tragédia de 1856, George sabiamente enviou a última companhia de carrinhos de mão à frente de vários carroções. “Esforcei-me para tomar todas as medidas cabíveis para evitar qualquer contratempo”, informou a Brigham, “e sinceramente confio que, com a bênção do Senhor, todos alcançarão seu destino em segurança”.28


O patriarca da Igreja, John Smith, estava entre os santos que viajavam para o Oeste com George naquela estação. John viera para o Leste no final de 1859 para ajudar a irmã Lovina e sua família na viagem para Utah. Enquanto aguardavam o início da estação de emigração, ele e Lovina visitaram os parentes da família Smith em Nauvoo, inclusive a tia Emma e seus filhos.29

Emma levava uma vida tranquila em Nauvoo. Ela ainda morava na Mansão Nauvoo e possuía uma antiga propriedade da Igreja, que Joseph lhe dera antes de morrer em 1844. Ele havia passado a escritura do terreno para ela de boa-fé, mas, posteriormente, alguns credores alegaram que Joseph havia agido de má-fé e exigiram que a propriedade fosse vendida e o dinheiro entregue a eles. Contudo, eles não conseguiram provar suas acusações. A querela foi resolvida em 1852, quando um juiz federal decretou que todas as propriedades que Joseph possuíra como administrador da Igreja, que fossem maiores do que dez acres, deveriam ser vendidas para que seus credores fossem pagos. Na condição de viúva de Joseph, Emma recebeu um sexto do lucro das vendas, quantia que ela usou para comprar de volta uma parte das terras e prover o sustento de sua família.30

John e Lovina encontraram seus familiares bem, mas divididos quanto à religião. A prima deles, Julia, casara-se com um católico e se convertera à religião do marido. Os quatro filhos de Joseph e Emma, no entanto, ainda se consideravam santos dos últimos dias embora rejeitassem alguns dos princípios que o pai ensinara em Nauvoo, especificamente o casamento plural.31

Aquilo não foi uma surpresa para John. Embora Emma soubesse que o marido tinha ensinado e praticado o casamento plural de modo privado, o filho Joseph Smith III acreditava que fora Brigham Young quem introduzira o princípio aos santos depois da morte do profeta Joseph. Quando a família de John partiu de Nauvoo em 1848, ele tinha procurado convencer Joseph III a ir com ele para o Oeste para dar continuidade à obra de seus pais. Joseph III se recusara terminantemente a ir.

“Se está dizendo com isso que devo apoiar o casamento plural e as outras práticas instituídas desde a morte deles”, Joseph III respondera, “certamente continuarei a ser seu adversário mais inveterado”.32

Por muitos anos, Joseph III mostrara pouco interesse em liderar uma igreja. Contudo, em 6 de abril de 1860, depois da visita de John e Lovina, Joseph III e Emma compareceram à conferência de uma “Nova Organização” de santos que tinham rejeitado a liderança de Brigham Young e permaneceram no meio-Oeste. Durante a reunião, Joseph III aceitou liderar a Nova Organização e se distanciou dos santos de Utah por condenar o casamento plural.33

Poucos meses depois, John partiu para o Oeste com Lovina e sua família. Karl e Anna Maeser viajavam com eles. Não acostumado com a vida na trilha acidentada, o jovem professor fez o melhor que pode para dirigir uma parelha de bois, mas acabou contratando uma pessoa para fazer esse trabalho por ele. Uma epidemia de coqueluche acometeu as crianças na companhia por uns dias, mas a jornada transcorreu sem problemas na maior parte do tempo.34

Em 17 de agosto, quando estavam a cerca de 250 quilômetros de Salt Lake City, o filho de 14 anos de Lovina, Hyrum Walker, acidentalmente deu um tiro no próprio braço. Esperando salvar a vida do sobrinho, e se possível o braço também, John logo designou outro homem para liderar a companhia, colocou Hyrum em uma carroça puxada por mulas e correu com ele e Lovina para o vale.

A carroça chegou em Salt Lake City nove dias depois, e um médico conseguiu recuperar o braço de Hyrum. Com o sobrinho em segurança, John voltou e liderou a companhia até que chegaram à cidade no dia 1º de setembro.35


Em 4 de novembro de 1860, Wilford Woodruff deu as boas-vindas a um homem chamado Walter Gibson, que retornava a Salt Lake City. Walter era um viajante e desbravador. Quando jovem, ele viajara pelo México e pela América do Sul, navegara pelos oceanos e escapara de uma prisão holandesa na ilha de Java.36

Segundo Walter, enquanto esteve na prisão, ele ouvira uma voz que o inspirou a estabelecer um poderoso reino no Pacífico. Durante anos, ele procurou pessoas que o ajudassem nessa missão, mas nunca conseguiu encontrar o grupo certo até que ouviu falar dos santos dos últimos dias. Em maio de 1859, ele escrevera para Brigham Young propondo um plano para reunir a Igreja nas Ilhas do Pacífico. Viajou para Salt Lake City com os três filhos e, pouco tempo depois, filiou-se à Igreja em 1860.37

Wilford fez amizade com Walter naquele inverno, pois assistiu a muitas de suas palestras sobre suas viagens e o encontrou em reuniões sociais.38 Brigham não tinha interesse na proposta de Walter para estabelecer um novo lugar de coligação, mas reconhecera o potencial do novo converso.39 Walter parecia bem informado, falava bem e estava ansioso para servir na Igreja. Em abril de 1860, a Primeira Presidência o chamou para servir uma breve missão no Leste, que foi entusiasticamente aceita por Walter.40

Seis meses mais tarde, Walter voltou para Utah com novidades animadoras. Enquanto estava na cidade de Nova York, ele falara sobre os santos para um oficial da embaixada japonesa e recebera um convite para ir ao Japão. Acreditando que poderia criar um bom relacionamento com os japoneses, Walter queria aceitar o convite e preparar o caminho para o trabalho missionário naquela terra. Ele acreditava que, de lá, o evangelho restaurado poderia se espalhar para Sião (atual Tailândia) e para as outras nações da região.

“Serei governado, conforme fui instruído, inteiramente pelo Espírito de Deus”, disse ele aos santos em uma reunião em 18 de novembro. “Sinto que me sentirei em casa em todas as nações dos filhos da família humana.”41

A perspectiva de enviar Walter para a Ásia deixou Wilford animado. “O Senhor abriu as portas para ele de uma maneira maravilhosa”, anotou no diário.42

Brigham concordou. “O irmão Gibson vai nos deixar agora para servir missão”, disse ele aos santos em uma reunião. “Tudo o que sei é que ele veio aqui porque o Senhor o enviou.”43

No dia seguinte, Heber Kimball e Brigham colocaram as mãos sobre a cabeça de Walter. “Enquanto teus olhos estiverem voltados unicamente para a glória de Deus, invocando Seu nome e buscando Sua sabedoria, procurando ser humilde e manso perante o Senhor, e com os olhos fixos no bem-estar dos filhos do Senhor”, declarou Heber, “serás poderosamente abençoado, reunirás a casa de Israel e trarás muitos para o arrependimento, para o batismo e para a confirmação do Espírito Santo”.44

Walter e a filha Talula iniciaram a viagem para o Pacífico dois dias depois.45


Um mês depois da partida de Walter, a Carolina do Sul, um estado no sul dos Estados Unidos, retirou-se da nação, temendo que a recente eleição de Abraham Lincoln para a presidência dos Estados Unidos alterasse o equilíbrio econômico e político do poder no país e levasse ao fim da escravidão. Wilford Woodruff imediatamente reconheceu o acontecimento alarmante como o cumprimento de uma revelação que Joseph Smith recebera 28 anos antes. No Natal de 1832, o Senhor alertara o profeta de que uma rebelião logo começaria na Carolina do Sul e levaria muitas pessoas à morte e à miséria.46

“E assim, pela espada e por derramamento de sangue, os habitantes da Terra lamentar-se-ão”, declarara o Senhor, “e com fome e pragas e terremotos e também com o trovão do céu e o violento e vívido relâmpago, os habitantes da Terra sentirão a ira, a indignação e a mão castigadora de um Deus Todo-Poderoso, até que a destruição decretada ponha um fim total a todas as nações”.47

“Temos que nos preparar para tempos muito difíceis nos Estados Unidos”, escreveu Wilford no diário, em 1º de janeiro de 1861. “Os sinais foram dados e nossa nação foi condenada à destruição.”48

Capítulo 21

Na mesma grande obra

carruagem puxada a cavalo na Casa Branca

“A excitação da guerra está deixando as pessoas insanas”, escreveram os apóstolos Orson Pratt e Erastus Snow para Brigham Young na primavera de 1861. “Exércitos estão recrutando, treinando, marchando e concentrando-se para o terrível conflito. Em breve chegará o tempo em que a nenhum homem será permitido permanecer no Norte ou no Sul sem lutar.”1

A drástica saída da Carolina do Sul dos Estados Unidos espalhou a centelha de rebelião por todo o Sul. Nos meses subsequentes, dez outros estados sulinos deixaram a nação, e o governo dos Estados Unidos se apressou em reforçar suas bases militares. No entanto, as forças sulinas rapidamente tomaram os fortes mais bem equipados e seguros, e o presidente Abraham Lincoln recrutou 75 mil soldados para debelar a rebelião. Logo ficou evidente que esse exército era pequeno demais para lidar com a crise.2

Orson estivera observando o conflito se desenvolver desde que ele e Erastus tinham viajado para o Leste no outono a fim de supervisionar a missão do Leste. Quando jovem missionário, na década de 1830, Orson tinha levado no bolso uma cópia da profecia de Joseph Smith sobre a guerra, que ele às vezes lia para as congregações. A maioria das pessoas achara absurdo na época, mas agora ela estava tendo uma repercussão diferente.3 Orson leu a revelação em público e fez com que fosse publicada no New York Times.4 Outros jornais também publicaram a profecia.

“Não tivemos um profeta entre nós?”, perguntou um jornal da Filadélfia que publicou a revelação. “Em vista de nossos problemas atuais, essa previsão parece estar em vias de se cumprir, quer Joe Smith tenha sido um impostor ou não.”5

À medida que os exércitos do Norte e do Sul se mobilizavam para uma guerra civil, os missionários sob a liderança de Orson e Erastus reuniam os santos do Leste para que se coligassem em Sião. Os líderes da Igreja percorreram as cidades e a zona rural procurando santos que tinham se afastado do redil, instando-os a voltar.6

A resposta foi avassaladora. Cerca de mil santos da Filadélfia, de Nova York e de Boston embarcaram num trem para Florence, em junho. “O trem era tão longo e pesado”, relatou Orson a Brigham, “que foram necessárias duas locomotivas para movê-lo com dificuldade”. Quinhentos membros da Igreja dos estados do Centro-Oeste também partiram para o Oeste a pé ou de trem.7

Mas a grande migração não se limitava aos americanos. Grandes grupos de santos chegaram ao Oeste, após atravessarem o oceano Atlântico, na primavera de 1861. Um ano antes, a Primeira Presidência havia chamado George Q. Cannon para que com Amasa Lyman e Charles Rich presidissem a Missão Britânica e orientassem a emigração.8 Nessa estação, eles enviaram 2 mil santos da Europa e da África do Sul para Sião.

Em vez de suprir carrinhos de mão para os muitos emigrantes que não podiam pagar as despesas de viagem até Utah, a Igreja enviou 200 carroções e 1.600 bois — muitos dos quais doados por alas de Utah — para o rio Missouri. Os santos necessitados foram divididos em quatro companhias de carroções “vai e volta” que os levavam até Utah pelo preço relativamente baixo de 14 dólares por adulto e 7 dólares por criança.9

Enquanto isso, as pessoas de todo o país se perguntavam se Utah continuaria na União, se uniria aos rebeldes sulinos ou formaria uma nação independente. Muitos santos ainda culpavam o governo dos Estados Unidos por não compensar suas perdas no Missouri e em Illinois. Também estavam ressentidos com as autoridades nomeadas pelo governo, a presença do exército em Utah e a recusa do congresso em conceder a Utah a condição de estado.10

Mas Brigham Young acreditava que o curso certo para Utah era permanecer na nação, independentemente das normas impostas contra os santos. “Utah não se separou”, garantiu ele aos legisladores do Leste, “mas está firme a favor da constituição e das leis de nosso país outrora feliz”.11


Depois que a guerra irrompeu no Leste, relatos de batalhas sangrentas chegavam regularmente pelo correio ao Oeste. As sombrias notícias falavam de centenas ou, às vezes, milhares de mortes.12 Algumas pessoas da Igreja acreditavam que Deus estava punindo os Estados Unidos por causa do modo como o país tratara os santos.13

Uns poucos santos foram ao Leste para participar da guerra, mas a maioria dos membros da Igreja ficou feliz em ficar em Utah e edificar Sião. Naquele verão, Brigham Young propôs que fossem descobertos os alicerces do templo, que tinham sido enterrados desde a mudança para o Sul, e se iniciasse a construção das paredes do templo. Também anunciou um plano, já em andamento, de construir um grande teatro a poucos quarteirões do local do templo.14

Embora o salão social da cidade já funcionasse como uma pequena casa de espetáculos, Brigham queria um teatro que inspirasse a mente e a imaginação dos santos. O teatro tinha um meio de ensinar e edificar as pessoas que os sermões não conseguiam fazer. O fato de haver um teatro magnífico em Salt Lake City também mostraria aos visitantes que os santos eram um povo culto e refinado, desfazendo a imagem negativa dos santos que muitos jornais divulgavam.15

Brigham tivera a ideia de construir um teatro no início daquele ano. Ele e Heber Kimball tinham assistido a uma peça na casa da família Bowring, que equipara o andar térreo de sua casa com um pequeno palco. Henry e Marian Bowring eram membros da Mechanics’ Dramatic Association, uma companhia teatral formada principalmente por santos britânicos, incluindo alguns pioneiros dos carrinhos de mão. A própria Marian tinha ido para o Oeste com a filha, Emily, na companhia de carrinhos de mão Martin.

Brigham e Heber gostaram muito da apresentação realizada no teatro da família Bowring e voltaram na noite seguinte para assistir a outra peça com as respectivas famílias.16 Logo, Brigham propôs a união da Mechanics’ Dramatic Association com outra companhia teatral, a Deseret Dramatic Association, e a construção de um teatro maior para que mais santos pudessem desfrutar o melhor entretenimento do território.

Embora Brigham acreditasse no valor do trabalho, também incentivava os santos a descansar e a desfrutar a vida. “As pessoas precisam se divertir”, declarou ele. Ele acreditava que as atividades recreativas e o exercício físico eram importantes tanto para o corpo quanto para a alma.17

Para financiar a construção do teatro, Brigham alterou o destino dos fundos que iriam para um projeto de construção parado, o salão de ciências dos setenta.18 O projeto do teatro recebeu fundos adicionais naquele verão, quando as tropas do Exército dos Estados Unidos que estavam sediadas em Cedar Valley foram convocadas a retornar ao Leste para lutar na Guerra Civil. Antes da partida dos soldados, Brigham enviou Hiram Clawson, seu genro e gerente do novo teatro, para comprar parte do ferro, do gado, dos gêneros alimentares e de outros materiais do Exército a um preço irrisório. Brigham vendeu então esses artigos a um preço mais elevado para financiar a construção do teatro.19

Em 5 de agosto, a Primeira Presidência e seus secretários visitaram o local de construção do teatro. Descendo da carruagem, Brigham inspecionou os alicerces de pedra com Heber. “As pedras parecem ser muito duradouras”, disse Heber.

Brigham concordou. “Sempre gosto de ver algum tipo de edifício sendo construído.”20

Nas semanas e meses que se seguiram, o teatro se ergueu rapidamente.21 Sem estarem cientes do cuidadoso planejamento que acontecia longe da vista do público em relação ao templo, que era bem maior e mais complexo, algumas pessoas lamentavam o fato de que a construção da casa do Senhor parecia progredir bem mais lentamente que a do teatro. Os trabalhadores tinham acabado de escavar os alicerces enterrados do templo e começado a cortar grandes blocos de granito em uma nova pedreira que ficava a uns 32 quilômetros ao Sul. Por que os santos estavam gastando tanto tempo e dinheiro num teatro, sendo que a casa do Senhor ainda não estava construída?22

Suas objeções não preocuparam Brigham. Ele não queria que o trabalho de construção do templo fosse feito às pressas e não estava preocupado com o custo dela — desde que fosse realizada de modo adequado. Antes de os alicerces do templo serem enterrados, em 1858, os trabalhadores não tinham instalado as pedras de modo adequado, fazendo com que partes do alicerce de arenito começassem a rachar sob o enorme peso do templo.23 Depois que os alicerces foram escavados, ele fez com que os trabalhadores reparassem as pedras danificadas e substituíssem todas as que não pudessem ser reparadas, usando o granito da pedreira.

“Façam um bom trabalho neste templo”, disse ele aos mestres de obras do templo. Ele queria que os trabalhadores levassem o tempo que fosse necessário para fazer do modo certo. “Quero ver esse templo construído de modo que ele resista por todo o Milênio”, declarou ele. “Não é o único templo que construiremos. Haverá centenas deles construídos e dedicados ao Senhor.”24

O Teatro de Salt Lake foi inaugurado em 6 de março de 1862, com um serviço dedicatório com oração e discursos de líderes da Igreja. Depois disso, a companhia teatral apresentou uma comédia intitulada O Orgulho do Mercado. Duas noites depois, o teatro abriu as portas para o público. Centenas de pessoas, ávidas por uma poltrona, aglomeraram-se do lado de fora do teatro, duas horas antes da apresentação. Quando a cortina subiu, não havia um único lugar vago no teatro.

O entusiasmo dos santos com o teatro agradou Brigham. “O inferno está bem distante de nós, e podemos nunca chegar lá, a menos que mudemos nosso caminho”, declarou ele durante as festividades, “porque o caminho que estamos buscando agora conduz ao céu e à felicidade”.25


Em 5 de maio, George Q. Cannon recebeu de Salt Lake City um telegrama que o deixou perplexo. Ele estava no escritório de Liverpool da Missão Britânica e Europeia, onde havia servido como presidente por um ano e meio.

“Una-se ao senador Hooper Washington”, dizia o telegrama. “Vinte e cinco de maio.”

George sentiu um calafrio lhe percorrer o corpo e se agarrou à mesa a seu lado para se firmar. Mal conseguia respirar. Mais uma vez, uma designação de Salt Lake City o pegara de surpresa. E o teor vago daquela designação apenas a tornava ainda mais chocante. Por que precisavam dele em Washington, D.C.?26

George sabia que a assembleia legislativa de Utah havia recentemente redigido outro pedido ao congresso dos Estados Unidos para que Utah se tornasse estado. Isso significava que dois senadores seriam eleitos para ir ao congresso representar o estado proposto e tentar obter apoio para o pedido. O telegrama parecia sugerir que William Hooper, o representante anterior no congresso, fosse um dos senadores.27 Será que George tinha sido o outro eleito?

George tinha gosto para a política. Quando rapaz, recebera uma bênção prometendo que um dia ocuparia um cargo de responsabilidade no governo. Mas, por mais que quisesse representar Utah no congresso, pôs de lado esse desejo para o caso de os líderes da Igreja necessitarem dele em Washington por algum outro motivo.28

Recentemente, Justin Morrill, membro da câmara dos deputados dos Estados Unidos, apresentara uma lei no congresso que tornaria a bigamia, ou o casamento com mais de um cônjuge ao mesmo tempo, ilegal em todos os territórios dos Estados Unidos.29 Talvez os santos precisassem que George procurasse obter apoio para seu direito de praticar o casamento plural. Se ela fosse aprovada, a lei de Morrill faria com que George e os outros santos que praticavam aquele princípio se tornassem criminosos. Também limitaria a influência da Igreja em Utah, restringindo o valor das propriedades que ela poderia ter.30

No dia de sua partida, George abençoou sua esposa Elizabeth e sua filha, Georgiana, que havia nascido enquanto o casal estava na Inglaterra. Nem Elizabeth, nem o bebê estavam em condições de saúde para acompanhá-lo, por isso George as confiou aos cuidados de seus novos amigos na Inglaterra, enquanto ele estivesse longe.

Quando chegou aos Estados Unidos, duas semanas depois, ficou sabendo que realmente tinha sido eleito para servir ao lado de William Hooper no Senado caso o pedido para que Utah se tornasse estado fosse aprovado. A designação não lhes concedia uma autoridade oficial, mas eles podiam tentar persuadir os legisladores a votar contra a lei antibigamia de Morrill e a favor do pedido de Utah para se tornar um estado.31

Em 13 de junho, George e William visitaram o presidente Abraham Lincoln, esperando conquistar seu apoio para seu pedido. George esperava que o presidente parecesse cansado e esgotado após mais de um ano de guerra civil, mas Lincoln conversou com eles e fez piadas de modo amigável. Era um homem alto e simples, com o rosto barbado e braços e pernas desajeitados. Ele ouviu educadamente enquanto George e William explicavam seu pedido para que Utah se tornasse estado, mas não fez nenhuma promessa de apoiar essa solicitação.32

George e William saíram da Casa Branca decepcionados. A reunião tinha sido semelhante a outras conversas que tiveram com outros políticos em Washington. A maioria dos legisladores parecia ter a mente aberta em relação à condição de estado para Utah, porém eles não estavam dispostos a prometer seu voto. Acreditando que não poderiam apoiar a condição de estado para Utah após terem votado a favor da lei antibigamia, alguns legisladores se recusaram a levar em consideração o pedido até que a constituição de Utah considerasse o casamento plural ilegal.33

O ultraje em relação ao massacre de Mountain Meadows também impedia que algumas pessoas apoiassem os santos e seu pedido para que Utah se tornasse estado.34 Aproximadamente um ano após John D. Lee ter apresentado seu relatório do massacre, os investigadores da Igreja descobriram que John e outros membros estavam envolvidos no ataque. Pouco tempo depois, autoridades governamentais realizaram suas próprias investigações. Tentaram fazer com que John D. Lee, Isaac Haight, John Higbee e outros fossem levados a julgamento, mas não houve quem testemunhasse contra eles. Os investigadores localizaram as 11 meninas e os 6 meninos que sobreviveram ao ataque e os devolveram a parentes ou amigos no verão de 1859.35

George e William esperavam que sua diligência em obter apoio para o pedido estivesse deixando uma boa impressão nos legisladores de Washington. Ainda assim, nenhum deles sabia se seus esforços seriam suficientes para conquistar a condição de estado para o povo de Utah.36


Enquanto o pedido estava sendo analisado em Washington, o trabalho missionário na Dinamarca, Noruega e Suécia estava tendo muito sucesso. Mais de dois anos se haviam passado desde que Johan e Carl Dorius haviam partido de Sanpete Valley para servir em sua segunda missão na Escandinávia. Na maior parte do tempo, Carl havia presidido os santos na Noruega, e Johan tinha sido seu primeiro conselheiro.37

Quando os irmãos chegaram à Escandinávia, Johan foi imediatamente à Noruega. Carl, porém, fora visitar sua mãe que os rejeitara, Ane Sophie, em Copenhague. A princípio, Ane Sophie não reconheceu o filho. Mas, quando Carl lhe disse quem ele era, ela o beijou muitas vezes na testa, ficando muito contente por ele ter voltado da América. Tal como Nicolai, seu antigo marido e pai de Carl, ela se casara novamente. Ela e o marido, Hans Birch, tinham adotado uma menina chamada Julia, que estava então com 8 anos.38

Enquanto Carl e Ane Sophie conversavam pela primeira vez em três anos, ele ficou maravilhado com as mudanças que ocorreram com ela. Antes de ele e Johan terem partido para Sião, ela se envergonhava de andar ao lado deles em público. Mas a reputação da Igreja na Dinamarca havia melhorado e, no dia seguinte após a chegada de Carl, Ane Sophie concordou não apenas em sair em público com ele, mas também em assistir a uma reunião da Igreja.

Quando mãe e filho entraram no salão onde os santos se reuniam, encontraram a sala cheia. Carl reconheceu muitos rostos na congregação de sua primeira missão e, depois de falar ao grupo, várias pessoas o procuraram para apertar sua mão e lhe dar as boas-vindas ao país.

Ane Sophie raramente saía do lado do filho nos dias que se seguiram. Depois que Carl visitou a sede da Igreja na Dinamarca, ficou um pouco envergonhado por estar ainda usando o mesmo terno surrado que usara em sua última missão. Sua mãe o levou para comprar um terno novo e depois o acompanhou em sua visita a velhos amigos na cidade. Ao caminharem juntos, Carl percebeu que a mãe estava mais interessada pela Igreja do que nunca.

Após visitar Ane Sophie, Carl foi se encontrar com Johan, na Noruega. Os irmãos descobriram que muitos ramos noruegueses haviam encolhido devido à emigração, mas cerca de 600 santos ainda moravam na Noruega, com aproximadamente 250 na capital, Christiania. O governo norueguês ainda não havia legalizado a liberdade religiosa, por isso os missionários eram cautelosos ao pregar ou batizar em público.39

Já em 1862, quando Carl estava pregando no sul da Noruega, a polícia o prendeu com dez outros missionários, interrogou-os em frente de uma multidão que deles zombava e os ameaçou com multas e cadeia. Esses maus-tratos pouco fizeram para interromper o trabalho. Na primavera daquele ano, 1.556 santos escandinavos estavam se preparando para emigrar para Sião — a maior emigração até então.

Por volta dessa época, Carl retornou a Copenhague para visitar novamente a mãe. Ane Sophie estava com bom ânimo. Parecia mais séria e ainda estava interessada na Igreja. Novamente, ela assistiu às reuniões da Igreja com Carl, às vezes levando Julia também.

Em junho de 1862, Carl levou a mãe e Julia até Christiania para uma breve viagem. O preconceito e a amargura que Ane Sophie sentira no passado em relação aos santos haviam desaparecido, e ela e Julia concordaram que Carl as batizasse e as confirmasse na Igreja. Depois que as ordenanças foram realizadas, os santos da Noruega deram toda atenção a Ane Sophie, felizes por finalmente conhecerem a mãe de seu líder missionário.40


Em 20 de julho, Elizabeth Cannon recebeu uma carta de George. Seu trabalho em Washington estava terminado, e ele estava ansioso por voltar a Liverpool em um dos dois navios a vapor que iriam partir a seguir. A carta não deu muita esperança a Elizabeth de que George conseguiria embarcar no navio que partiria mais cedo. Mas ela ficaria feliz ao vê-lo quando ele chegasse.

No dia seguinte, ela foi até um monte coberto de grama com vista para Liverpool com Georgina e a viu brincar no gramado. Tendo deixado seus filhinhos John e Abraham aos cuidados da família em Utah, Elizabeth se sentia grata por ter Georgiana com ela. “Ela é um grande consolo para mim na ausência de meu querido marido”, anotou ela em seu diário no dia seguinte. “Eu não conseguiria me sentir feliz se não fosse por ela.”41

Ela não tinha como saber, quando George partiu para sua primeira missão na Califórnia e no Havaí, como seria difícil estarem separados um do outro. Ajudar a reunir o povo de Deus era uma parte essencial da obra dos últimos dias, mas frequentemente isso significava um imenso sacrifício emocional e físico para as mulheres que ficavam para cuidar da família, da casa e das propriedades enquanto o marido estava fora. Elizabeth fora muito afortunada por ter tido a oportunidade de acompanhar George em algumas de suas missões,42 o que era mais do que a maioria das esposas dos missionários puderam desfrutar. Mas isso não tornava as separações mais fáceis quando aconteciam.

Poucos dias após receber a carta de George, Elizabeth estava arrumando a casa enquanto Georgiana brincava com Rosina Mathews, uma menina inglesa que o casal Cannon acolhera em sua casa. Enquanto as meninas brincavam, Rosina olhou pela janela que dava vista para a rua. “Ali vem o papai”, anunciou ela.

“Você deve estar enganada”, disse Elizabeth.

“Ele está num cabriolé junto à porta”, insistiu Rosina.

Nesse momento, Elizabeth ouviu o conhecido som dos passos de George nas escadas. Quando ela o viu, seu coração disparou de alegria, e ela mal conseguia falar. Georgina correu ao encontro dele, e ele a tomou nos braços. Parecia muito bem após sua longa viagem e ficou muito contente de ver que Elizabeth estava mais forte e saudável do que quando ele partira.

Naquela tarde, a família foi dar uma caminhada. “Todos desfrutamos muito o tempo que passamos juntos após uma separação tão longa”, escreveu Elizabeth em seu diário. “Nosso lar voltou a ser feliz.”43

Apesar dos melhores esforços de George, sua tentativa de obter apoio em Washington não foi bem-sucedida. O presidente Lincoln assinou a aprovação da lei antibigamia em 8 de julho. Pouco tempo depois, os legisladores informaram a George e William que o Congresso tinha assuntos mais importantes a decidir do que o pedido de Utah para se tornar estado — principalmente porque a Guerra Civil Americana estava se tornando cada vez pior.44

Agora que George estava de volta à Europa, ele quis fazer uma viagem pela missão com Elizabeth. Partiram de Liverpool em setembro na companhia de John Smith, o patriarca da Igreja, que estava passando pela Inglaterra a caminho de uma missão na Escandinávia. Ao longo do caminho, eles pegaram o irmão de John, Joseph F. Smith, e seu primo Samuel Smith, que estivera servindo missões em Londres desde 1860. Outro primo da família Smith, Jesse Smith, era presidente da missão escandinava e havia convidado os primos para visitá-lo assim que John chegasse à Europa.

O grupo partiu da Inglaterra em 3 de setembro, passando por Hamburgo, Alemanha, a caminho da Dinamarca. Joseph e Samuel estavam cansados e magros por excesso de trabalho, mas pareciam melhorar a cada dia que se passava. Na Dinamarca, Elizabeth se sentiu pouco à vontade ao viajar por um país cujo idioma ela desconhecia. Quando assistiu a uma conferência na cidade de Aalborg, porém, gostou muito de estar em meio aos santos.45

George e os outros missionários falaram para a congregação com a ajuda de intérpretes e depois se reuniram num monte com vista para a cidade para conversarem e cantarem. A maioria dos hinos era em inglês e dinamarquês, mas George e Joseph divertiram os santos cantando em havaiano também. A alegria que sentiam como santos e irmãos, a despeito das diferenças de idioma e nacionalidade, era um contraste gritante com a discórdia que afligia os Estados Unidos.46

“Passei momentos muito agradáveis, fiquei muito feliz em estar com as pessoas”, escreveu Elizabeth naquele dia em seu diário. “Eu não conseguia me fazer entender, mas estávamos na mesma grande obra e partilhávamos do mesmo Espírito.”47

Capítulo 22

Como brasas vivas

mãos saindo da água junto a um bote virado

A noite estava caindo sobre Washington, D.C., em 5 de junho de 1863, quando T. B. H. Stenhouse se encontrou com o presidente Abraham Lincoln. Sendo um editor da Escócia de 39 anos de idade, Stenhouse era um santo dos últimos dias muito respeitado em ambos os lados do Atlântico.

Quando jovem, serviu missões na Inglaterra, na Itália e na Suíça. Mais tarde, liderou missionários no Leste dos Estados Unidos e escreveu artigos para o New York Herald, um jornal de ampla circulação, e para o Deseret News. Ele e a esposa, Fanny, eram muito amados pelos santos de Salt Lake City, sendo frequentemente apresentados quando visitantes distintos chegavam ao vale.1

Ao se encontrar com Lincoln, Stenhouse queria descobrir até que ponto ia a abertura do presidente para deixar os santos governarem a si mesmos. Em Utah, poucas pessoas esperavam que Lincoln implementasse a nova lei antibigamia. Para considerar um membro da Igreja culpado de bigamia, os promotores teriam que provar que um casamento plural havia acontecido — uma tarefa quase impossível, já que os casamentos ocorriam de modo privado na casa de investiduras, e as autoridades públicas não tinham acesso a seus registros. Além disso, era muito improvável que os promotores conseguissem culpar alguém de bigamia, já que o júri geralmente era formado por membros da Igreja.2

Ainda assim, muitos santos estavam zangados com os homens que Lincoln havia nomeado para governá-los em Utah. Alfred Cumming, o homem que substituiu Brigham Young no cargo de governador em 1858, havia renunciado em 1861, como amigo dos santos. O governador que Lincoln escolheu para substituí-lo, John Dawson, rapidamente perdeu o apoio dos santos quando tentou impedir a petição de 1862 para que Utah se tornasse estado.3 O homem indicado a seguir por Lincoln, Stephen Harding, era nascido em Palmyra, Nova York, e tinha conhecido Joseph Smith na juventude. Apesar dessa ligação, Harding rapidamente ofendeu os santos quando tentou reforçar a lei antibigamia propondo leis que impediam os membros da Igreja de participarem de um júri.4

O presidente ouviu Stenhouse. Fez piada sobre não se lembrar do nome do governador Harding e expressou a esperança de que as autoridades que ele enviasse para Utah se comportassem melhor.

Ainda assim, a Guerra Civil Americana havia entrado em seu terceiro ano sangrento, deixando o rosto de Lincoln marcado por rugas de preocupação. Tentando vencer a guerra, tinha proclamado recentemente uma proclamação que libertava os escravos de todos os estados sulinos e permitia que os negros se alistassem no exército dos Estados Unidos. Mas o exército sulino acabara de derrotar as forças federais numa grande e custosa batalha, a pouco menos de 100 quilômetros a sudoeste de Washington, deixando-o com problemas maiores para lidar do que os desentendimentos entre os santos e as autoridades governamentais.5

“Em minha juventude”, disse Lincoln a Stenhouse, “eu estava arando uma porção de terra recém-desmatada e me deparei com um grande tronco. Não conseguia passar o arado sobre ele porque era muito alto, era pesado demais para eu movê-lo para fora do caminho e estava molhado demais para que eu o queimasse. Fiquei ali olhando para ele e estudando-o, até que finalmente concluí que deveria desviar o arado e passar ao lado dele”.6

“Volte para lá”, prosseguiu o presidente, “e diga a Brigham Young que, se ele me deixar em paz, eu o deixarei em paz”.7

Pouco tempo depois, Lincoln depôs o governador Harding e nomeou um político mais moderado em lugar dele.8


Em janeiro seguinte, Alma Smith, de 33 anos de idade, recebeu uma carta da ilha de Lanai. A breve e urgente missiva estava assinada por seis membros havaianos da Igreja. Entre eles estava Solomona, um élder que tinha sido designado líder da Igreja em Lanai, quando Alma e todos os outros missionários de Utah partiram do Havaí, em 1858.9

Alma leu a carta, traduzindo cuidadosamente as palavras havaianas para o inglês. “A questão sobre a qual quero escrever a você”, dizia ela, “refere-se a nosso profeta que vive aqui, Walter M. Gibson. É verdade que ele é nosso líder?”10

Não foi uma surpresa saber que Walter Gibson estava em Lanai. Mas a palavra “profeta” era alarmante. A Primeira Presidência tinha enviado o conhecido aventureiro numa missão ambiciosa para o Japão e outras nações da Ásia e do oceano Pacífico em 1861. Pouco depois, ele os havia informado que ele e sua filha Talula tinham se estabelecido com os santos, em Lanai.11

Desde essa época, Walter mantivera Brigham Young informado sobre o crescimento promissor da missão e do assentamento de Lanai. Um jornal havaiano de 1862, reimpresso no Deseret News, tecia apenas elogios ao trabalho de Walter entre os santos do Havaí.12 Ainda assim, por que os santos o estavam chamando de seu profeta? Walter era um missionário, nada mais.

Alma continuou lendo. A carta dizia que Walter rejeitara a autoridade de Brigham Young e estabelecera sua própria forma de sacerdócio na ilha. “Ele ordenou um quórum de doze apóstolos, também um quórum de setentas, um certo número de bispos e sumos sacerdotes”, escreveram Solomona e os outros santos. “Os certificados de ordenação só podiam ser obtidos mediante pagamento em dinheiro e, caso isso não acontecesse, o candidato não era ordenado.”13

O modo pelo qual Walter gerenciava as terras da Igreja também era problemático. Usando doações dos santos havaianos, ele havia comprado terras em seu nome e agora as reivindicava para si. “Gibson diz que essas terras não são para a Igreja e que os irmãos não têm nenhum direito a elas”, relataram os santos havaianos. “Tudo pertence unicamente a ele.”

Os santos pediram que Alma mostrasse a carta deles a Brigham Young. “Ficamos muito surpresos com esse forasteiro”, escreveram. “Desconfiamos muito dele.”14

Alma levou a carta a Brigham, que a leu para o Quórum dos Doze em 17 de janeiro de 1864. Os apóstolos concordaram que tinham que tomar providências imediatas. Walter havia se nomeado profeta, tinha se apropriado fraudulentamente de terras da Igreja e oprimido os santos havaianos.

“Quero que dois dos Doze levem vários dos jovens irmãos que já estiveram lá”, disse Brigham, “e percorram as ilhas e coloquem as igrejas em ordem”.15

Ele escolheu os apóstolos Ezra Benson e Lorenzo Snow para liderarem a missão. Depois, pediu a Alma Smith e dois outros ex-missionários do Havaí, Joseph F. Smith e William Cluff, que fossem e os auxiliassem.16

“Façam o que for necessário”, instruiu ele.17


Na manhã de 31 de março de 1864, uma escuna que levava os dois apóstolos e os três missionários ancorou no porto exterior de Lahaina, Maui, nas ilhas havaianas. Enquanto Joseph F. Smith permanecia nas docas com a bagagem do grupo, um pequeno bote foi descido às águas, e Ezra Benson, Lorenzo Snow, William Cluff, Alma Smith e o capitão do navio subiram a bordo dele e começaram a se dirigir para a praia.

Ao longe, perto da praia, grandes ondas se ergueram perigosamente acima dos recifes. Tendo navegado para dentro e para fora do porto muitas vezes quando missionário, William Cluff ficou preocupado, achando o mar muito agitado para o bote. Mas o capitão garantiu que nada havia a temer se permanecessem no curso.

Momentos depois, uma imensa onda atingiu o barco, erguendo sua popa para fora da água. O barco rapidamente foi impulsionado em direção ao recife, onde foi apanhado por outra onda que ergueu tanto sua popa que os remos já não tocavam as águas. Quando a onda quebrou, o bote rodopiou e virou, jogando os homens dentro das perigosas vagas.18

Por um instante, não havia sinal dos passageiros. Então, William, Ezra e Alma subiram à tona, arfando, e nadaram até o bote virado. Os homens olharam ao redor, procurando Lorenzo e o capitão, mas não os avistaram em lugar algum.

Alguns havaianos viram o acidente da praia e imediatamente se lançaram ao resgate. Enquanto alguns socorristas pescavam William, Ezra e Alma para fora da água, outros mergulharam à procura dos dois homens sumidos. Os mergulhadores rapidamente encontraram o capitão deitado no fundo do mar, mas ainda não havia sinal de Lorenzo.

De repente, William viu um havaiano nadando em direção ao barco, arrastando o corpo de Lorenzo atrás de si. Desviraram o bote, e William e Alma puxaram o apóstolo para fora da água e o deitaram de rosto para baixo apoiado nos joelhos deles. O corpo estava frio e rígido. Ele não estava respirando.

Quando chegaram à praia, William e Alma carregaram Lorenzo até a areia, deitaram-no por cima de um barril e o rolaram de um lado para o outro até que expelisse água pela boca. Esfregaram-lhe os braços e o peito com um óleo de odor forte e o rolaram por cima do barril novamente para garantir que toda a água fosse expelida. Lorenzo ainda não mostrava sinais de vida.

“Fizemos tudo o que podia ser feito”, disse um homem que assistia a tudo na praia. “É impossível salvar seu amigo.”

Nem William, nem Alma estavam dispostos a acreditar que Deus tinha levado Lorenzo até o Havaí para simplesmente deixá-lo morrer. Quando menino, o próprio Alma quase tinha morrido quando uma turba enfurecida atacou sua família em Hawn’s Mill, Missouri. A turba matara seu pai e seu irmão e o ferira com um tiro no quadril, destruindo a articulação. Ele quase sangrou até a morte na oficina de ferreiro cheia de fumaça onde ele foi ferido, mas sua mãe havia invocado a Deus suplicando ajuda, e o Espírito lhe mostrara como curar a ferida.19

Agindo com fé, William e Alma mais uma vez tentaram reanimar Lorenzo. Um pensamento veio à mente de William para que pusesse a boca na de Lorenzo e soprasse o mais forte que pudesse a fim de encher os pulmões do apóstolo. Ele soprou, fazendo o ar entrar e sair, muitas vezes, até ouvir um débil estertor na garganta de Lorenzo. O ruído o encorajou, até que o estertor se tornou um gemido.

“O que aconteceu?”, sussurrou Lorenzo por fim.

“Você se afogou”, disse William. Perguntou se o apóstolo o reconhecia.

“Sim, irmão William, sei que você não me abandonaria”, disse ele. “Todos os irmãos estão a salvo?”

“Irmão Snow”, disse William, “estamos todos a salvo”.20


No domingo seguinte, Joseph F. Smith se uniu a seus companheiros ao seguirem para o assentamento da Igreja em Lanai. Quando lá chegaram, alguns santos havaianos reconheceram os antigos missionários e lhes deram as boas-vindas com expressões de amor.21

Walter se reuniu com os apóstolos e missionários no portão de sua grande casa com telhado de palha. Não os esperava e demonstrava ansiedade e dúvida no olhar. Apertou a mão deles friamente e os apresentou a sua filha, Talula, que estava com 20 e poucos anos. Depois, convidou-os a entrar na casa e serviu um farto desjejum com batatas doces, carne de bode cozida e outros pratos. O tempo todo se manteve formal e distante.22

Depois do desjejum, Walter levou os homens para sua reunião dominical com os santos havaianos. Um “bispo supremo”, vestindo um traje bem requintado, tocou um sino para reunir a congregação. À medida que os santos faziam fila para entrar, 15 ou 20 rapazes adornados com grinaldas de flores e folhas verdes se sentaram num banco, à frente da capela. Dezessete rapazes e 17 moças, todos uniformizados, sentaram-se então perto de uma mesa junto à qual se sentaram o bispo e os homens que Walter designara apóstolos.

Quando Walter entrou no salão, a congregação ficou de pé e se curvou reverentemente à medida que ele passava até se sentar à cabeceira da mesa. Depois da primeira oração, ele se levantou e reconheceu a presença dos cinco visitantes de Utah. “Não sei por que vieram”, disse ele, “mas talvez eles nos digam”.

“Quero lhes dizer o seguinte”, acrescentou ele. “Vim para o meio de vocês, comprei suas terras e aqui vou permanecer imutavelmente, e quanto a isso não cederei!”23

Nos dois dias seguintes, os apóstolos se reuniram em particular com Walter. Ficaram sabendo que seus delitos iam bem além de vender ordenações ao sacerdócio.24 Era quase estranho demais para acreditar.

Quando Walter chegou a Lanai, viu a oportunidade de iniciar no Pacífico o vasto império que há muito sonhara estabelecer.25 Persuadiu os santos havaianos a doarem seu gado e propriedades pessoais a ele para que comprasse terras na ilha.26 Inspirando os santos com seu sonho de um império, organizou uma milícia na ilha e treinou seus integrantes para que invadissem outras ilhas. Também enviou missionários para Samoa e outras ilhas polinésias a fim de preparar aquelas terras para seu governo.

As pessoas logo começaram a tratá-lo como a um rei. Ninguém entrava em sua casa para falar com ele a menos que estivesse de joelhos e apoiado nas mãos. Para inspirar assombro, designou uma rocha oca próxima de sua casa para ser a pedra angular de um templo. Colocou um Livro de Mórmon e outros documentos dentro da rocha, cobriu-a com folhas e galhos e avisou aos santos que eles seriam feridos caso se aproximassem dela.

Quando os apóstolos e missionários terminaram sua investigação, Ezra Benson e Lorenzo Snow reuniram os santos para declarar o futuro de Walter como líder. Com Joseph atuando como intérprete, Ezra condenou Walter por se apossar das terras da Igreja e por abuso de autoridade do sacerdócio.

“É nosso dever desassociá-lo”, declarou Ezra, “e, se ele não desviar seu barco para entrar no rumo certo e se arrepender, teremos que excomungá-lo da Igreja”.27

Walter sussurrou algo para Talula, e ela rapidamente pegou uma pilha de papéis esmeradamente decorados com selos e fitas. “Senhores, aqui está minha autoridade”, disse ele, apontando para três assinaturas na parte inferior de uma página. “Não deixarão de reconhecer o nome de Brigham Young e seus dois conselheiros aqui.”

Lorenzo leu o documento. Era simplesmente uma licença missionária para pregar o evangelho nas ilhas do mar. “Este documento não o nomeia para que presida a missão havaiana”, disse Lorenzo. “Você tomou para si essa autoridade.”28

“Estive com o presidente Young”, disse Walter. “Ele me impôs as mãos e me abençoou. E o Deus Todo-Poderoso derramou vigorosamente Seu Espírito sobre mim, antes que eu o visse, quando estava na prisão, e ele revelou para mim que eu tinha uma grande e poderosa obra para realizar.”

Walter falava rapidamente, suplicando ardorosamente aos havaianos presentes. “Sou seu patriarca”, disse ele. “Estes homens vieram tirar suas terras e enviar seus rendimentos para longe. Isso é amor? Quem ama vocês? Não sou eu? Então, quem são meus filhos e meus amigos? Fiquem de pé!”

Joseph F. Smith olhou para a congregação. As palavras de Walter os haviam comovido, e quase todos ficaram de pé. Joseph sentiu o coração se encher de tristeza, e uma sombra tenebrosa obscureceu sua esperança em relação àquele assentamento.29


Walter foi estranhamente bondoso com os cinco homens, depois da reunião. Quando decidiram partir da ilha na noite seguinte, ofereceu-lhes cavalos para levá-los até a praia e seu próprio barco e tripulação para levá-los de volta a Maui. Também deu de presente a Ezra Benson uma bela bengala e 9 dólares e 75 centavos — todo o dinheiro que tinha no bolso. No entanto, recusou-se inflexivelmente a devolver sua licença para pregar ou as terras que tinha tomado fraudulentamente dos santos.30

Depois de partirem de Lanai, Ezra Benson e Lorenzo Snow retornaram a Utah, deixando Joseph F. Smith para presidir a missão havaiana. Como os missionários não podiam legalmente recuperar as terras que Walter tinha tomado dos santos de Lanai, eles decidiram reavivar a fé nas outras ilhas. Joseph designou Alma Smith para trabalhar em Maui na grande ilha do Havaí, enquanto trabalhava em Oahu, e William Cluff, em Kauai.31

Alguns santos ficaram pesarosos por terem apoiado Walter. Jonathan Napela, que tinha ajudado George Cannon a traduzir o Livro de Mórmon, tinha servido como presidente dos doze apóstolos de Walter por dois anos. Porém, sentiu-se enganado quando descobriu que Walter nunca tivera a autoridade para ordená-lo àquele ofício.32

Napela começou a se reunir com os santos em Maui. A maioria deles estava desiludida em relação a Walter. Ele havia vendido a maior parte de suas capelas e proibido que adorassem juntos, pregassem o evangelho, lessem as escrituras e orassem em família. Como resultado disso, estavam espiritualmente fracos e desanimados em relação a tudo que Walter havia tirado deles.33

Alma passava grande parte de seu tempo cruzando de um lado para o outro o terreno montanhoso e rochoso de Maui para visitar os santos dispersos. No início do verão, ele viu que a influência de Walter estava enfraquecendo. Mais santos estavam deixando Lanai, geralmente indo para Maui com pouco mais do que a roupa do corpo. Mas o tempo que passaram com Walter havia colocado sua fé à prova, e poucos membros da Igreja estavam cumprindo seus convênios batismais quando retornaram.

“Não podemos ver que o evangelho os beneficiou o mínimo que seja, porque nenhum deles o colocou em prática!”, reclamou Joseph num relatório para Brigham Young. “Com nosso exemplo constantemente diante deles, e nossos ensinamentos soando em seus ouvidos, esperaríamos que alguns se comportassem melhor, mas isso não acontece.”34

Brigham aconselhou Joseph e os outros missionários americanos a voltarem para casa se o Espírito os inspirasse a fazê-lo. Ele acreditava que, no final, os santos havaianos eram responsáveis por seu próprio crescimento espiritual. “Parece-me que vocês podem deixar os assuntos da missão nas mãos dos irmãos locais”, escreveu ele para Joseph e os outros missionários. Os santos havaianos tinham recebido o evangelho e o sacerdócio muitos anos antes e tinham todos os recursos necessários para administrar a Igreja por eles mesmos.35

Quando o conselho de Brigham chegou ao Havaí, a atitude de Joseph em relação aos santos havaianos se havia abrandado. “Não queremos abandonar a missão”, escreveu ele a Brigham. Mas ele queria diminuir o número de missionários americanos nas ilhas e chamar vários élderes havaianos para presidir as várias ilhas da missão.

Joseph anunciou a mudança em outubro e chamou havaianos para cargos de liderança na conferência para toda a missão, realizada em Honolulu. Após ele falar, Kaloa, um élder havaiano, testificou sobre sua determinação de servir na Igreja. “Eu era menino quando estes irmãos chegaram pela primeira vez às ilhas”, disse ele. “Agora sou um homem adulto. Não sejamos mais crianças, mas homens de fé e boas obras.”

Napela então se levantou e instou os santos à retidão. “Fomos enganados e desencaminhados pelas palavras astutas de Gibson e quebramos assim os convênios sagrados que fizemos”, disse ele. “Mas agora não estamos mais sendo enganados. Portanto, renovemos nossos convênios e sejamos fiéis.”

Kanahunahupu, outro élder havaiano, também testificou. “As palavras que foram proferidas hoje”, disse ele, “são como brasas vivas”.36


No final da conferência, Joseph F. Smith e William Cluff anunciaram que em breve retornariam a Utah. Brigham informou Joseph algumas semanas mais tarde que pretendia chamar Francis Hammond, o antigo líder da missão de Joseph no Havaí, para substituí-lo.37

Desde a perda do assentamento de Lanai, Joseph e os outros missionários estavam procurando um novo lugar para reunir os santos. No verão, tinham encontrado um lugar que parecia promissor na grande ilha do Havaí, mas o custo era maior do que os santos havaianos podiam pagar.

Além do mais, depois do fracasso do assentamento de Lanai, muitos santos estavam relutantes em arriscar mais dinheiro em outro local de coligação. As famílias queriam um novo assentamento em sua ilha e perto de sua casa.38

Depois da conferência de outono, porém, Brigham Young autorizou os líderes da missão a comprarem terras com dinheiro da Igreja.39 Sem chegarem a uma decisão sobre o terreno que ficava na grande ilha, Joseph e William continuaram procurando possíveis locais de reunião para recomendar a Francis ao visitarem os ramos de Kauai e Oahu pela última vez.

Certo dia, em Oahu, enquanto Joseph e William visitavam um pequeno ramo perto de uma plantação chamada Laie, William foi dar uma caminhada sozinho. A plantação se situava em um terreno de quase 2,5 hectares, no sopé de altas e verdejantes montanhas, ao longo do litoral nordeste da ilha. Ao contrário do assentamento de Lanai, Laie tinha bom acesso à água.

Sentindo-se deprimido e um pouco solitário, William se ajoelhou junto a uma moita próxima para orar. Quando se levantou, ainda apático, encontrou um caminho que passava por gramados e arbustos densos. Seguiu-o por uma certa distância quando, para sua surpresa, teve uma visão de Brigham Young caminhando por aquela trilha.

William o cumprimentou como se ele realmente estivesse ali, e sentaram-se na grama. Brigham comentou sobre a beleza da plantação, sobre o solo fértil, sobre as montanhas verdejantes e sobre as ondas que gentilmente quebravam na praia. “É um lugar encantador”, disse ele por fim. “Irmão William, este é o local que queremos adquirir para ser a sede desta missão.”

William então se viu sozinho, totalmente maravilhado e assombrado, confiante de que havia encontrado o lugar certo para a coligação dos santos havaianos.40

Capítulo 23

Em completa harmonia

malho e cravo em trilho de ferrovia

Susie Young estava sempre doente quando criança. Ao completar 9 anos, na primavera de 1865, ela tinha sobrevivido à pneumonia, à coqueluche e a outras enfermidades graves. Seu peito chiava toda vez que corria muito ou brincava demais. Às vezes o pai, Brigham Young, pegava-a gentilmente no colo, abraçava-a firmemente e dizia baixinho: “Espere um pouquinho, filha. Não se apresse tanto. Reserve um tempo para respirar”.1

Susie raramente queria esperar um pouco. Sempre havia algo acontecendo na casa que ela dividia com muitas das esposas de seu pai e a maioria dos filhos mais jovens dele. O grande e longo sobrado era chamado de Lion House e ficava ao lado do escritório do pai, a um quarteirão do terreno do templo, em Salt Lake City. O andar superior da Lion House tinha muitos quartos e salas para os membros da família. No piso térreo, havia mais quartos e um grande salão para receber convidados e realizar as orações em família. No porão havia despensas e adegas, uma lavanderia, uma cozinha e uma sala de jantar grande o suficiente para caber toda a família.

Na varanda da frente da casa, com vista para a rua, havia uma majestosa estátua de um leão agachado.2

Quase 30 dos 55 irmãos e irmãs de Susie moraram ali em certa ocasião. Às vezes, a família também acolhia órfãos, incluindo Ina Maybert, uma menina da Índia. Um menino da vizinhança chamado Heber Grant costumava brincar na casa com os irmãos de Susie e participar das orações da família Young. Ele era o filho único de Rachel Ivins e do antigo conselheiro de Brigham Young, Jedediah Grant. No inverno, Heber gostava de se agarrar ao trenó de Brigham e deixar que ele o puxasse pelo gelo.3

A família Young tentava manter uma casa ordeira, com horários rígidos para as refeições, as aulas escolares e as orações. Mas isso não impedia que Susie e seus irmãos escorregassem pelos corrimões, subissem as escadas correndo e brincassem de esconde-esconde.4 Quando pequena, Susie achava que era perfeitamente normal ter uma família grande assim e que o pai morasse com mais de uma dúzia de esposas. De fato, sua família não era comum, mesmo entre as famílias plurais que, por comparação, eram geralmente muito menores. Diferente do pai, a maioria dos homens na Igreja que praticava o casamento plural tinha apenas duas esposas.5

Sua própria genitora, Lucy Bigelow Young, era uma mãe devotada que lhe dedicava muito carinho e amor. Zina Huntington Young e Emily Partridge Young, duas das esposas do pai que moraram por algum tempo na Lion House, eram como segundas mães para ela. O mesmo podia ser dito de outra esposa do pai, Clara Decker Young, que costumava ficar acordada até tarde para conversar com Susie e suas irmãs e lhes dar conselhos.6

Outra esposa, Eliza Snow, era uma poetisa que lia muitos livros nos tempos vagos e incentivava a florescente criatividade de Susie. Eliza era inteligente, eloquente e extremamente autodisciplinada. O quarto, a sala de estar e a escrivaninha dela estavam sempre bem arrumados e cuidadosamente organizados. Algumas pessoas achavam que Eliza era fria e distante, mas Susie sabia que ela era terna e carinhosa — especialmente ao cuidar de doentes.7

A Lion House nem sempre estava livre de conflitos, mas a família procurava fazer com que a vida juntos fosse bem-sucedida. Brigham não gostava de comparar o casamento plural com os costumes do mundo. “Ele vem dos céus”, disse aos santos. “O Senhor o instituiu por um propósito expresso de levantar uma nação real, um sacerdócio santo, uma nação peculiar para Si mesmo, a qual Ele possa reconhecer e abençoar.”8

“Se alguma vez minha fé foi testada na Terra, foi quando Joseph Smith revelou essa doutrina para mim”, ele testificou mais tarde. “Tive que orar incessantemente e exercer fé, e o Senhor revelou-me a verdade dela, e isso me satisfez.”9

A alegria que ele sentia em criar seus muitos filhos no evangelho de Cristo era fruto dessa fé.10 À noite, ele tocava um sino, chamando a todos para que se reunissem para a oração em família. “Agradecemos-Te por nosso lar nestes vales pacíficos e pela segurança destas montanhas que Tu preservaste como um lugar de coligação para Teu povo”, costumava ele orar, falando gentilmente com o Senhor, com verdadeiro amor em sua voz. “Abençoa os pobres, os necessitados, os enfermos e os aflitos. Consola o coração daqueles que choram. Sê o esteio e o cajado dos idosos e um guia para os jovens.”11

Brigham, com frequência, refletia sobre o bem-estar dos santos. Os tempos estavam mudando, e uma estrada de ferro que ligaria um lado ao outro da América do Norte estava sendo construída.12 Ele tinha investido dinheiro no empreendimento, certo de que a ferrovia tornaria as viagens de e para Utah mais rápidas e baratas e menos cansativas para os missionários e emigrantes. Mas também sabia que ela traria mais tentações para o território, e queria preparar os santos espiritual e economicamente para sua chegada.13

Também queria fortalecer sua própria família, por isso, naquela primavera, Susie e seus irmãos ficaram sabendo que ele havia contratado Karl Maeser para que fosse seu professor particular. Alguns dos irmãos de Susie detestaram as aulas do professor Maeser e desistiram de frequentar a escola. Mas Susie ficou fascinada pelas aulas dele.

Os livros, especialmente as escrituras, ganhavam vida na sala de aula. O professor Maeser encorajava os filhos da família Young a fazer perguntas e a resolver problemas. Embora ela sempre estivesse ávida para aprender algo novo, Susie às vezes ficava frustrada quando cometia erros nas lições da escola.14

O professor Maeser era paciente. “Somente aqueles que têm a coragem de cometer erros”, disse-lhe ele, “vão aprender lições e verdades dignas de valor”.15


Johan Dorius estava trabalhando naquela primavera como sapateiro em Fort Ephraim. Ele e o irmão, Carl, tinham voltado de uma missão de dois anos na Escandinávia. Antes de partirem da Dinamarca, eles esperavam trazer a mãe com eles. Mas, como o novo marido de Ane Sophie não estava disposto a sair de Copenhague, ela decidiu ficar. Desapontados, os irmãos tinham zarpado da Dinamarca poucos dias depois com uma companhia de 300 santos.

Desde que retornara a Utah, Johan estivera tentando ganhar dinheiro. Durante sua ausência, sua esposa, Karen, tinha construído um sobrado em seu terreno em Spring Town, cultivado plantações e cuidado de um quintal repleto de animais de criação. Karen ansiara pelos dias felizes que passaria com o marido e os filhos na casa nova, mas, logo após o retorno de Johan, ele recebeu permissão para se casar com uma segunda esposa, uma norueguesa convertida chamada Gunild Torgensen. Karen se sentiu muito angustiada com a nova situação, mas foi amparada por sua fé no Senhor. Como a casa passou a ser pequena demais, a família se mudou para um grande lote de terra urbano em Ephraim naquele ano.16

Nessa época, aumentaram as tensões entre os santos e os índios ute de Sanpete Valley. Com mais emigrantes se reunindo em Utah, as cidades cresciam rapidamente e os novos assentamentos com frequência cortavam o acesso dos ute a suas tradicionais fontes de alimento e água. Alguns colonos também mantinham grandes rebanhos de gado em muitos hectares de terras de pastagem na região central de Utah, empurrando ainda mais os utes para fora daquela região.17

Ciente desses problemas, Brigham Young pediu aos santos que alimentassem os índios e os tratassem com bondade. “Estabelecemo-nos nas terras delas, impedindo-os fisicamente de terem sucesso na caça, pesca, etc.”, escreveu ele para um líder da Igreja. “Por esse motivo, cabe a nós exercer para com eles toda a bondade, liberdade, paciência e tolerância possíveis.”18

Embora Brigham esperasse inspirar maior compaixão pelos índios, o alimento já era escasso em alguns assentamentos, e poucos santos queriam compartilhar suas provisões. Quando os colonos se recusavam a compartilhar o alimento, os utes frequentemente recorriam ao roubo de gado para obter seu sustento.19

Por fim, irrompeu a violência na primavera de 1865, depois que as negociações de paz entre os santos e os utes de Sanpete Valley não tiveram bom resultado. Poucas semanas depois, um bando de utes liderado por um homem chamado Black Hawk começou a roubar gado e a matar colonos.20 O conflito piorou com o fim da primavera e o início do verão. Em junho, Brigham e o governo dos Estados Unidos tentaram persuadir os líderes ute a levarem a tribo para uma reserva — terras reservadas pelo governo para os índios habitarem —, mas os ataques aos assentamentos continuaram. Brigham então ordenou à milícia que impedisse a ação dos atacantes, mas que não ferisse mulheres, crianças ou homens utes pacíficos. Porém, ambos os lados se atacaram agressivamente.21

Na tarde de 17 de outubro, Johan Dorius viu horrorizado Black Hawk e seus homens atacarem um jovem casal dinamarquês, seu filho bebê e uma jovem sueca nos campos que ficavam nos arredores de Ephraim. Depois que os homens de Black Hawk cavalgaram para longe para roubar gado do assentamento, Johan e vários outros santos correram para os campos. O casal estava morto e a moça sueca estava agonizante, mas de alguma forma o bebê escapara ileso. Johan o pegou no colo e o levou de volta para a cidade.22

Com a milícia perseguindo o bando de Black Hawk, os líderes da Igreja ordenaram aos santos de Sanpete Valley e das regiões circunvizinhas que agissem com cautela e de modo defensivo. Mas, no calor do conflito, tomados de medo e desconfiança, alguns santos não deram atenção a suas palavras.23

Seis meses após o ataque em Fort Ephraim, os membros da Igreja de uma pequena e pouco fortificada comunidade chamada Circleville capturaram uns 20 paiutes pacíficos, sob a suspeita de serem espiões de Black Hawk. Os colonos amarraram os homens e os deixaram sob guarda na capela local. Enquanto isso, as mulheres e as crianças foram deixadas em uma adega vazia. Quando alguns dos homens paiute tentaram escapar, os colonos os mataram a tiros e executaram os demais cativos, um por um, inclusive as mulheres e as crianças mais velhas.24

Brigham condenou severamente a violência. “Quando um homem mata um índio inocente a tiros, ele é culpado de assassinato”, disse ele.25 Brigham culpou os santos, e não os utes, pelo conflito. “Se os élderes de Israel tivessem sempre tratado os lamanitas como deveriam”, declarou ele, “não creio que teríamos tido qualquer dificuldade com eles”.26

A violência disseminada continuou a acontecer em meio aos santos e índios, na região central de Utah, por mais um ano. Os santos das comunidades menores se mudaram para cidades maiores, e os colonos colocaram vigias para proteger o gado. Depois que os santos impediram um grande ataque dos índios em julho de 1867, Black Hawk e dois chefes se renderam aos agentes do governo. Alguns utes continuaram a roubar gado dos santos, mas o conflito praticamente terminou.27


Mais tarde naquele ano, em 6 de outubro, os santos realizaram sua conferência geral pela primeira vez em um espaçoso tabernáculo novo, logo a oeste do terreno do templo. A Primeira Presidência havia anunciado planos para a construção de um local de reuniões maior no quarteirão do templo em 1863. O edifício oval era coberto por um grande domo em forma de casco de tartaruga. Quarenta e quatro pilares de arenito sustentavam o domo, que foi criado pelo veterano construtor de pontes Henry Grow, com treliças de madeira entrelaçadas em forma de arco, firmemente fixadas com cavilhas de madeira e tiras de couro cru. Como o design inovador não usava colunas interiores para sustentar o enorme teto, os santos que compareceram à conferência tinham uma visão desobstruída dos oradores que estavam ao púlpito.28

Naquele outono, Brigham Young continuou a acompanhar o progresso da ferrovia. A Guerra Civil Americana havia terminado com a vitória do Norte, na primavera de 1865, dando ao projeto da ferrovia um novo ímpeto, quando a atenção da nação se voltava para o Oeste em busca de novas oportunidades. Brigham serviu na junta de diretores de uma das companhias ferroviárias, mas seu apoio para o empreendimento não o livrou da ansiedade sobre as mudanças que ela traria para o território e para sua economia.29

Em Doutrina e Convênios, o Senhor instruiu Seu povo a ser “uno”, a compartilhar os fardos econômicos e a “[permanecer] independente, acima de todas as outras criaturas abaixo do mundo celestial”.30 Ao longo dos anos, Brigham e outros líderes tinham empregado vários esforços para unir os santos e mantê-los ligados uns aos outros. Um desses esforços foi o alfabeto deseret, um sistema fonético que visava a resolver os problemas percebidos na grafia do inglês, ensinar os jovens santos a ler e ajudar os imigrantes a aprenderem rapidamente a falar inglês e a se sentirem em casa em Utah.31

Além disso, para alcançar a independência de Sião, Brigham começou a promover um movimento cooperativo entre os santos. Em seus sermões, ele frequentemente incentivava os membros da Igreja a cultivarem seus próprios alimentos, a confeccionarem roupas caseiras e a construírem moinhos, fábricas e fundições. Também criticou os mercadores de dentro e de fora da Igreja que vinham ao território para comercializar produtos do Leste difíceis de encontrar para obter lucros, enriquecendo a si mesmos em vez de promoverem a causa de Sião.32

Sabendo que a ferrovia traria um número ainda maior de mercadores e bens para competir com a produção doméstica dos santos, Brigham rogou aos membros da Igreja que apoiassem os negócios locais e buscassem independência financeira dos mercados externos.33 Para ele, a salvação econômica dos santos era tão importante quanto sua salvação espiritual. Um ataque à economia de Sião era um ataque à própria Sião.

Brigham também começou a procurar maneiras de fortalecer os santos por meio de instituições dentro da Igreja. Em 1849, o santo escocês Richard Ballantyne havia organizado a primeira Escola Dominical no vale. Desde essa época, muitas alas tinham administrado Escolas Dominicais independentes umas das outras, geralmente usando diferentes livros didáticos e material para as lições. Recentemente, porém, George Q. Cannon havia fundado a Juvenile Instructor, uma revista ilustrada com lições do evangelho que poderiam ser usadas na Escola Dominical a baixo custo para os professores e alunos. Em novembro de 1867, Brigham e outros líderes da Igreja selecionaram George para ser o presidente de uma União de Escolas Dominicais a fim de incentivar as alas e os ramos de toda a Igreja a organizarem Escolas Dominicais próprias.34

As classes básicas e fundamentais das Escolas Dominicais serviam principalmente aos meninos e às meninas da Igreja. Para os adultos da Igreja, Brigham decidiu organizar uma Escola de Profetas em cada uma das grandes cidades do território. Quase 35 anos antes, o Senhor havia ordenado a Joseph Smith que organizasse essas escolas em Kirtland e no Missouri para promover a união e a fé entre os portadores do sacerdócio nos primórdios da Igreja e preparar os homens para que pregassem o evangelho.35

Brigham queria que a nova Escola dos Profetas proporcionasse maior união espiritual e devoção entre os homens da Igreja. Ele acreditava que ela poderia ajudá-los a entender, antes da chegada da ferrovia, a importância da cooperação econômica, do cumprimento dos convênios e da edificação de Sião.

Uma Escola dos Profetas foi aberta em Salt Lake City, em 2 de dezembro de 1867. Nas semanas subsequentes, Brigham pediu a seus membros que administrassem seus negócios de modo a beneficiar os santos, e não os mercadores externos. “Devemos ser unos e nos entender uns com os outros”, ensinou ele. E condenou os membros da Igreja que compravam artigos quando e onde queriam, independentemente das necessidades de Sião.

“Eles não têm lugar neste reino”, declarou ele.36


Seis dias depois de organizar a Escola dos Profetas em Salt Lake City, Brigham discursou aos bispos sobre a reorganização das Sociedades de Socorro das alas, que tinham sido em grande parte dissolvidas durante a ameaça de um conflito com o exército dos Estados Unidos, dez anos antes. Brigham esperava que as Sociedades de Socorro promovessem mais união entre os santos, ajudando os membros mais necessitados.37

Como os bispos pouco conheciam a respeito do propósito das Sociedades de Socorro, ele pediu a Eliza Snow que os ajudasse na organização de sociedades em suas respectivas alas. Eliza se sentiu honrada em ajudar. Poucas pessoas entendiam o propósito da Sociedade de Socorro tão bem quanto ela. Como secretária da Sociedade de Socorro Feminina de Nauvoo, Eliza tinha redigido cuidadosas atas das reuniões, registrado os ensinamentos de Joseph Smith para as mulheres e os preservado num livro de registros.

Eliza gostou muito de trabalhar com os bispos, e eles ficaram gratos pela ajuda dela.38 Quando Brigham lhe disse que teria uma nova missão para ela na primavera seguinte, ela não perguntou qual era. Disse simplesmente: “Vou me empenhar para cumpri-la”.

“Quero que instrua as irmãs”, disse-lhe Brigham. Ele acreditava que as mulheres da Igreja precisavam que Eliza as ajudasse a entender o papel da Sociedade de Socorro na edificação de Sião.

Eliza sentiu o coração bater mais rápido. Ensinar as mulheres da Igreja era uma designação imensa. As mulheres da Igreja não costumavam falar em reuniões públicas, exceto nas reuniões de testemunho. Agora era esperado que Eliza visitasse todos os assentamentos do território, que se reunisse individualmente com a Sociedade de Socorro de cada ala e ramo e falasse em público.39

Pouco depois de sua reunião com Brigham, Eliza publicou um artigo no Deseret News. “Qual é o objetivo da Sociedade de Socorro Feminina?”, perguntou ela aos leitores. “Eu responderia — fazer o bem —, invocando toda a capacidade que temos para fazer o bem, não apenas socorrendo os pobres, mas salvando almas.”

Com base nos registros da Sociedade de Socorro de Nauvoo, ela instou às mulheres que dessem um passo à frente e assumissem seus deveres. “Se qualquer filha e mãe em Israel se sentir circunscrita em sua esfera atual”, escreveu ela, “agora poderá dar ampla vazão a todos os poderes e capacidades de fazer o bem com os quais foi investida”.40

Na tarde de 30 de abril de 1868, Eliza visitou a Sociedade de Socorro Feminina da Ala 13 de Salt Lake City. Umas 25 mulheres estavam presentes, inclusive Zina Huntington Young, Emily Partridge Young e Bathsheba Smith, todas as quais tinham participado da Sociedade de Socorro de Nauvoo. A recém-chamada presidente da Sociedade de Socorro da ala, Rachel Grant, conduziu a reunião com suas duas conselheiras, as irmãs gêmeas Annie Godbe e Margaret Mitchell.41

Então com 47 anos de idade, Rachel Grant tinha morado em Nauvoo no início da década de 1840, mas não tinha participado da Sociedade de Socorro original. Ao ficar sabendo a respeito do casamento plural, isso foi uma grande prova de fé para ela, que havia voltado a morar com a família nos estados do Leste após a morte de Joseph Smith. Mas tinha mantido contato com os missionários e com outros membros da Igreja, decidindo se mudar para Utah em 1853, após muita oração e profunda reflexão. Dois anos depois, casou-se com Jedediah Grant, como esposa plural, e teve seu único filho, Heber, nove dias antes da morte inesperada do marido. Desde a ocasião, tinha cuidado de Heber com a minguada renda que conseguia trabalhando como costureira.42

Depois da abertura da reunião da Sociedade de Socorro, Rachel pediu que Eliza instruísse as mulheres. “O profeta Joseph Smith anteviu grandes resultados a partir da formação das Sociedades de Socorro Femininas”, disse Eliza às mulheres, “para que muitas coisas boas sejam realizadas pelas irmãs ao visitarem os enfermos e aflitos”. Ela as incentivou a dirigirem reuniões ordeiras, realizarem boas obras e cuidarem umas das outras.

“A sociedade deve ser como uma mãe com a filha”, explicou ela. “Ela não se mantém distante, mas se aproxima e a acolhe em seu seio, mostrando a necessidade de união e amor.”

Quando Eliza terminou de falar, Rachel disse que estava orgulhosa das mulheres e que esperava que se fortalecessem ao se reunirem. Eliza então incentivou as mulheres a falar em público. Testificou que elas encontrariam forças ao discursarem umas para as outras.

“O inimigo sempre fica contente quando não vencemos nossos sentimentos de timidez e impedimos que nossos lábios pronunciem palavras de incentivo e determinação”, disse ela. “Quando esse acanhamento for quebrado, logo adquiriremos confiança.”

“Dia virá”, prometeu ela, “em que precisaremos estar em grandes lugares e atuar em situações de responsabilidade”.43


À medida que as alas e os ramos organizavam Sociedades de Socorro, Eliza se reuniu com Sarah Kimball, outra fundadora da sociedade de Nauvoo, para delinear os deveres das líderes da Sociedade de Socorro.44 Começou então a visitar as Sociedades de Socorro de todo o território, geralmente recorrendo às atas da Sociedade de Socorro original para instruir as mulheres em seus deveres. “Essa organização fez parte da Igreja de Cristo em todas as dispensações em que ela foi estabelecida”, ensinou Eliza às mulheres da Igreja. Quando não podia visitar as Sociedades de Socorro pessoalmente, escrevia-lhes cartas.45

Enquanto isso, Brigham organizava mais ramos da Escola dos Profetas e aconselhava seus membros a estudarem todos os tipos de conhecimento e a se tornarem unos de coração e mente.46 Em abril de 1868, ele foi a Provo para estabelecer uma escola que seria dirigida por Abraham Smoot, a quem ele havia enviado com John Taylor, Wilford Woodruff, Joseph F. Smith e outros para reformar a turbulenta e indisciplinada cidade. Enquanto estava ali, Brigham e Abraham instaram os membros da escola de Provo a fazerem negócios basicamente uns com os outros, mantendo assim seus recursos e lucros com os santos.

“Todo membro tem uma influência”, disse Abraham, “e devemos usá-la na devida direção”.47

Poucas semanas depois, o conselheiro de Brigham, Heber Kimball, sofreu um acidente em uma carruagem em Provo. Foi lançado violentamente do veículo e bateu a cabeça no chão. Ficou ali caído por algum tempo, exposto ao frio, até que um amigo o encontrou. Brigham esperava que Heber, um de seus amigos mais antigos, se recobrasse do acidente. Mas Heber teve um derrame no início de junho e morreu mais tarde naquele mês, rodeado por familiares.

Sua morte ocorreu oito meses após o dia do falecimento de sua esposa Vilate. “Não se passará muito tempo até que eu a siga”, profetizou Heber quando ela faleceu. No funeral de Heber, Brigham decidiu prestar um simples tributo à retidão de seu amigo e conselheiro.

“Era o homem de mais integridade que já viveu nesta Terra”, declarou ele.48


Na época do falecimento de Heber, os trabalhadores da ferrovia — entre os quais havia muitos imigrantes chineses, ex-escravos e veteranos da Guerra Civil — estavam se apressando para terminar a estrada de ferro transcontinental. Em agosto, Brigham incentivou os homens da Igreja a auxiliarem na construção. Assim que as duas estradas de ferro se uniram, ao norte do Grande Lago Salgado, ele esperava construir uma estrada que ligasse Salt Lake City a outros pontos do Sul a fim de tornar mais rápida a viagem entre os assentamentos e para transportar pedras para o templo.49

No entanto, certa noite, após as orações familiares, Brigham compartilhou sua ansiedade sobre a ferrovia com algumas de suas esposas, seus amigos e seus filhos mais velhos. “Saímos do mundo, mas o mundo está vindo até nós”, disse ele. A Escola Dominical, a Escola dos Profetas e a Sociedade de Socorro estavam organizadas para apoiar e fortalecer os santos. Mas será que ele e sua geração tinham feito o suficiente para preparar os jovens para o que estava por vir?

“Eles não terão os mesmos tipos de desafios que seus pais e suas mães tiveram que enfrentar”, disse ele. “Eles serão provados com o orgulho, a insensatez e os prazeres de um mundo pecaminoso.” Se sua geração não ajudasse os jovens a desenvolver fé em Jesus Cristo, as tentações mundanas poderiam desviá-los do caminho.50

Por fim, Brigham confiou que o evangelho de Jesus Cristo continuaria a unir e a proteger o povo de Deus, inclusive os jovens.

O evangelho restaurado, refletiu ele no início de 1869, “enviou seus professores aos confins da Terra, reuniu pessoas de quase todas as línguas e credos sob o céu, das mais variadas formações educacionais e das tradições mais opostas, e as uniu em completa harmonia.

Uma crença que consiga tomar as massas heterogêneas da humanidade e as torná-las num povo feliz, contente e unido”, declarou ele, “tem dentro de si um poder que as nações pouco conhecem. Esse poder é o poder de Deus”.51


Em março de 1869, os moradores da cidade de Ogden se reuniram em multidão em altos despenhadeiros para ter um vislumbre dos trabalhadores da ferrovia. A estrada de ferro tinha finalmente chegado ao coração do território, tendo progredido pouco a pouco, um dormente e um trecho de trilho de aço por vez. Em breve os trens chegariam, expelindo fumaça negra e vapor cinzento para o céu.52

Brigham visitou os santos dos assentamentos do Sul mais tarde naquele ano. Havia então Escolas Dominicais, Escolas dos Profetas e Sociedades de Socorro em muitas das cidades que ele visitou. A pedido seu, os santos também estavam abrindo novas lojas, chamadas “cooperativas”, para promover a cooperação econômica em lugar da competição econômica entre os santos. Brigham queria que toda cidade tivesse uma loja cooperativa para prover aos santos suas necessidades básicas a um preço justo.53

No início de maio, ele aconselhou os santos da região central de Utah a viverem segundo toda palavra de Deus. “Não basta morar neste vale para que as pessoas se tornem santos de Deus”, disse ele. “Se quisermos provar a Deus ou aos homens que somos santos, precisamos viver para Deus e para mais ninguém.”54

As estradas de ferro do Leste e do Oeste finalmente se encontraram no dia seguinte, 10 de maio de 1869, num vale a oeste de Ogden. As companhias ferroviárias enviaram telegramas aos trabalhadores que pregaram os últimos cravos na estrada de ferro. A cada golpe dos malhos, era enviado um pulso elétrico pela linha telegráfica até Salt Lake City e a outras cidades espalhadas por todo o país, proclamando que uma estrada de ferro agora ligava as costas do Atlântico e do Pacífico dos Estados Unidos da América.55

Os santos de Salt Lake City comemoraram o acontecimento no novo tabernáculo do quarteirão do templo. Naquela noite, todos os escritórios e edifícios públicos mantiveram as luzes acesas após seu horário de funcionamento para iluminar a cidade. Num monte ao norte da cidade, os santos acenderam uma grande fogueira que podia ser avistada a quilômetros de distância.56

Parte 3

A hora da provação

Maio de 1869–Julho de 1887

Deus, concede-nos sabedoria, graça e poder

Para corajosamente suportarmos a hora da provação

Até que Sião, pura, que redime e traz liberdade

Prossiga em pacífica majestade.

Eliza R. Snow, “O amor de um irmão e uma irmã”

mapa do oeste dos EUA

Capítulo 24

Um trabalho imenso

Salão da Sociedade de Socorro

“Lojas cooperativas brotaram em quase todos os lugares do território onde havia necessidade de um comércio”, escreveu George Q. Cannon no editorial de 19 de maio de 1869 do Deseret Evening News. “Se toda mulher neste território tiver uma participação nessas lojas, o comércio fluirá para elas tão naturalmente quanto a água flui rio abaixo.”1

O ponto de vista do editorial sobre as mulheres e sua importância no movimento cooperativo impressionou Sarah Kimball, a presidente da Sociedade de Socorro da Ala Salt Lake City XV. A cooperação era fundamental para que os santos se tornassem um povo autossuficiente. As mulheres confeccionavam muitos dos artigos vendidos nas cooperativas e com frequência compravam coisas nas lojas.

Brigham Young ensinou que todos os esforços para a edificação de Sião, por menores que fossem, faziam parte da obra sagrada do Senhor. Ele havia recentemente pedido aos santos que somente comprassem nas cooperativas e em outras empresas nas quais as palavras “Santidade ao Senhor” aparecessem em algum lugar do estabelecimento. Ao apoiarem essas lojas, as mulheres trabalhavam para benefício dos santos, e não para os comerciantes de fora.2

Sarah e sua Sociedade de Socorro já estavam se empenhando em promover os ideais de cooperação. No ano anterior, tinham começado a construir um salão da Sociedade de Socorro em sua ala. Seguindo o modelo da loja de Joseph Smith, em Nauvoo, onde a Sociedade de Socorro original foi organizada, o novo salão tinha dois andares. No andar superior, as mulheres tinham uma sala de trabalho dedicada à adoração, à arte e à ciência. No piso térreo, funcionava uma loja cooperativa que vendia e comercializava tecidos de lã, rolos de algodão, retalhos para tapetes, frutas secas, mocassins e outros artigos confeccionados pelas irmãs da Sociedade de Socorro.3 Tal como outras pequenas lojas cooperativas, ela também funcionava como distribuidora de varejo para a maior cooperativa da cidade, a Zion’s Cooperative Mercantile Institution (Z.C.M.I.).

Quando concluído, o salão da Sociedade de Socorro seria o primeiro desse tipo na Igreja. As Sociedades de Socorro geralmente se reuniam nas casas ou no prédio das alas. Mas Sarah, que havia sido uma das irmãs fundadoras da Sociedade de Socorro original, em Nauvoo, queria ter um local no qual as mulheres da Ala XV pudessem desenvolver e fortalecer suas capacidades e habilidades recebidas de Deus.4

Sarah tinha sido a força motivadora da construção do salão durante todo o ano anterior. Embora um homem tivesse se prontificado a doar um terreno na cidade para o projeto, ela e as outras mulheres da sociedade tinham insistido em pagar cem dólares por ele.5 Mais tarde, depois que a ala realizou a abertura de terra do novo prédio, Sarah usou um martelo e uma espátula de prata para ajudar um pedreiro a colocar a pedra angular.

“O propósito do edifício”, declarou ela em pé sobre a pedra, “é permitir que a sociedade combine mais perfeitamente seus trabalhos, seus recursos, seus gostos e seus talentos para aprimoramento — físico, social, moral, intelectual, espiritual e financeiro — e para que se torne mais útil”.6

Nos seis meses que se seguiram, as mulheres contrataram construtores e supervisionaram o trabalho de construção, que estava quase no fim. No espírito de cooperação, angariaram fundos e combinaram seus recursos para prover tapetes e cortinas para o salão. Quando algumas pessoas perguntaram como a Sociedade de Socorro da Ala XV tivera tanto sucesso, já que estava longe de ser a ala mais rica da Igreja, Sarah simplesmente respondeu: “É porque agimos em união e mantivemos em movimento aquilo que recebemos”.7

Um dia depois da publicação do editorial do Deseret Evening News, Sarah o compartilhou com sua Sociedade de Socorro. “Com uma mulher auxiliando na grande causa da reforma, muitas mudanças maravilhosas podem ser realizadas!”, leu ela. “Dê-lhe responsabilidade, e ela vai mostrar que é capaz de coisas grandiosas.”

Sarah acreditava que um novo dia raiava para as mulheres. “Nunca houve uma época”, disse ela à sua Sociedade de Socorro, “em que a mulher, com suas habilidades e seus deveres, foi tão citada, tanto em público quanto em particular, como tem sido atualmente”.8


Enquanto a Sociedade de Socorro da Ala XV construía seu salão de reuniões, poderosas locomotivas transportavam rapidamente passageiros e carga através do país. Embora preocupada com as influências mundanas que chegavam ao território, a Primeira Presidência acreditava que a nova ferrovia transcontinental tornaria mais fácil e acessível o envio de élderes para o campo missionário e a coligação de pessoas em Sião. Por isso, uma semana após o término da construção da ferrovia transcontinental, Brigham Young iniciou a construção de uma ferrovia de propriedade da Igreja, ligando Salt Lake City a Ogden.9

Enquanto isso, Joseph F. Smith trabalhava como secretário no escritório do historiador da Igreja, em Salt Lake City. Estava com 30 anos e tinha mais responsabilidades na Igreja do que nunca. Três anos antes, pouco depois de retornar do Havaí, ele tinha sido chamado apóstolo e designado conselheiro na Primeira Presidência.10

Então, na transição da primavera para o verão de 1869, Joseph se preparava para um novo desafio. Seus primos Alexander e David Smith estavam vindo para o território. Sendo filhos do profeta Joseph Smith, eles moravam em Illinois e faziam parte da Igreja Reorganizada de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Alexander e David apoiavam o irmão mais velho, Joseph Smith III, como profeta e o sucessor legítimo da obra do pai deles.

Tal como Joseph III, Alexander e David acreditavam que o pai nunca tinha ensinado nem praticado o casamento plural. Afirmavam, em vez disso, que Brigham Young havia introduzido o princípio depois da morte do pai deles.11

Embora Joseph F. às vezes trocasse cartas com os primos, não eram próximos. Fazia três anos que ele vira Alexander pela última vez, em 1866, quando Alexander havia parado para pregar em Salt Lake City, a caminho de uma missão na Califórnia. Sabendo que os santos questionariam suas afirmações a respeito do pai e do casamento plural, Alexander chegara preparado com declarações que seu pai e Hyrum Smith haviam publicado no Times and Seasons, o jornal da Igreja em Nauvoo, que pareciam condenar o casamento plural e negar o envolvimento dos santos nessa prática.12

Em 1866, Joseph F. quisera rebater as afirmações do primo, mas não sabia o que fazer. Para sua surpresa, encontrou bem poucas evidências documentadas ligando o profeta Joseph ao casamento plural. Sabia que Joseph Smith havia ensinado o princípio a vários santos fiéis, inclusive Brigham Young e outros que agora moravam no território de Utah. Mas descobriu que eles quase nada tinham documentado sobre aquele fato.

Também havia a revelação do Senhor sobre o casamento, que tinha sido registrada por Joseph Smith em 1843 e publicada pela primeira vez em 1852. A revelação descrevia como um homem e uma mulher poderiam ser selados para a eternidade pela autoridade do sacerdócio. Também explicava que, às vezes, Deus ordenava o casamento plural para que os filhos fossem criados em famílias justas e para ajudar a cumprir Seu convênio de abençoar Abraão com uma posteridade incontável.13

A revelação era uma forte evidência de que Joseph Smith havia ensinado e praticado o casamento plural. No entanto, Alexander se recusara a aceitar sua autenticidade, e Joseph F. não conseguira encontrar outras provas documentadas dos casamentos plurais do profeta.14 “No que se refere aos livros”, admitira para o primo, “eles estão do seu lado”.15

Ao saber que Alexander voltaria para Utah com David, Joseph F. começou novamente a procurar provas dos casamentos plurais de Joseph Smith.16 O casamento plural tinha se tornado uma parte fundamental da vida de Joseph F., e ele estava determinado a defendê-lo. Poucos anos antes, sua primeira esposa, Levira, divorciara-se dele, em parte porque seu casamento com uma segunda esposa, Julina Lambson, havia piorado as tensões já existentes em seu relacionamento. Depois disso, Joseph F. se casara com uma terceira esposa, Sarah Ellen Richards.17 Para ele, o ataque à prática ameaçava o relacionamento de convênio que formava o alicerce de sua família.

Nos três anos anteriores, Joseph F. também entendera mais sobre o modo como o tio e o pai reagiram aos graves perigos que enfrentaram em Nauvoo. Para defenderem a si mesmos e a Igreja de críticas, eles tinham, às vezes, respondido aos rumores sobre o casamento plural, em Nauvoo, fazendo declarações públicas que cuidadosamente denunciavam as práticas falsas, sem condenarem a prática autorizada propriamente dita. A cautela deles ajudava a explicar por que não havia quase nenhuma prova documentada que ligasse o profeta e Hyrum à prática.18

A fim de remediar essa lacuna nos registros históricos, Joseph F. começou a coletar declarações assinadas por pessoas que tivessem participado dos primeiros casamentos plurais. Algumas das mulheres com quem ele falou haviam sido seladas a Joseph Smith para esta vida e para a próxima. Outras haviam sido seladas ao profeta apenas para a eternidade. Joseph F. também reuniu informações sobre o conhecimento que sua tia Emma possuía a respeito da prática. Sua irmã mais velha, Lovina, havia morado com Emma por um tempo depois que a maioria dos santos havia viajado para o Oeste. Ela testificara que certa vez Emma lhe contara que tinha dado seu consentimento e testemunhado o selamento de seu marido a esposas plurais.

Ao longo das primeiras semanas do verão, Joseph F. continuou a reunir declarações, sempre esperando a chegada dos primos a qualquer momento.19


Em 22 de julho de 1869, Sarah Kimball deu início à primeira reunião da Ala XV no recém-construído salão da Sociedade de Socorro. “A casa foi construída para benefício de todas”, anunciou ela às mulheres presentes.20

Duas semanas depois, em 5 de agosto, a Primeira Presidência dedicou o edifício. Na cerimônia, um coro cantou um hino novo que Eliza Snow escrevera a respeito do papel do salão da Sociedade de Socorro na proteção de Sião:

Que sempre haja união neste salão

Com força e habilidade semelhantes às de Deus;

E Pai, que a Tua sabedoria guie

E encha cada uma de suas divisões.

Dedicamos esta casa a Ti,

Como receptáculo de amor e trabalho;

Que o bem-estar de Sião seja

Sua principal força motivadora.21

A Primeira Presidência ficou contente com o fato de que o edifício adotara os ideais de cooperação econômica e fabricação local. Em seu discurso para a sociedade, Brigham salientou a importância de que os homens e as mulheres trabalhassem juntos por Sião. “A Terra tem que passar por uma revolução”, disse ele. “Há um trabalho imenso a ser realizado, e serão exigidos todos os recursos, os talentos e a assistência que puderem ser obtidos.”

“O auxílio das damas é tão essencial quanto o dos homens”, prosseguiu ele. “Nossas Sociedades de Socorro são para o benefício dos pobres e dos ricos. São para o benefício de todas as condições e de toda a comunidade dos santos dos últimos dias.”22

Sarah acrescentou seu testemunho do valor da cooperação em uma reunião realizada mais tarde naquele mês. Ela ensinou que a cooperação fazia parte do padrão do Senhor para Sião. Em sua mente, a fabricação local era fundamental para o bem-estar dos santos.

“O assunto não pode ser perdido de vista”, insistiu ela, “nem em uma única reunião”.23


Alexander e David Smith chegaram a Salt Lake City naquele verão e passaram sua primeira noite com John, o irmão mais velho de Joseph F. e patriarca presidente da Igreja, e sua esposa Hellen. Dois dias depois, Alexander e David foram ao escritório de Brigham Young, esperando receber permissão para pregar no tabernáculo que, às vezes, era disponibilizado para que outros grupos religiosos realizassem reuniões. Brigham analisou o pedido dos irmãos, mas ele e outros líderes da Igreja desconfiavam de seus motivos e não lhes concederam a permissão.24

No escritório do historiador, Joseph F. Smith continuava a coletar provas de que Joseph Smith havia ensinado e praticado o casamento plural, ampliando grandemente o que ele e a Igreja sabiam sobre o casamento plural em Nauvoo. Além de reunir mais declarações, ele examinou cuidadosamente os diários de William Clayton, que tinha sido secretário, amigo e confidente do profeta Joseph. O diário de William era um dos poucos registros de Nauvoo que descreviam detalhadamente os primeiros casamentos plurais, fornecendo evidências da participação do profeta.25

Quando Joseph F. não estava no Escritório do Historiador ou com sua família, era porque estava oficiando na casa de investiduras. No começo de agosto, ele e George Q. Cannon administraram a investidura a seu amigo Jonathan Napela, que havia vindo do Havaí para Salt Lake City no fim de julho a fim de receber a ordenança, visitar a sede da Igreja e conhecer Brigham Young e outros santos.26

Alexander e David Smith, enquanto isso, ainda estavam na cidade, atraindo multidões onde quer que discursassem. Esperando enfraquecer a autoridade de Brigham Young, alguns comerciantes ricos que se opunham ao movimento cooperativo da Igreja alugaram uma grande igreja protestante onde os irmãos podiam fazer palestras criticando a liderança de Brigham e a Igreja. Como Alexander fizera três anos antes, eles também se valiam de citações do Times and Seasons para negar o envolvimento do pai deles com o casamento plural.

Ao mesmo tempo, Joseph F. Smith e outros líderes da Igreja pregavam sermões sobre o casamento plural em Nauvoo nos prédios das alas de toda a cidade.27 Em 8 de agosto, Joseph F. falou para uma congregação de Salt Lake City. Apresentou algumas das provas que ele havia coletado sobre os casamentos plurais e abordou as declarações feitas por seu pai e seu tio sobre a prática, que foram publicadas no Times and Seasons.

“Só conheço esses fatos”, disse ele para a congregação. “Todos sabem que as pessoas não estavam preparadas para essas coisas naquela época e que era necessário ter cautela”, disse ele. “Eles estavam no meio de inimigos e em um estado em que essa doutrina os teria mandado para a penitenciária.”

Joseph F. acreditava que seu pai e seu tio tinham feito o que fizeram para preservar a própria vida e proteger outros homens e mulheres que também estavam praticando o casamento plural. “Os irmãos não tinham liberdade como temos aqui”, prosseguiu ele. “O diabo estava furioso em Nauvoo, e havia traidores em todos os lugares.”28


Em setembro, um editor santo dos últimos dias chamado Elias Harrison zombou da missão de Alexander e David Smith em uma coluna do Utah Magazine, um periódico que ele publicava com apoio financeiro de seu amigo William Godbe, um dos comerciantes mais ricos da Igreja. Com uma linguagem ferina, Elias depreciou a Igreja Reorganizada e acusou os irmãos Smith de serem “extremamente ignorantes” em relação ao ministério do pai deles.

“Seu zelo especial é despendido tentando provar que seu pai não praticava a poligamia, baseando seus argumentos em certas afirmações contidas no Livro de Mórmon, em Doutrina e Convênios e no Times and Seasons”, escreveu Elias. “Mas no que isso resultou? David e Alexander podem provar que Joseph Smith negava a poligamia, mas nós podemos provar que ele a praticava.”29

Embora Elias defendesse a Igreja em seus artigos, ele o fez para ocultar os verdadeiros motivos pelos quais ele publicava o Utah Magazine. Desde o início do movimento cooperativo, ele e William Godbe faziam silenciosa oposição ao conselho dado pela Primeira Presidência de apoiar os outros santos e de não fazer negócios com comerciantes que não usassem seus lucros para fortalecer a economia local.30 Para William, era preciso muita sutileza para se opor à Primeira Presidência. Além de ser um empresário bem-sucedido, ele fazia parte do conselho municipal de Salt Lake City e era membro do bispado da Ala XIII. Além disso, era genro e amigo próximo de Brigham Young.31

Tal como Elias, William acreditava que o profeta era antiquado e exercia muita influência sobre a vida dos santos. Antes do início do movimento cooperativo, comerciantes como William tinham mais controle sobre o mercado local, o que lhes permitia cobrar preços elevados e enriquecer. Sob o novo sistema, porém, a Igreja procurava manter os preços baixos para beneficiar os santos pobres e as lojas cooperativas locais.

Com o enfraquecimento de seu controle sobre o mercado, William se irritara com a ênfase dada por Brigham à santidade da cooperação. Cada vez mais, ele e Elias tinham começado a usar o Utah Magazine para preparar outras pessoas que pensavam de modo semelhante ao deles a fim de organizar uma revolta dentro da Igreja.32

Seu desejo de revolta tinha tomado forma um ano antes, em uma viagem de negócios a Nova York. Naquela época, os dois começaram a tentar se comunicar com os mortos por meio de sessões espíritas. O espiritismo tinha se tornado muito popular após a Guerra Civil Americana, porque as pessoas ansiavam por se comunicar com os entes queridos falecidos no conflito. No entanto, os líderes da Igreja já há muito condenavam essas práticas, dizendo serem falsos substitutos das revelações, provenientes do adversário.

Ignorando essas advertências, William e Elias se envolveram profundamente com as sessões espíritas e passaram a crer que tinham falado com os espíritos de Joseph Smith, Heber Kimball, os apóstolos Pedro, Tiago e João, e até com o Salvador. Convencidos de que essas comunicações eram reais, William e Elias se sentiram chamados para uma missão especial de livrar a Igreja de tudo o que eles consideravam falso. Quando retornaram a Utah, começaram a publicar críticas sutis contra os líderes e as normas da Igreja ao lado de artigos mais positivos no Utah Magazine.33

Pouco depois de publicar seu artigo sobre os irmãos Smith, Elias se tornou mais agressivo em seus ataques a Brigham Young e às normas da Igreja. Afirmava que o movimento cooperativo privava os santos do impulso competitivo necessário para estimular a economia de Utah, que ele considerava demasiado fraca para se sustentar apenas com a indústria local. Também argumentava que os santos eram demasiadamente egoístas para sacrificar seus próprios interesses pelo bem da comunidade.34

Depois, em 16 de outubro, Elias publicou um editorial instando os santos a desenvolver a indústria de mineração em Utah. Ao longo dos anos, Brigham Young tinha aprovado algumas atividades mineradoras patrocinadas pela Igreja, mas ele se preocupava com a possibilidade de que o descobrimento de minerais valiosos viesse a causar mais problemas sociais e divisões de classe no território. Essa preocupação o levou a pregar agressivamente contra os empreendimentos mineradores independentes no território.35

Logo ficou evidente que Elias e William estavam tramando secretamente contra a Igreja. Em 18 de outubro, Orson Pratt, Wilford Woodruff e George Q. Cannon se reuniram com os dois homens e alguns de seus amigos. Elias guardava muito rancor, e nenhum deles estava disposto a apoiar a Primeira Presidência. Cinco dias depois, em uma reunião da Escola dos Profetas de Salt Lake City, William declarou que havia seguido os conselhos econômicos de Brigham apesar de confiar mais em seu próprio julgamento, mas que não acreditava que o profeta tinha o direito de orientar os membros da Igreja em questões comerciais. Elias, por sua vez, foi ainda mais incisivo ao questionar a liderança de Brigham. “É mentira! É mentira!”, gritou ele.36

Poucos dias depois, o sumo conselho de Salt Lake City se reuniu com Elias e William na prefeitura. Elias acusou os líderes da Igreja de agirem como se suas palavras fossem infalíveis. Ao rejeitar os conselhos, William afirmou que ele e Elias estavam apenas seguindo uma autoridade espiritual mais elevada, em uma alusão a suas sessões espíritas.

“Não ignoramos de modo algum o sacerdócio”, insistiu ele, “mas admitimos a existência de um poder por trás do véu a partir do qual chegam e sempre chegaram influências e instruções, pelas quais a vontade pode ser guiada em seu caminho adiante”.

Depois que os dois falaram, Brigham se dirigiu ao sumo conselho. “Nunca busquei nada a não ser uma coisa neste reino”, disse ele, “e isso foi fazer com que os homens e as mulheres obedecessem ao Senhor Jesus Cristo em tudo”.

Afirmou que todas as pessoas tinham o direito de pensar por si mesmas, assim como os líderes da Igreja tinham o direito de aconselhá-las de acordo com a revelação. “Trabalhamos em harmonia com nosso Salvador”, declarou ele. “Ele trabalha em harmonia com Seu Pai, e cooperamos com o Filho para nossa própria salvação e a salvação da família humana.”

Brigham também rejeitou a ideia de que os líderes da Igreja eram incapazes de cometer erros. “Homens que possuem o sacerdócio podem ser falhos”, ele declarou. “Eu não pretendo ser perfeito.” Mas o fato de ele ser falho não significava que ele não podia ser um instrumento de Deus para o bem dos santos.

Se William e Elias quisessem continuar a criticar a Igreja no Utah Magazine, Brigham acreditava que eles tinham a liberdade de fazê-lo. Ele continuaria a pregar e a praticar a cooperação, independentemente do que eles ou os comerciantes de fora fizessem ou dissessem. “Deixo a critério das pessoas fazerem o que elas quiserem fazer”, disse ele. “Tenho o direito de aconselhá-las, e elas têm o direito de aceitar meu conselho ou deixá-lo de lado.”

Quando a audiência terminou, o presidente da estaca propôs excomungar William e Elias da Igreja por apostasia. O sumo conselho apoiou a proposta, e todos os presentes com exceção de seis pessoas — todas associadas a Elias e William — apoiaram a decisão.37

Capítulo 25

A dignidade de nosso chamado

Manchete de jornal com os dizeres “Reunião de grande indignação”

Em 30 de outubro de 1869, cinco dias após a reunião com o sumo conselho, Elias Harrison e William Godbe publicaram declarações no Utah Magazine negando as acusações de apostasia que pesavam contra eles. Eles acusaram os líderes da Igreja de tirania e reclamaram que os santos não eram livres para pensar nem agir por conta própria. Convencidos de que tinham ouvido espíritos lhes falarem em sessões mediúnicas, os dois acreditavam terem sido chamados para reformar a Igreja. Eles estavam determinados a continuar publicando sua revista e a recrutar santos para a causa deles.

“Saindo de nossos vales nas montanhas, ainda há de surgir um estandarte que ostente um credo mais amplo, um cristianismo mais nobre, uma fé mais pura do que jamais se viu na Terra”, prometeu Elias.1

Embora acautelasse os santos para que não lessem o Utah Magazine, Brigham Young não tomou medida alguma para calá-los.2 Nas quase quatro décadas em que estava na Igreja, ele tinha visto vários movimentos de oposição surgirem e desaparecerem sem sucesso duradouro. Enquanto Elias e William protestavam contra ele, Brigham partiu de Salt Lake City para visitar os assentamentos dos vales de Utah e Sanpete.

Ao viajar para o Sul, viu cidades florescentes onde antes havia pequenos fortes e casebres de adobe. Alguns santos gerenciavam oficinas e fábricas para produzir artigos manufaturados. Embora nenhuma cidade fosse totalmente autossuficiente, algumas tinham criado estabelecimentos comerciais cooperativos que estavam em funcionamento.3

Sempre que Brigham visitava um assentamento, os santos lhe apresentavam o que tinham de melhor, às vezes, realizando suntuosos banquetes. Ele aceitava de boa vontade essas refeições, mas preferia comida mais simples, que não exigisse tanto trabalho das pessoas que a preparavam. Anos antes, quando jantava com os santos em sua missão na Inglaterra, Brigham fazia uso apenas de uma simples xícara e um canivete, com uma fatia de pão como prato. Assim, levava menos de cinco minutos para limpar a mesa, dando aos santos mais tempo para conversarem.

Ao viajar pelo sul de Utah, porém, Brigham notou que muitas mulheres deixavam de assistir às reuniões da Igreja por estarem ocupadas preparando refeições elaboradas ou limpando a mesa após os banquetes.4 Também lamentou ver que muitos homens e mulheres abastados da Igreja tinham adotado um estilo de vida extravagante, às vezes, em detrimento de seu bem-estar espiritual. Brigham queria que todos os santos, inclusive ele próprio, resguardassem ou simplificassem seu estilo de vida.

“Os hábitos fúteis, os desperdícios extravagantes dos homens, são ridículos em nossa comunidade”, declarou ele.

Na Escola de Profetas, Brigham aconselhara aos homens que não seguissem a moda do mundo, mas que desenvolvessem seu próprio estilo com tecidos fabricados no território. Em outras ocasiões, ele aconselhou as mulheres a não confeccionarem vestidos ornamentados usando materiais caros dos estados do Leste, mas que, em vez disso, usassem panos fabricados no estado. Para ele, a extravagância geralmente incitava a competitividade entre os santos e lhes roubava tempo de seu desenvolvimento espiritual. Ele sentia que aquela era uma atitude mundana, incompatível com o espírito cooperativo de Sião.5

Essa preocupação ocupava a mente de Brigham quando sua comitiva chegou a Gunnison, uma cidade que ficava no extremo sul do vale de Sanpete. Ele falou com Mary Isabella Horne, uma moradora de Salt Lake City que tinha ido visitar seu filho naquela cidade. Mary Isabella era conhecida como uma líder fiel e determinada das mulheres da Igreja. Tal como Brigham, ela era membro da Igreja desde a década de 1830 e havia suportado muitas privações pela causa do evangelho. Agora, ela era presidente da Sociedade de Socorro da Ala Salt Lake City XIV.6

“Irmã Horne, vou lhe dar uma designação para começar quando voltar para casa: a missão de ensinar o resguardo para as esposas e filhas de Israel”, disse Brigham. “Não é certo que passem tanto tempo preparando alimentos e se adornando, e negligenciem sua educação espiritual.”

Mary Isabella ficou relutante em aceitar a responsabilidade. Ensinar o resguardo significava incentivar as mulheres a simplificarem seu trabalho e padrão de vida. Mas as mulheres geralmente encontravam propósito, satisfação e valor ao prepararem boas refeições e ao confeccionarem belas roupas para si mesmas e para a família. Ao desafiá-las a simplificar o trabalho, Mary Isabella estaria lhes pedindo que mudassem o modo como elas viam a si mesmas e sua contribuição para a comunidade.7

No entanto, Brigham pediu que ela aceitasse a missão, acreditando que isso daria às mulheres mais oportunidades de crescerem espiritualmente. “Convoque as irmãs da Sociedade de Socorro a se reunirem e lhes peça que comecem uma reforma na alimentação e nos serviços domésticos”, disse ele. “Quero estabelecer uma sociedade cujas integrantes concordem em ter um bom e leve desjejum pela manhã, para si mesmas e para seus filhos, sem ficarem cozinhando 40 tipos diferentes de pratos.”

Embora ainda estivesse insegura em relação a como cumprir essa missão, Mary Isabella aceitou o chamado.8


Por volta dessa época, James Crockett viajou até Kirtland, Ohio, com seu primo William Homer. James não era santo dos últimos dias, mas William tinha acabado de concluir uma missão na Europa e planejava visitar os antigos locais de coligação dos santos antes de retornar para casa em Utah. Kirtland ficava a menos de 160 quilômetros da casa de James, e os primos decidiram fazer a viagem juntos.

Em Kirtland, William quis visitar Martin Harris, uma das três testemunhas do Livro de Mórmon, que agora trabalhava, por iniciativa própria, como cuidador do Templo de Kirtland. O filho de Martin se casara com a irmã de William, e William esperava persuadir o homem idoso a se reunir com a família no território de Utah.

No entanto, a relação de Martin com a Igreja estava fragilizada. Após o colapso da Sociedade de Previdência de Kirtland, mais de 30 anos antes, Martin havia se voltado contra Joseph Smith e vagueado de um grupo de ex-santos dos últimos dias para outro. Na década de 1850, quando sua esposa, Caroline, emigrara para Utah com os filhos, ele se recusara a acompanhá-la.

Após chegarem a Kirtland, James e William foram procurar Martin em seu chalé. Ele era um homem pequeno e malvestido, de rosto enrugado e uma expressão de descontentamento no olhar. William se apresentou dizendo que era um missionário de Utah e cunhado do filho de Martin.

“Você é um dos ‘mórmons’ brighamitas?”, resmungou Martin.9

William procurou transmitir notícias de sua família em Utah, mas Martin não parecia escutá-lo. Em vez disso, ele perguntou: “Querem ver o templo?”

“Se pudermos”, respondeu William.

Martin pegou uma chave e levou James e William ao templo. O lado de fora do prédio estava em boas condições. O revestimento das paredes externas ainda estava intacto, e o prédio tinha um telhado novo e algumas janelas novas. Por dentro, porém, James viu que o revestimento do teto e das paredes estava descascando, e uma parte do madeiramento estava manchada e estragada.

Caminhando de sala em sala, Martin testificou dos acontecimentos sagrados ocorridos no templo. Porém, ficou cansado depois de um tempo, e eles pararam para descansar.

“Ainda acredita que o Livro de Mórmon é verdadeiro e que Joseph Smith foi um profeta?”, perguntou William a Martin.

O velho homem pareceu subitamente ganhar vida. “Eu vi as placas. Eu vi o anjo. Eu ouvi a voz de Deus”, declarou ele, com uma voz vibrante de sinceridade e convicção. “Eu duvidaria de minha própria existência antes de duvidar da autenticidade divina do Livro de Mórmon ou do chamado divino de Joseph Smith.”

O testemunho eletrizou a sala. Embora tivesse viajado a Kirtland na condição de descrente, James ficou emocionado com o que ouviu. Num instante, Martin pareceu se transformar, deixando de ser um velho amargurado para se tornar um homem de nobres convicções, inspirado por Deus e investido de conhecimento.

William perguntou a Martin como ele podia prestar um testemunho tão vigoroso após abandonar a Igreja.

“Nunca abandonei a Igreja”, disse Martin. “Foi a Igreja que me abandonou.”

“Não gostaria de voltar a ver sua família?”, perguntou William. “O presidente Young certamente ficaria muito feliz em fornecer meios para levá-lo a Utah.”

Martin zombou. “Ele não faria nada que fosse certo.”

“Envie-lhe uma mensagem por meu intermédio”, disse William.

Martin pensou na oferta. “Fale com Brigham Young”, disse ele. “Diga-lhe que eu gostaria de visitar Utah, minha família, meus filhos. Eu ficaria feliz de receber ajuda da Igreja, mas não quero favores pessoais.”

William concordou em levar a mensagem, e Martin se despediu dos visitantes. Quando os primos saíram dali, James pôs as mãos nos ombros de William e o fitou direto nos olhos.

“Há algo dentro de mim dizendo que aquele homem dizia a verdade”, declarou ele. “Sei que o Livro de Mórmon é verdadeiro.”10


Enquanto William Homer retornava ao território de Utah com a mensagem de Martin, os legisladores de Washington, D.C., estavam propondo novas leis para fortalecer a lei Morrill contra a bigamia, de 1862. Em dezembro de 1869, o senador Aaron Cragin propôs um projeto de lei que, entre outras coisas, negaria aos santos o direito de serem julgados por um júri nos casos de poligamia. Mais tarde naquele mês, o deputado Shelby Cullom apresentou outro projeto de lei que processaria e prenderia os santos dos últimos dias que praticassem o casamento plural, e lhes negaria cidadania.11

Em 6 de janeiro de 1870, três dias após uma cópia do projeto de lei Cullom chegar ao território de Utah, Sarah Kimball e as mulheres da Sociedade de Socorro da Ala Salt Lake City XV se reuniram no segundo andar de seu salão da Sociedade de Socorro para planejar um protesto contra as leis propostas. Elas acreditavam que as leis antipoligamia violavam a liberdade religiosa, desrespeitavam a consciência dos santos e procuravam denegri-los.

“Seríamos indignas do nome que portamos e do sangue que corre em nossas veias”, disse ela, “se permanecêssemos caladas enquanto um projeto de lei tão infame se encontra na câmara dos deputados”.12

As mulheres rascunharam resoluções para usar sua influência moral e impedir a aprovação dos projetos de lei. Expressaram sua indignação contra os homens que apresentaram as leis ao congresso e resolveram pedir ao governador de Utah que concedesse direito a voto para as mulheres do território. Também resolveram enviar duas representantes femininas a Washington, D.C., que tentariam influenciar os políticos em favor dos santos.

Após uma hora de reunião, Eliza Snow chegou ao salão para dar seu apoio. Ela acreditava que as irmãs da Sociedade de Socorro tinham para consigo mesmas e para com sua família o dever de defender a Igreja e seu estilo de vida. Com muita frequência, as pessoas que criticavam a Igreja usavam jornais de grande circulação, caricaturas satíricas, romances e discursos para retratar as mulheres de Utah como pobres e oprimidas vítimas do casamento plural. “Devemos nos elevar à altura da dignidade de nosso chamado e falar por nós mesmas”, disse ela às mulheres.13

Fazia frio e nevava na semana seguinte, porém mais de 3 mil mulheres enfrentaram as condições climáticas em 13 de janeiro para se reunirem no antigo tabernáculo de adobe, em Salt Lake City, para uma “Reunião de grande indignação” a fim de protestar contra os projetos de lei Cragin e Cullom. Sarah Kimball presidiu a reunião. Com exceção de uns poucos repórteres, não havia homens presentes.

Depois do início da reunião, Sarah subiu ao púlpito. Embora as mulheres de todo o país com frequência se manifestassem publicamente em questões políticas, em especial no tocante ao sufrágio feminino e à abolição da escravatura, isso ainda era algo controverso de se fazer. Mas Sarah estava determinada a proclamar em público a opinião das mulheres santos dos últimos dias. “Acaso transgredimos alguma lei dos Estados Unidos?”, perguntou ela à multidão ali reunida.

“Não!”, gritaram as mulheres.

“Então, por que estamos aqui hoje?”, perguntou Sarah. “Temos sido compelidas a ir de um lugar para o outro, e por quê? Simplesmente por acreditarmos nos conselhos de Deus e os colocarmos em prática conforme se encontram no evangelho do céu.”14

Um comitê formado por várias presidentes de Sociedade de Socorro — incluindo Mary Isabella Horne, Rachel Grant e Margaret Smoot — apresentou uma declaração formal de protesto contra os projetos de lei antipoligamia. “Em união, exercemos todo o poder moral e todo o direito que herdamos como filhas de cidadãos americanos”, declararam elas, “para impedir a aprovação desses projetos de lei, sabendo que eles inevitavelmente imporiam um estigma a nosso governo republicano, colocando em risco a liberdade e a vida de seus mais leais e pacíficos cidadãos”.15

Outras mulheres se manifestaram vigorosamente na reunião. Amanda Smith descreveu como seu marido e filho tinham sido mortos e como outro filho tinha sido ferido no massacre de Hawn’s Mill, três décadas antes. “Defendamos a verdade mesmo que morramos por isso”, clamou ela, fazendo irromper aplausos no tabernáculo.

Phebe Woodruff condenou os Estados Unidos por negarem liberdade religiosa aos santos. “Se os governantes de nossa nação se afastaram tanto do espírito e da letra de nossa gloriosa constituição a ponto de privarem nossos profetas, apóstolos e élderes do direito à cidadania e os prenderem por obedecer a essa lei”, declarou ela, “que nos concedam este nosso último pedido, tornando as prisões grandes o suficiente para conter as esposas, porque, aonde quer que eles forem, iremos também”.

Eliza Snow falou por último. “Meu desejo é que, como mães e irmãs em Israel, defendamos a verdade e a retidão e apoiemos aqueles que pregam isso”, declarou ela. “Sejamos mais enérgicas no aprimoramento de nossa mente e desenvolvamos uma força de caráter moral que não possa ser superada na face da Terra.”16


Nos dias subsequentes, os jornais de todo o país publicaram reportagens completas da Reunião de grande indignação.17 Pouco tempo depois, o Deseret News publicou discursos feitos em outras reuniões de indignação realizadas nos assentamentos de todo o território. Como os projetos de lei Cragin e Cullom caracterizavam o casamento plural como um tipo de escravidão, muitas mulheres que falaram nessas reuniões enfatizaram seu direito de se casarem com o homem que escolhessem.18

Nas reuniões da assembleia legislativa territorial, enquanto isso, Joseph F. Smith e outros membros da câmara dos deputados de Utah estavam ponderando a questão do direito de voto para as mulheres no território.19 Os Estados Unidos estavam no processo de conceder o direito de voto a todos os cidadãos do sexo masculino, inclusive aos ex-escravos. Mas, em todo o país, somente o território de Wyoming permitia que as mulheres votassem apesar de um crescente movimento nacional para que todos os cidadãos acima de 21 anos tivessem o direito de voto.20

Vários meses antes, alguns legisladores dos Estados Unidos tinham proposto a concessão do direito de voto às mulheres de Utah, seguros de que elas votariam de modo a tornar o casamento plural ilegal. No entanto, muitos santos do território, tanto homens quanto mulheres, apoiavam o sufrágio feminino, porque confiavam que isso fortaleceria a capacidade dos santos de criarem leis que preservassem a liberdade religiosa em sua própria comunidade.21

Em 29 de janeiro de 1870, Joseph participou de uma reunião da Escola dos Profetas de Salt Lake City, na qual Orson Pratt, seu colega apóstolo e um dos líderes da assembleia legislativa territorial, manifestou seu apoio ao sufrágio feminino. A assembleia legislativa votou unanimemente a favor da aprovação do projeto de lei vários dias depois. Joseph, então, enviou uma cópia oficial do projeto de lei ao governador em exercício, que o assinou, tornando-o lei.22

Embora a nova lei que concedia o direito de voto às mulheres fosse motivo de comemoração, ela pouco fez para aliviar a ansiedade dos santos em relação aos projetos de lei contra a poligamia que estavam sendo analisados em Washington e que o congresso dos Estados Unidos poderia aprovar quer os eleitores de Utah os apoiassem ou não.23

Algo que aumentava essa ansiedade era a crescente oposição à Igreja que se originava dentro do território. Os primos de Joseph, Alexander e David, tinham partido de Utah alguns meses antes, mas a missão deles teve menos sucesso do que esperavam.24 No entanto, William Godbe e Elias Harrison tinham recentemente organizado seus seguidores na “Igreja de Sião”, proclamando-se fundadores de um “Novo Movimento” para reformar a Igreja e o sacerdócio.25 Também deram início a um jornal, o Mormon Tribune, e se alinharam com comerciantes da cidade a fim de formar o “Partido Liberal” para combater o domínio político dos santos no território.26

Em meio a essa resistência, Joseph e os outros apóstolos continuaram a apoiar a liderança de Brigham Young. “Se Deus tiver qualquer revelação a dar aos homens”, testificou Wilford Woodruff à Escola dos Profetas, “não dará a mim nem a Billy Godbe, mas ela virá pelo presidente Young. Ele falará por intermédio de Seu porta-voz”.27

Alguns homens abdicaram de sua condição de membros da escola para se unirem ao Novo Movimento. E outros, inclusive o outrora fiel missionário T. B. H. Stenhouse, estavam começando a vacilar.28

Em 23 de março, a câmara dos deputados dos Estados Unidos aprovou o projeto de lei Cullom e o enviou ao senado para aprovação. Três dias mais tarde, depois que as alarmantes notícias chegaram a Salt Lake City, alguns homens da Escola dos Profetas temeram a iminência de um conflito com os Estados Unidos.

George Q. Cannon as advertiu para que fossem cautelosas. “O espírito de contenda parece ser facilmente trazido à tona quando convocado pelas circunstâncias”, afirmou ele. “Que refreemos nossa língua para que não sejamos culpados de falar com insensatez.”

Daniel Wells, conselheiro na Primeira Presidência, acreditava que era sensato se prepararem em sigilo para uma luta. Mas ele questionava abertamente se os santos não haviam atraído essa oposição sobre si mesmos por deixarem de viver os princípios da cooperação. “Quantos, até mesmo desta escola, estão comerciando hoje com nossos inimigos declarados nesta cidade e os apoiando, em vez de apoiarem os servos de Deus em seus conselhos?”, perguntou ele. “Arrependamo-nos e ajamos melhor.”29

Joseph F. Smith fez eco a essas palavras em uma carta enviada a sua irmã Martha Ann. “Eu não teria preocupações na mente se não fosse pelo fato de que não creio que tenhamos, como povo, vivido tão próximos a Deus quanto deveríamos”, escreveu ele. “Pode ser que o Senhor tenha um flagelo preparado para nós por esse motivo.”30


Quando Mary Isabella Horne retornou a Salt Lake City, recrutou Eliza Snow e Margaret Smoot para ajudá-la com sua nova missão de resguardo. Convidou mais de uma dezena de presidentes de Sociedade de Socorro a sua casa e pediu que Eliza e Margaret trabalhassem com Sarah Kimball para esboçar princípios orientadores para a Sociedade de Resguardo Mútuo das Damas. Conforme instruídas, elas criariam uma sociedade para ajudar as mulheres da Igreja a simplificarem as refeições e a moda, o que por sua vez lhes permitiria ter mais tempo para se concentrarem no crescimento espiritual e intelectual.

Mary Isabella acreditava que o resguardo colocaria todas as mulheres no mesmo nível social em toda a Igreja. Algumas mulheres hesitavam em fazer amizade com suas vizinhas mais ricas, sentindo-se envergonhadas por não poderem servir pratos e alimentos elaborados. Mary Isabella queria que as mulheres se sentissem à vontade para socializarem e aprenderem umas com as outras. Ela acreditava que qualquer mesa servida com alimentos saudáveis era respeitável, por mais simples e comum que parecesse.31

Conforme o princípio do resguardo se enraizava entre as mulheres da Igreja, Susie Young, que era filha de Brigham Young e tinha apenas 14 anos, percebeu que as esposas de seu pai estavam usando roupas mais simples e preparando refeições menos sofisticadas. Porém, ela e suas irmãs gostavam de usar vestidos enfeitados com fitas, botões, laços e rendas caras, vendidos em lojas.32

Certa noite, em maio de 1870, após a oração familiar, seu pai falou com algumas das filhas na Lion House, a respeito da criação de uma associação de resguardo. “Quero que vocês elevem seus padrões”, pediu Brigham. “Resguardem-se de tudo o que é mau e inútil, e aperfeiçoem-se em tudo o que é bom e belo. Não quero que sejam infelizes, mas que vivam de tal maneira que sejam verdadeiramente felizes nesta vida e na próxima.”33

Nos dias que se seguiram, Eliza instruiu as moças em relação aos princípios do resguardo e lhes pediu que removessem os ornamentos desnecessários das roupas. O resultado não foi nada elegante. Onde antes havia laços e fitas, agora havia marcas no tecido não desbotado. Se o resguardo visava a fazer com que elas se parecessem diferentes do resto do mundo, estava tendo sucesso.34

Ainda assim, Susie e as irmãs entenderam que o resguardo, tal como a cooperação, tinha o objetivo de dar aos santos um novo padrão de vida, desenlaçando-os das modas e dos estilos que os distraíam para que ficassem livres para viver os mandamentos com todo o empenho do coração.35

Poucos dias após a reunião com o pai, algumas das irmãs de Susie organizaram a primeira divisão de jovens damas da Associação de Resguardo Mútuo das Damas. Aceitando como integrantes tanto jovens casadas quanto solteiras, elas resolveram se vestir com recato, apoiar umas às outras nas boas obras e ser um bom exemplo para o mundo. Ella Empey, uma das irmãs casadas de Susie, foi escolhida para ser a presidente, e Susie foi apresentada no dia seguinte como repórter geral da sociedade.36

“Como a Igreja de Jesus Cristo se assemelha a uma cidade estabelecida no alto de um monte para ser um facho de luz para todas as nações”, decidiram elas, “é nosso dever dar o exemplo para as pessoas, em vez de buscar moldar nossa vida segundo o padrão delas”.37

Capítulo 26

Para o benefício de Sião

Plantas do Templo de St. George

Durante a primavera e o verão de 1870, o resguardo se espalhou de Salt Lake City para as Sociedades de Socorro de todo o território — mesmo nas comunidades rurais nas quais os santos já tinham uma vida simples. Ávidas para acompanhar suas irmãs da cidade, a presidente Elizabeth Stickney e as mulheres da Sociedade de Socorro de Santaquin realizaram um piquenique no prédio de sua escola. Prepararam uma refeição simples de pão preto e sopa de feijão, desfrutaram a companhia umas das outras e fiaram 20 meadas de lã para tecidos de confecção doméstica.1

A necessidade de resguardo se tornou ainda mais essencial após outra infestação de gafanhotos ter assolado as plantações dos santos em muitos assentamentos. Durante uma reunião realizada em maio, na Escola dos Profetas de Salt Lake City, George A. Smith lamentou o fato de que poucas pessoas tivessem dado ouvidos ao repetido conselho da Primeira Presidência para que estocassem cereais. Ele comparou, então, os gafanhotos aos críticos da Igreja no governo local e nacional.

“Há muitos que esperam lucrar com nossa derrota e tirar proveito dos destroços que restarem dos mórmons”, disse ele. “Eles podem decidir enviar exércitos para cá a fim de nos destruir, espalhar-nos e tornar desertas nossas habitações, mas não provarão ser falsa nossa religião.”

Com o projeto de lei Cullom sendo analisado pelo senado, os olhos dos legisladores da nação estavam sobre os mórmons. George acreditava que os críticos de Salt Lake City estavam tentando voltar a opinião pública contra a Igreja, por isso aconselhou aos homens da escola que fossem pacientes e sábios e que não os ofendessem. Também os alertou a não recorrer a homens iníquos para liderar os santos.2

Embora George não tenha mencionado William Godbe e Elias Harrison pelo nome, era provável que eles estivessem entre os homens que ele tinha em mente. Depois de organizar sua Igreja de Sião, William e Elias mencionaram um “Homem vindouro” que lideraria seu Novo Movimento. William havia entrado em contato com Joseph Smith III, talvez para recrutar sua liderança, mas Joseph não se filiara à causa deles.3

Naquela primavera, porém, Amasa Lyman anunciou sua decisão de se unir à Igreja de Sião, imediatamente fazendo surgir rumores de que ele a lideraria. Amasa tinha sido desobrigado do Quórum dos Doze em 1867 por apostasia, e poucos se surpreenderam quando ele abraçou o Novo Movimento. No entanto, seu filho mais velho, Francis Lyman, ficou sem fala quando tomou conhecimento da decisão do pai. Ele procurou argumentar com Amasa, mas logo ficou triste demais para prosseguir. Saiu correndo da sala e chorou por horas.4

Brigham incentivou os membros da Escola dos Profetas a deixarem esses dissidentes em paz e a se absterem de criticá-los. Nesse ínterim, ele se comprometeu a continuar a edificar o reino de Deus. “Pretendo usar minha influência para fortalecer Israel até que reine Jesus, Aquele cujo direito é reinar”, declarou ele.

Em julho, ele pediu aos homens da Escola dos Profetas que compartilhassem sua visão da Expiação de Jesus Cristo. Depois de ouvir o testemunho deles, prestou testemunho do sacrifício do Salvador e reconheceu os perigos com que os santos se deparavam, inclusive o desafeto de antigos membros fiéis. “Temos o evangelho”, disse ele, “mas, se esperamos receber os benefícios dele, temos de viver de acordo com seus preceitos”.

Ele instou os homens a seguirem o conselho dos servos do Senhor, prometendo que Deus os abençoaria se assim o fizessem.5


Naquele verão, Martin Harris foi para Utah pela ferrovia transcontinental. Depois de ficar sabendo do desejo de Martin de viajar para o Oeste, Brigham Young ficou desejoso de auxiliar alguém que doara tanto tempo e dinheiro para a Igreja no passado. Ele pediu a Edward Stevenson, um missionário experiente, que coletasse doações para Martin e depois ajudasse o ancião a fazer a longa jornada desde Kirtland. “Vá buscá-lo”, instruiu Brigham, “mesmo que para isso eu tenha que gastar meu último dólar”.6

A chegada de Martin causou uma grande comoção em Salt Lake City embora ele não fosse o primeiro membro antigo da Igreja a ir para o território. Thomas Marsh, o presidente original do Quórum dos Doze, tinha sido rebatizado e ido para o Oeste 13 anos antes, com o coração cheio de pesar por ter abandonado a Igreja em 1838. Mas a condição de Martin como testemunha do Livro de Mórmon o diferenciava. Aos 87 anos de idade, ele era um dos últimos participantes vivos de alguns dos primeiros milagres da nova dispensação.7

Pouco depois de chegar à cidade, Martin visitou Brigham Young, e o profeta o convidou a falar no tabernáculo em 4 de setembro. Quando o dia chegou, Martin subiu ao púlpito e falou por 30 minutos, serenamente compartilhando sua busca pela verdade durante os reavivamentos religiosos ocorridos no final da década de 1810.8

“O Espírito me disse para não me filiar a nenhuma das igrejas, porque nenhuma tinha a autoridade do Senhor”, testificou ele. “O Espírito me disse que tanto fazia se eu mesmo me jogasse dentro da água ou fosse batizado em qualquer uma das seitas; assim permaneci aguardando até que a Igreja foi organizada por Joseph Smith, o profeta.”9

Nas semanas que se seguiram, Martin se reuniu com a esposa, os filhos e outros familiares que moravam no território. Seu irmão mais velho, Emer, falecera no ano anterior, em Cache Valley, no norte de Utah. Mas sua irmã viúva, Naomi Bent, morava em Utah Valley. Em 17 de setembro, ela foi com Martin até a casa de investiduras, onde Edward Stevenson o rebatizou, e depois Orson Pratt, John Taylor, Wilford Woodruff e Joseph F. Smith o reconfirmaram membro da Igreja. Martin e Naomi foram, então, batizados e confirmados a favor de vários de seus antepassados.10

No mês seguinte, Martin prestou testemunho da veracidade e da origem divina do Livro de Mórmon na conferência geral de outubro. Depois dele, George A. Smith subiu ao púlpito. “É extraordinário ouvirmos o testemunho de Martin Harris”, disse ele. “O Livro de Mórmon, porém, traz consigo suas próprias evidências. Cumpriu-se a promessa de que aqueles que fizerem a vontade de Deus conhecerão pela própria doutrina que ela é verdadeira.”

“Assim sendo”, disse ele, “o Livro de Mórmon tem milhares de testemunhas”.11


No final de novembro de 1870, Susie Young cantava e tocava violão ao viajar para o Sul em uma carruagem que rumava para St. George, um assentamento de santos no sul de Utah. Viajando com ela iam sua mãe, Lucy, e sua irmã caçula Mabel. Após ter morado por anos na agitada Lion House, elas estavam se mudando para uma casa própria em St. George. O pai de Susie, Brigham Young, estava indo para o sul de Utah também, mas não permanentemente. Tendo já quase 70 anos de idade, ele sofria de artrite e preferia passar o inverno no clima mais quente de St. George.12

Susie cantava, em parte, para alegrar o ânimo das pessoas que estavam na carruagem. Em 3 de outubro, poucos dias antes da conferência de outono da Igreja, ela e sua irmã de 18 anos, Dora, tinham saído silenciosamente da festa de aniversário da mãe para irem se encontrar com o noivo de Dora, Morley Dunford. Os três foram, então, procurar um ministro protestante — um dos vários que agora moravam no vale —, que casou Dora e Morley enquanto Susie assistia à cerimônia.

Para Susie, a fuga da irmã para se casar parecia algo saído de um romance ou uma peça de teatro emocionante. Mas isso deixou os pais arrasados. Dora estivera noiva de Morley por dois anos. Ele era um homem bonito e vinha de uma família de fiéis santos dos últimos dias comerciantes. No entanto, ele tinha problemas com bebidas, e Brigham e Lucy não achavam que ele seria um bom companheiro para a filha. De fato, um dos motivos de terem decidido mudar as filhas para St. George seria colocar Dora a quase 500 quilômetros longe de Morley.13

Mas o casamento de Dora significava que ela não iria se mudar para o Sul com o restante da família. Susie podia ver agora o quanto aquilo tinha deixado a mãe triste. Mesmo que Lucy cantasse e brincasse com as outras pessoas que estavam na carruagem, seus olhos revelavam sua tristeza. Susie tentou fazer o melhor que pôde para alegrar a mãe, mas nada parecia realmente ajudar.14

Sem ferrovias entre Salt Lake City e St. George, a viagem para o Sul levava 14 dias por estradas acidentadas.15 St. George ficava em um grande vale de rio, ladeada por penhascos vermelhos e rochosos. Em uma visita à região realizada uma década antes, Brigham tinha visto o vale e profetizado que uma cidade surgiria ali, com casas, torres e campanários. Pouco tempo depois, ele enviou o apóstolo Erastus Snow e mais de 300 famílias à região em uma missão de plantio de algodão, um produto agrícola cujo cultivo tivera certo sucesso nos assentamentos do sul de Utah.

Desde aquela época, os santos de St. George trabalharam arduamente para cumprir a profecia de Brigham. A região era extremamente quente durante grande parte do ano, sendo raro nevar. Dois rios próximos, após represados, forneciam água suficiente para cultivar plantações e pomares em meio à vegetação desértica. Quando chovia, às vezes, ela era torrencial, rompendo as represas dos colonos. A madeira também era escassa, por isso os santos construíam prédios de pedra e adobe. Muitos daqueles que tinham ido se estabelecer no vale partiram pouco depois de chegarem. Os que ali ficaram se apegaram a sua fé, confiando que o Senhor os ajudaria a estabelecer um lar.16

Os moradores tinham construído ruas, boas casas, um tribunal e um moinho de algodão nas proximidades. No centro da cidade, também construíram um imponente tabernáculo de arenito onde se reuniam e adoravam.17

Quando Susie e a família chegaram a St. George, instalaram-se em uma casa confortável da cidade e se apresentaram aos novos vizinhos. O pai, enquanto isso, despendia tempo analisando as necessidades do assentamento e dos santos de toda parte. Ainda faltavam anos para o término da construção do Templo de Salt Lake City, e a casa de investiduras, onde eram realizadas somente algumas das ordenanças do templo, era uma solução temporária para uma necessidade de longo prazo. Os santos precisavam de um templo em funcionamento, onde pudessem fazer convênios com o Pai Celestial e realizar todas as ordenanças necessárias para os vivos e para os mortos.18

Em janeiro de 1871, pouco antes de quando planejava viajar de volta para Salt Lake City, Brigham participou de um conselho dos líderes locais da Igreja na casa de Erastus Snow, que presidia a Igreja na região. Quase no término da reunião, Brigham perguntou aos homens o que eles achariam da construção de um templo em St. George.

Todos ficaram entusiasmados. “Glória! Aleluia!”, exclamou Erastus.19


Depois de voltar a Salt Lake City, Brigham escreveu a Erastus sobre seus planos para o novo templo. Seria menor e menos ornamentado do que o Templo de Salt Lake City. Seria feito de pedra, com revestimento interno e externo. Tal como o Templo de Nauvoo, teria uma única torre em uma das extremidades do telhado e uma pia batismal no subsolo.

“Desejamos que os santos do Sul unam seus esforços, tornando-se unos de coração e mente para a execução dessa obra”, escreveu ele.

Brigham ansiava por retornar a St. George no outono para iniciar a construção do templo,20 mas a Igreja em outras partes do território precisava de sua atenção. Ao longo do ano anterior, Amasa Lyman estivera pregando para a Igreja de Sião e participando de sessões espíritas nas quais médiuns alegavam falar em nome de Joseph e Hyrum Smith, do chefe Walkara e de outros santos falecidos. As pessoas relatavam ter ouvido barulhos ou visto uma mesa levitar nessas reuniões.21

Embora essas sessões espíritas tenham atraído alguns santos para o Novo Movimento, a maioria das pessoas desconfiava delas, e a Igreja de Sião em pouco tempo perdeu forças. Quando Brigham voltou para Salt Lake City, em fevereiro de 1871, o Novo Movimento já não era tanto uma organização religiosa, mas, sim, um grupo de pessoas que partilhava do objetivo de dar fim à influência da Igreja na região.

Em abril, os líderes do Novo Movimento mudaram o nome de seu jornal, que deixou de se chamar Mormon Tribune, passando a se chamar Salt Lake Tribune. Depois, em julho, dedicaram o Instituto Liberal, um espaçoso local de reuniões no qual pregavam sermões, realizavam sessões espíritas, davam palestras e realizavam reuniões políticas do Partido Liberal. O Novo Movimento também tinha conseguido afastar os antigos amigos de Brigham, T. B. H. e Fanny Stenhouse, que estiveram prestes a abandonar a Igreja por vários meses.22

O Novo Movimento, porém, representava uma ameaça menor para a Igreja do que James McKean, o novo juiz supremo nomeado para a Suprema Corte de Utah. O juiz McKean estava decidido a erradicar o que ele considerava ser uma teocracia em Utah. Na época de sua nomeação, o projeto de lei Cullom contra a poligamia não conseguira ser aprovado no senado, e o presidente dos Estados Unidos, Ulysses Grant, enviara McKean a Utah especificamente para fazer valer a lei antipoligamia já existente.23

“Neste país, um homem pode adotar qualquer religião que lhe agrade”, declarou o juiz McKean pouco depois de sua chegada, “mas ninguém pode violar nossas leis e usar a religião como desculpa”.24

No outono de 1871, cerca de um mês antes de quando planejava retornar a St. George, Brigham ficou sabendo que Robert Baskin, o promotor federal de Utah e um dos autores do projeto de lei Cullom, pretendia acusar a ele e a outros líderes da Igreja de vários crimes. Um ex-membro da Igreja chamado Bill Hickman até concordou em implicar Brigham e outros líderes da Igreja em um assassinato que Bill cometera durante a Guerra de Utah, 14 anos antes.25

Bill Hickman estava agora preso por outro assassinato e fez um acordo com o tribunal, que lhe seria clemente em troca de seu testemunho. Ele era um fora da lei, cuja palavra jamais teria valor em um tribunal imparcial, principalmente porque muitas pessoas de boa reputação conheciam os fatos do crime e negavam o envolvimento de Brigham. Ainda assim, John Taylor, que estivera com Joseph Smith na Cadeia de Carthage, pediu a Brigham que não colocasse a vida nas mãos do tribunal. Duvidando que teria o mesmo destino de Joseph, Brigham disse: “As coisas são totalmente diferentes do que eram naquela época”.26

As mudanças principiaram em 2 de outubro, quando um oficial dos Estados Unidos prendeu Brigham por ter mais de uma esposa. Daniel Wells e George Q. Cannon foram presos sob acusações semelhantes.

As prisões suscitaram uma enxurrada de rumores. Fora do território, os jornais predisseram que uma guerra civil irromperia em Salt Lake City e relataram que os santos tinham armas estocadas e que tinham posicionado um canhão no sopé das montanhas.27 Na verdade, as ruas de Salt Lake City estavam bem silenciosas. Os líderes da Igreja cooperaram com os agentes da lei, e advogados prepararam Brigham para responder às acusações no tribunal, na semana seguinte.28

Quando o dia chegou, a sala do tribunal estava lotada. Milhares estavam nas ruas do lado de fora do edifício público. Brigham chegou 15 minutos antes do juiz e esperou pacientemente, desarmando os críticos com sua serenidade.29

Depois que o juiz McKean chegou, os advogados de Brigham tentaram suspender a audiência, alegando que os líderes governamentais não tinham seguido os devidos procedimentos ao convocarem um grande júri sem nenhum membro da Igreja entre eles. Quando McKean lhes negou o pedido, os advogados tentaram encontrar falhas nas próprias acusações, esperando derrubá-las. Novamente o juiz lhes negou o pedido.30

Durante a audiência, McKean revelou que via o caso não como um julgamento da inocência ou culpa de Brigham, mas como uma batalha crucial em uma guerra entre as revelações dos santos e a lei federal. “Embora o caso em julgamento se intitule O povo contra Brigham Young”, declarou ele, “seu outro título real seria A autoridade federal contra a teocracia poligâmica”. Ele não estava interessado em ser um juiz imparcial. A seu ver, o profeta já era culpado.31

Presumindo que o julgamento não seria marcado até março, no próximo período de funcionamento do tribunal, Brigham partiu para St. George quase duas semanas depois. Poucos dias depois, foram emitidos mandados de prisão para ele e outros líderes da Igreja — dessa vez pela falsa acusação de assassinato.32


Em 9 de novembro de 1871, após vários dias frios e chuvosos, o tempo estava claro e agradável em St. George. Pouco ao sul da cidade, Susie Young estava no meio de uma grande multidão em um quarteirão recém-demarcado da cidade onde os santos tinham se reunido para realizar a cerimônia de abertura de terra para o templo.33

Brigham tivera poucas aparições públicas desde que chegara a St. George naquele outono. Estando enfermo e com a preocupação da audiência no tribunal, ele tinha de ser cauteloso. Algumas pessoas temiam que os delegados tentassem prendê-lo e o levar à força de volta para Salt Lake City. Naquela noite, ele ficou hospedado na casa de Erastus Snow, na qual homens armados ficaram de guarda para protegê-lo.34

No quarteirão do templo, Susie pegou lápis e papel, pronta para fazer anotações sobre a cerimônia. Antes de se mudar para St. George, ela tinha sido a melhor aluna de uma das estenógrafas do pai e tinha orgulho de ser uma repórter. De seu lugar no meio da multidão, ela podia registrar tudo o que acontecia. Podia ver facilmente o pai e a mãe juntos e a irmã Mabel segurando a mão da mãe.35

Depois que o coro cantou o hino de abertura, George A. Smith se ajoelhou e proferiu a oração dedicatória, pedindo ao Senhor que preservasse o profeta de seus inimigos e prolongasse seus dias. Susie, então, viu o pai e outros líderes da Igreja realizarem a abertura de terra no canto sudeste do quarteirão.

Os santos cantaram “Tal como um facho” e Brigham subiu em uma cadeira para que todos pudessem ouvi-lo dar instruções para o “Brado de Hosana”, uma solene saudação feita nas cerimônias de dedicação e nos eventos públicos desde a época do Templo de Kirtland.

A seu sinal, os santos ergueram a mão direita e bradaram três vezes: “Hosana, hosana, hosana a Deus e ao Cordeiro!”36


Poucas semanas depois, Brigham recebeu a notícia de que o juiz McKean tinha marcado o dia de seu julgamento para 4 de dezembro, mesmo sabendo que o profeta estava fora de Salt Lake City. Brigham estava relutante em deixar St. George, porém, e o juiz adiou o julgamento para o início de janeiro. Enquanto isso, Brigham consultou seus advogados e consultores sobre o curso de ação que deveria tomar. Sabia que seria preso assim que voltasse para Salt Lake City e estava agora mais preocupado com sua segurança do que antes. Queria garantias de que não seria morto enquanto estivesse sob custódia.37

Por algum tempo, pensou em se ocultar, como Joseph Smith fizera em Nauvoo. Assassinato era um crime grave e, se um júri tendencioso o considerasse culpado, ele seria executado. Mas, em meados de dezembro, seus advogados o instaram a voltar à cidade, confiantes de que ele estaria seguro. Os membros do Quórum dos Doze e outros amigos estavam divididos em relação ao assunto, mas concordaram que ele deveria agir como achasse melhor.38

Certa noite, Brigham sonhou que dois homens estavam tentando assumir o controle de uma grande congregação de santos. Ao acordar, soube o que precisava fazer. “Sinto que devo voltar para casa e dirigir a reunião, com a ajuda de Deus e de meus irmãos!”, disse ele a seus amigos.39

A caminho de Salt Lake City, Brigham parou em um pequeno assentamento a fim de passar a noite. Os santos estavam preocupados com sua decisão de comparecer ao julgamento, sabendo que o juiz McKean já praticamente o havia considerado culpado. Um homem chorou até soluçar quando soube o que Brigham pretendia fazer. O profeta entendeu seu temor, mas sabia qual era o curso de ação correto a tomar.

“Deus prevalecerá sobre tudo para o benefício de Sião”, disse ele.40

Capítulo 27

Como fogo na grama seca

Homem montado num cavalo e conduzindo outro cavalo

Nas semanas que antecederam o dia marcado para seu julgamento em janeiro de 1872, corria solto o rumor de que Brigham Young retornaria a Salt Lake City. Os promotores do território estavam certos de que Brigham preferiria se tornar um fugitivo da justiça do que se apresentar diante de um juiz.1

Contudo, no fim de dezembro, Daniel Wells recebeu uma carta urgente do profeta. Nela, Brigham informava: “Vamos nos colocar à disposição na hora designada para estar diante do tribunal”.2 No dia seguinte ao Natal, ele viajou mais de 110 quilômetros em meio à tempestade de neve a fim de se encontrar com Daniel em Draper, um vilarejo 30 quilômetros ao sul de Salt Lake City. De lá, embarcaram em um trem para o norte, e Brigham chegou em casa pouco antes da meia-noite.

Uma semana depois, um delegado dos Estados Unidos prendeu o profeta e o conduziu até o tribunal do juiz McKean. Brigham permaneceu calmo e confiante durante toda a audiência. Chamando atenção para sua idade avançada e seus problemas de saúde, os advogados do profeta solicitaram que ele fosse solto mediante o pagamento de fiança. McKean negou o pedido e colocou Brigham em prisão domiciliar.3

O julgamento estava marcado para ter início pouco tempo depois, e o Salt Lake Tribune previa que todos os jornais dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha publicariam os procedimentos. No entanto, o “Grande julgamento” foi adiado, a princípio por alguns dias, que logo se tornaram semanas. Brigham ficava em casa a maior parte do tempo, em geral sob a custódia de delegados. Porém, participou de alguns eventos sociais, como na ocasião em que foi acompanhado de um político a uma festa de aniversário surpresa para Eliza Snow, no edifício da Ala XIV.4

De Washington, D.C., George Q. Cannon enviava a Brigham relatórios frequentes sobre um caso que os santos haviam levado à Suprema Corte dos Estados Unidos, a mais alta instância do país. O caso alegava a ilegalidade praticada pelo juiz McKean, que deliberadamente excluía os santos dos grandes júris no território de Utah. Se a Suprema Corte fosse contrária à prática do juiz, todas as sentenças pronunciadas por júris impropriamente formados em Utah — inclusive aquelas contra o profeta — cairiam imediatamente por terra.5

A Suprema Corte votou o caso em abril. Tanto o juiz McKean quanto George estavam no tribunal para ouvir a sentença. Apesar de seus advogados estarem confiantes de que a corte seria favorável a eles, McKean parecia ansioso durante a leitura da decisão.6

“No geral”, declarou o juiz que presidia à seção, “somos da opinião de que o júri neste caso não foi selecionado e convocado em conformidade com a lei”.7

O juiz McKean saiu da sala reclamando da sentença e alegando que não havia feito nada de errado. Em pouco tempo, telegramas começaram a chegar a Utah. Todas as sentenças proclamadas por júris formados ilegalmente no território foram anuladas. Brigham Young estava livre.8

“A Suprema Corte se pôs acima dos preconceitos religiosos e das influências políticas”, disse George com euforia em uma carta para Brigham escrita naquele mesmo dia. Contudo, ele temia que a decisão da corte agravasse ainda mais a inimizade daqueles que perseguiam a Igreja.

“Não me surpreenderia”, afirmou George, “se redobrarem os esforços para aprovar legislações contra nós”.9


No mês de abril, santos de todas as partes do Havaí foram a Oahu para participar de uma conferência em Laie, o lugar de reunião que haviam usado nos últimos sete anos. Cerca de 400 membros viviam no assentamento ao longo do ano. Havia uma pequena capela, uma escola e uma grande fazenda onde os membros locais e os missionários de Utah cultivavam cana-de-açúcar.

Na conferência, 13 missionários locais testificaram sobre as recentes experiências que haviam vivido. Sob a direção de Jonathan Napela, que havia sido chamado para supervisionar o proselitismo no arquipélago, os missionários haviam batizado mais de 600 pessoas. O número de membros da Igreja no Havaí já ultrapassava os 2 mil.10

Cada élder prestou testemunho dos milagres que havia presenciado no campo missionário. O Senhor havia curado um homem paralítico após os missionários terem exercido fé e orado em seu favor.11 Outro homem, que havia quebrado o braço ao cair de uma mula, fora completamente curado ao ser abençoado por dois missionários. Outros élderes haviam ministrado diversas vezes a uma garotinha que não conseguia andar. Após cada bênção recebida, ela melhorou aos poucos, até que foi capaz de correr e brincar novamente.12

Depois da conferência, os missionários continuaram a pregar o evangelho e a curar os enfermos. Dentre os que buscaram seu auxílio, estava Keʻelikōlani, a governadora da maior ilha do arquipélago do Havaí. Ela pediu aos santos que orassem em favor de seu meio-irmão, o rei Kamehameha V, que estava à beira da morte. Napela conhecia bem o rei, então ele e H. K. Kaleohano, outro experiente élder da Igreja, foram ao palácio e se ofereceram para orar em favor dele.

“Ficamos sabendo de sua grande aflição”, disseram eles, “e desejamos sinceramente que sua saúde seja restaurada”. O rei aceitou a oferta, e os missionários se curvaram em reverência. Kaleohano então ofereceu uma fervorosa oração.

Quando o missionário terminou a prece, Kamehameha já tinha uma aparência bem melhor. Ele então contou aos élderes que alguns membros do governo estavam pressionando-o e exigindo que os santos fossem proibidos de pregar no arquipélago, mas ele não lhes havia dado ouvidos. A constituição do Havaí garantia ao povo o direito à liberdade religiosa, e ele fazia questão de assegurá-lo.

O rei teve então uma longa e agradável conversa com Napela e Kaleohano. Quando os élderes estavam prestes a sair, alguns homens chegaram trazendo peixe para a família do rei. Ao vê-los, Kamehameha apontou para Napela e Kaleohano e disse: “Não se esqueçam desses reis”.

Ele entregou a cada élder um cesto com peixes e se despediu.13


Mais ou menos na mesma época da conferência de abril em Laie, os jornais norte-americanos fervilhavam com a recente publicação de um livro sobre o casamento plural, escrito por Fanny Stenhouse, uma das mulheres mais proeminentes do Novo Movimento. Na obra, Fanny retratava as mulheres santos dos últimos dias como infelizes vítimas de opressão.14

As mulheres da Igreja ficaram chocadas diante daquela descrição. Acreditando que seria melhor que as mulheres santos dos últimos dias falassem por si mesmas, em vez de permitirem que outras falassem erroneamente por elas, a jovem Lula Greene, de apenas 23 anos, começou a publicar um jornal para mulheres em Utah. O periódico se chamava Woman’s Exponent.15

Lula era uma talentosa escritora e servia como presidente da Associação de Resguardo das Moças. Após publicar algumas poesias de Lula, o editor do Salt Lake Daily Herald queria que ela escrevesse para seu jornal. Porém, após a equipe do jornal relutar em contratá-la, ele sugeriu que ela fundasse seu próprio periódico.

Lula ficou intrigada com a ideia. As recentes reuniões de indignação haviam demonstrado a vigorosa influência que as mulheres santos dos últimos dias podiam exercer quando falavam sobre temas de seu interesse. No entanto, as mulheres tinham poucas oportunidades de expressar publicamente sua opinião não só dentro, mas também fora da Igreja. Além do que, grande parte das boas ações feitas pela Sociedade de Socorro e pela Associação de Resguardo passavam despercebidas, especialmente por aqueles de fora do território.

Lula compartilhou seus planos para a criação do jornal com Eliza Snow, que então pediu a opinião de Brigham Young, que era tio-avô de Lula. Ambos a apoiaram e a incentivaram a seguir em frente. A pedido de Lula, Brigham a designou em uma missão especial para servir como editora do jornal.16

O primeiro número do Woman’s Exponent foi publicado em junho de 1872. O periódico trazia notícias locais, nacionais e internacionais, bem como editoriais, poesias e relatos sobre as reuniões da Sociedade de Socorro e da Associação de Resguardo.17 Lula também publicava cartas das leitoras, proporcionando um espaço para que as mulheres santos dos últimos dias compartilhassem suas histórias e expressassem sua opinião.

Em julho, Lula publicou a carta de uma mulher inglesa chamada Mary, que contrastava sua dura vida como empregada doméstica em Londres e em Nova York com a vida que levava em Utah. “Nós, ‘mulheres mórmons’, temos o dever de escrever e dizer ao mundo — quer acreditem em nós ou não — que não somos as pobres e oprimidas criaturas que dizem que somos”, declarou ela. “Não fui oprimida aqui, mas vim por livre e espontânea vontade, assim como sou livre para partir, para trabalhar ou para permanecer.”

Por fim, acrescentou: “Gosto muito do Exponent. É feito com bom senso”.18


Enquanto isso, no norte de Utah, as tribos da nação indígena shoshone do Oeste estavam à beira da inanição. Quase 10 mil colonos brancos, a maioria deles santos dos últimos dias, estavam habitando as terras dos shoshone em Cache Valley e região, o que levou à escassez das fontes locais de alimento.19

Quando os santos chegaram a Cache Valley em meados da década de 1850, um líder shoshone chamado Sagwitch cultivou um bom relacionamento com os líderes locais da Igreja, em especial com o bispo Peter Maughan, que às vezes ajudava os shoshones do escritório do dízimo. Contudo, no final da década de 1850, a tensão entre os povos aumentou à medida que mais santos se estabeleceram no vale e os animais de caça foram rareando.

A fim de prover alimento para sua família, alguns shoshones começaram a pilhar o gado dos santos, como uma forma de compensação pelas terras perdidas e pelo esgotamento dos recursos naturais. Talvez numa tentativa de pôr um fim às pilhagens, mas, com certa relutância, os santos ofereceram aos shoshones farinha e carne. Porém, aquela oferta não compensou os transtornos causados pela mudança dos membros para Cache Valley.20

Naquela época, os shoshones também tinham confrontos com o governo dos Estados Unidos. O coronel Patrick Connor, comandante das tropas do exército americano alocadas em Salt Lake City, usava os confrontos como desculpa para atacar os shoshones. Numa manhã de janeiro de 1863, enquanto acampavam perto de Bear River, Sagwitch e seu povo acordaram sob o ataque de soldados. Os shoshones bateram em retirada para posições defensivas e tentaram combater o exército. Contudo, foram rapidamente cercados e atacados sem piedade.

Cerca de 400 shoshones, entre homens, mulheres e crianças, morreram no ataque àquele acampamento. Sagwitch sobreviveu ao episódio, assim como sua filha bebê e seus três filhos. No entanto, sua esposa, Dadabaychee, e dois enteados estavam entre os caídos.21

Logo após o ataque, santos de assentamentos nas proximidades chegaram para cuidar dos shoshones feridos. Porém, Sagwitch não confiava nos santos por causa do ataque. O exército havia sido guiado até os shoshones por Porter Rockwell, um santo dos últimos dias que às vezes era empregado como batedor do exército. Alguns santos de Cache Valley haviam assistido ao desenrolar do massacre do topo de uma colina nas cercanias, e outros haviam abrigado e alimentado o exército após o ataque. Até mesmo Peter Maughan, que descreveu as ações dos soldados como “inumanas”, acreditava que os shoshones haviam provocado a violência. E alguns santos até mesmo haviam declarado que o ataque era uma intervenção divina.22

Agora, quase uma década após o massacre, Sagwitch e seu povo ainda guardavam mágoas em relação aos colonos. A disposição que os santos mostravam de usar os recursos da Igreja a fim de prover alimentos e suprimentos para os shoshones foi capaz de ganhar de volta parte da confiança de outrora, mas a perda de inocentes, de terras e de recursos colocou os shoshones em uma situação desesperadora.23

Na primavera de 1873, um respeitado líder shoshone chamado Ech-up-wy teve uma visão em que três índios entravam em sua cabana. O mais alto deles — um homem belo e de ombros largos — disse-lhe que o Deus dos santos era o mesmo Deus adorado pelos shoshones. Com a ajuda dos santos, eles iriam construir casas, cultivar o solo e receber o batismo.

Na visão, Ech-up-wy também viu shoshones trabalhando em pequenas fazendas, tendo alguns homens brancos com eles. Um deles era George Hill, um santo dos últimos dias que havia servido missão entre os shoshones 15 anos antes. Ele falava s língua shoshone e às vezes distribuía alimentos e outras provisões entre eles.

Depois de ouvir sobre a visão de Ech-up-wy, um grupo de shoshones foi até a casa de George em Ogden.24


Quando acordou, George Hill se deparou com um grupo de shoshones do lado de fora de sua residência, esperando para falar com ele. Após cumprimentar os visitantes, o líder daqueles homens explicou a George que eles haviam aprendido, por meio de inspiração, que os santos eram o povo do Senhor. “Queremos que você venha para nosso acampamento para nos ensinar e nos batizar”, disse o homem.

George respondeu que não poderia batizá-los sem a permissão de Brigham Young. Desapontados, os shoshones partiram, mas posteriormente retornaram e pediram mais uma vez para serem batizados. Mais uma vez, George lhes contou que precisava esperar a orientação do profeta.25

Pouco depois, George se encontrou com Brigham em Salt Lake City. “Já faz algum tempo que carrego um peso sobre os ombros”, declarou Brigham. “Tentei deixá-lo para lá, mas a partir de agora eu o transmito a você. Será seu fardo de agora em diante. Quero que tome conta da missão aos índios em todo o norte do país.”

Ele aconselhou George a estabelecer um lugar de reunião para os shoshones e lhes ensinar a cultivar a terra. “Não sei exatamente como você fará isso”, ele declarou, “mas você encontrará um jeito”.26

No dia 5 de maio de 1873, George viajou de trem para uma cidadezinha quase 50 quilômetros a norte de Ogden. De lá, ele partiu a pé para o acampamento de Sagwitch, que ficava a 20 quilômetros. Após caminhar pouco mais de um quilômetro, um velho shoshone chamado Tig-we-tick-er se aproximou dele sorrindo. Ele comentou que, naquela manhã, Sagwitch havia profetizado que George visitaria seu acampamento.

Tig-we-tick-er então explicou a George como chegar ao acampamento e prometeu que voltaria logo para ouvi-lo pregar. No caminho, George encontrou dois outros shoshones, que também falaram sobre a profecia de Sagwitch. Maravilhado com aquilo, George se perguntou como Sagwitch poderia saber o dia e a hora exatos em que ele viria. Para ele, aquilo foi um sinal de que a obra do Senhor estava de fato começando entre os shoshones.

Pouco depois, George viu Sagwitch se aproximar a cavalo e conduzindo outra montaria. “Achei que você estaria cansado”, comentou Sagwitch, “então trouxe um cavalo para você”.

Eles cavalgaram juntos até o acampamento. Centenas de pessoas estavam aguardando para serem ensinadas. George pregou por quase duas horas e descobriu que muitos desejavam se unir à Igreja. Naquela tarde, ele batizou 101 shoshones, inclusive Sagwitch, e os confirmou à beira da água. Em seguida, ele partiu do acampamento bem a tempo de pegar o último trem para Ogden.27

No dia seguinte, George escreveu uma carta para Brigham Young. “Nunca me senti melhor na vida nem tive um dia mais feliz”, declarou ele. Também informou que, da mesma forma, os shoshones pareciam felizes e planejavam realizar reuniões de oração todas as noites. Após mencionar a difícil situação deles, George solicitou sacas de farinha para distribuir entre o povo.28

Ele também escreveu contando sobre os batismos para seu amigo Dimick Huntington, que também falava o idioma dos shoshones. “Meu único desejo é ter o Espírito de Deus comigo para me ajudar”, afirmou George, “para que eu seja capaz de realizar a obra que é requerida de minhas mãos”.

“Dimick, faça tudo a seu alcance para me ajudar”, rogou ele. “A obra está se espalhando como fogo na grama seca.”29


Mais ou menos na mesma época em que os shoshones do Norte abraçaram o evangelho, Jonathan Napela descobriu que sua esposa, Kitty, havia contraído hanseníase, ou lepra, e deveria ir para a ilha de Molokai. Na esperança de conter o avanço da doença no Havaí, o rei Kamehameha V havia estabelecido uma colônia em Molokai, na península de Kalaupapa, para isolar aqueles que mostrassem os sintomas da doença. Como a lepra era considerada incurável, o banimento para a colônia geralmente durava a vida toda.

Ansioso para não se separar de Kitty, Napela conseguiu um emprego em Kalaupapa, como o supervisor assistente da colônia. Seus deveres incluíam distribuir rações e enviar relatos frequentes para o conselho de saúde. Aquele emprego o colocava em contato com pessoas infectadas, o que aumentava suas chances de contrair a doença.

Quando ele e Kitty chegaram na colônia na primavera de 1873, Napela começou a pregar o evangelho e a realizar reuniões dominicais com os santos leprosos. Ele também fez amizade com o padre Damien, um sacerdote católico que servia em Kalaupapa, e com Peter Kaeo, membro da família real havaiana, o qual contraíra a doença e chegara pouco após Kitty e Napela.30

Na colônia, Peter vivia com relativo conforto, em um chalé com vista para a península. Ele tinha empregados, recebia presentes de sua abastada família e tinha pouco contato com o sofrimento na ilha. Quando soube que um homem havia morrido na colônia, Peter ficou chocado e comentou sobre isso com Kitty.

“Isso não é novidade”, respondeu ela. “Quase todos os dias morre alguém.”31

Em 30 de agosto de 1873, Peter acompanhou Napela durante a avaliação das necessidades das pessoas na colônia. O céu matinal estava nublado enquanto atravessavam a península em direção às cabanas e aos barracões onde as pessoas moravam. Napela parou em uma caverna e conversou com três homens, três mulheres e um pequeno garoto a respeito de suas rações. Peter ficou horrorizado. Por causa da doença, o rosto de alguns estava completamente desfigurado. Os dedos de outros haviam caído.

Depois, Napela e Peter encontraram uma mulher com uma perna extremamente inchada. Ela já estava em Molokai havia três anos e seu vestido e suas roupas de baixo estavam em farrapos. Napela lhe disse que, se fosse até a loja da colônia na segunda-feira, receberia roupas novas.

Em outubro, o conselho de saúde foi informado de que Napela estava dando comida para pessoas necessitadas na colônia, mas que não tinham autorização para receber as doações. Assim, ele foi demitido de seu emprego e recebeu ordens para deixar Kalaupapa. Napela imediatamente contou o ocorrido a Kitty. Pouco depois, Peter encontrou o casal e ambos estavam chorando. Kitty não andava muito bem, e Napela não queria deixá-la.32

Napela enviou uma petição ao conselho de saúde para que o deixassem ficar como cuidador de Kitty. “Jurei perante Deus que cuidaria de minha esposa na saúde e na doença, até que a morte nos separe”, escreveu ele. “Estou com 60 anos de idade e não tenho mais muitos anos de vida. Durante o tempo que me resta, quero estar com minha esposa.”

Sua solicitação foi aprovada pelo conselho.33


Em dezembro de 1873, após anos trabalhando a favor da Igreja e de Utah em Washington, D.C., George Q. Cannon foi designado como representante do território na câmara dos deputados dos Estados Unidos.34 George havia se preparado espiritualmente para aquele momento. Na noite anterior, ele se sentira fraco e desamparado, mas, após orar buscando auxílio, sentiu-se abençoado com alegria, consolo e força.

“Aqui estou entre homens que não têm compaixão nenhuma por mim”, escreveu ele em seu diário, “mas tenho um Amigo que é mais poderoso do que todos eles. Nisto me regozijo”.35

No começo da década de 1870, a opinião pública a respeito da Igreja nos Estados Unidos nunca havia sido tão desfavorável. O presidente Ulysses Grant estava determinado a acabar com a prática do casamento plural em Utah, tendo inclusive prometido que os trâmites para elevar o território à condição de estado ficariam suspensos até que a situação se resolvesse. Na primavera de 1874, o senador Luke Poland apresentou outro projeto de lei que tinha por objetivo fortalecer o Ato Morrill antibigamia, reivindicando maior controle sobre as cortes de Utah.36

Enquanto isso, Fanny e T. B. H. Stenhouse continuavam a publicar críticas contra a Igreja e a falar contra o casamento plural em todo o país.37 Da mesma forma, Ann Eliza Young, ex-esposa plural de Brigham Young, que o havia processado exigindo o divórcio, havia começado a fazer palestras denunciando a Igreja. Após uma apresentação em Washington, D.C., na qual Ann Eliza condenou a eleição de George Q. Cannon para o Congresso, o presidente Grant falou com ela e apoiou francamente suas opiniões.38

George jejuou e orou suplicando orientação a fim de tentar usar sua influência para barrar o Projeto de Lei Poland. Ele também buscou ajuda de alguns aliados. Recentemente, Thomas Kane e sua esposa, Elizabeth, haviam passado o inverno com Brigham Young em Utah. Influenciada por livros e reportagens jornalísticas hostis, Elizabeth chegou ao território crendo que encontraria mulheres oprimidas e desesperadas. Em vez disso, encontrou mulheres sinceras e gentis, que eram devotadas a sua religião. Pouco após a viagem, Elizabeth publicou um livro com suas impressões a respeito dos santos. Ela retratou os santos com justiça apesar de continuar se opondo ao casamento plural.

Graças, em parte, ao livro de Elizabeth, George persuadiu os outros deputados a amenizarem alguns trechos do Projeto de Lei Poland. Porém, seus esforços não impediram que o presidente Grant assinasse o documento em meados de junho.39

Durante aquele verão e o outono, William Carey, promotor dos Estados Unidos em Utah, tomou as medidas necessárias para processar santos conhecidos por praticar o casamento plural. George retornou para Utah nesse período e, em outubro, foi preso sob acusações relacionadas a seus múltiplos casamentos. Prevendo que mais santos seriam presos, os líderes da Igreja decidiram fazer um teste com um caso judicial para verificar a legalidade da lei Morrill antipoligamia.

Entrando em acordo com Carey, ficou combinado que ele condenaria um homem por poligamia a fim de que os advogados da Igreja pudessem apelar e levar o caso para uma instância superior. Em contrapartida, o promotor federal prometeu que não iria processar mais ninguém até que o caso teste fosse concluído. Os líderes da Igreja esperavam que a corte superior decidiria que a lei antipoligamia violava os direitos religiosos dos santos e que assim a condenação fosse revogada.

George Q. Cannon foi liberado sob fiança pouco após ser preso. Naquela noite, ele encontrou George e Amelia Reynolds passeando na rua ao sul da quadra do templo. George Reynolds era um membro britânico que servira como secretário de Brigham Young. Naquele verão, ele havia se casado com Amelia, sua primeira esposa plural. Conhecendo bem Reynolds, George Cannon recomendou-o como o candidato ideal para contestar a lei antipoligamia.

Reynolds concordou. Como o caso teste só poderia avançar se ele fosse condenado, Reynolds rapidamente forneceu uma lista de pessoas que poderiam testemunhar contra ele no tribunal. Pouco depois, ele foi preso por bigamia. O juiz então o liberou sob fiança e fixou uma data para seu julgamento.40

Capítulo 28

Até a vinda do Filho do Homem

Templo de St. George

Em 19 de junho de 1875, Brigham Young partiu de Salt Lake City em visita aos assentamentos na região central de Utah.1 Ele tinha acabado de completar 74 anos de idade, de modo que estava sendo cada vez mais difícil viajar. A cada passo que dava, suas juntas doíam por causa da artrite. Apesar disso, a visita aos assentamentos o aproximou dos santos ao mesmo tempo em que o afastou das dificuldades jurídicas que a Igreja vinha enfrentando.

Após a condenação de George Reynolds por bigamia, o promotor dos Estados Unidos, William Carey, quebrou a promessa feita aos líderes da Igreja e acusou George Q. Cannon do mesmo crime. O caso de George Cannon foi posteriormente arquivado, mas Reynolds foi julgado e condenado, pagou 300 dólares de fiança e ainda passou um ano na prisão. Contudo, a suprema corte do território anulou a condenação de Reynolds, pois seus advogados conseguiram provar que ele havia sido julgado por um júri ilegalmente constituído. Com a libertação de Reynolds, os promotores juraram que iriam levá-lo a julgamento novamente.2

Além disso, a ex-esposa plural de Brigham, Ann Eliza Young, havia unido forças com críticos da Igreja e processara o profeta exigindo o divórcio. Contudo, quando ela demandou mais de 200 mil dólares em pensão e outras indenizações, os advogados de Brigham rejeitaram o acordo, acreditando ser excessivo. Eles também alegaram que Ann Eliza não podia se divorciar de Brigham perante um tribunal, pois os Estados Unidos não reconheciam a legalidade do casamento plural. Ainda assim, o juiz James McKean decidiu a favor de Ann Eliza e enviou Brigham para passar uma noite na cadeia, pois a pedido dos advogados ele havia se recusado a efetuar o pagamento até que o caso fosse apelado diante de uma instância superior.

Jornais de todo o país interpretaram as ações do juiz como uma manobra para constranger Brigham, motivo pelo qual criticaram McKean e o ridicularizaram. Poucos dias depois, o presidente dos Estados Unidos colocou outro juiz em seu lugar, e Brigham então pagou 3 mil dólares a Ann Eliza em custas judiciais.3

Dois dias após partir de Salt Lake City, Brigham e seus companheiros de viagem se reuniram com a Sociedade de Socorro em Moroni, um pequeno vilarejo em Sanpete Valley. Eliza Snow e Mary Isabella Horne, que viajavam no grupo, incentivaram as mulheres a continuarem cooperando e a serem autossuficientes em questões econômicas. Mary Isabella as exortou a colocar o reino de Deus em primeiro lugar em sua vida. “Devemos trabalhar”, afirmou ela, “por aquilo que desejamos receber”.

Em seguida, Eliza falou sobre educação religiosa. Algumas famílias em Sanpete Valley estavam enviando seus filhos para uma nova escola administrada por um missionário de outra religião, de modo que os líderes da Igreja tinham receio de que suas lições contradissessem aquilo que as crianças estavam aprendendo com os pais e com a Igreja.

“Sião deve ser o lugar em que os filhos de Sião são educados”, Eliza reiterou às mulheres. “Deixem que seus filhos percebam que sua religião é sua principal preocupação.”4

Em outros assentamentos em Sanpete, Brigham incentivou os santos a adotar um sistema econômico mais cooperativo. Dois anos antes, uma depressão havia assolado a nação e atingido a economia de Utah. No entanto, diversas lojas e indústrias cooperativas do território haviam suportado bem a crise financeira, o que fortaleceu a crença de Brigham na cooperação.

Desde essa época, ele vinha exortando os santos a viverem como o povo de Enoque vivera antigamente: sendo unos de coração e vontade, e sem que houvesse pobres entre eles.5 Tal sistema, conhecido como a Ordem Unida de Enoque, evocava a revelação do Senhor acerca da lei da consagração. Os membros da ordem deviam cuidar uns dos outros como uma família, contribuindo livremente com seu trabalho e suas posses a fim de promover as indústrias do território e fomentar a economia local.

Muitos santos já haviam organizado a ordem unida em sua comunidade. Ainda que a estrutura das ordens diferisse em cada comunidade, elas compartilhavam valores tais como a cooperação econômica, a autossuficiência e a frugalidade.6

Numa reunião com os santos de Sanpete, o apóstolo Erastus Snow explicou como a Ordem Unida havia abençoado os santos no sul de Utah. “Há uma tendência entre nós de trabalhar de uma maneira egoísta, que geralmente enriquece poucos às custas da pobreza de muitos”, observou ele. “É uma tendência maligna em si mesma.”

Naquele mesmo dia, Brigham complementou: “A Ordem Unida existe para aprendermos a lidar com as propriedades que temos e para devotarmos a nós próprios para a concretização dos desígnios de Deus”.7

Antes de finalizar a viagem por Sanpete, Brigham falou aos líderes locais da Igreja. “Podemos construir templos aqui mais baratos que o de Salt Lake”, ele declarou. “Vocês acham que conseguem se responsabilizar pela construção de um templo aqui?”

Todos os homens no recinto ergueram a mão em sinal de apoio e chegaram ao consenso de que o profeta deveria escolher o local. Brigham havia visitado muitos possíveis locais e, no dia seguinte, anunciou sua decisão.

“Devo-lhes dizer que o Espírito claramente me indica que o lugar para o templo é na colina que se projeta em direção a Manti”, afirmou.8


Quando Brigham retornou da região central de Utah, um homem chamado Meliton Trejo estava em Salt Lake City traduzindo o Livro de Mórmon para o espanhol. Meliton era um soldado espanhol veterano, que viera das Filipinas no fim do verão de 1874. Chegara em Utah trajando seu uniforme militar, de modo que sua aparência logo atraiu olhares curiosos.

Quando viera ao território, ele pouco sabia sobre a Igreja. Ouvira falar sobre os santos nas Montanhas Rochosas e desejava visitá-los um dia. Até que certa noite, ainda nas Filipinas, após orar pedindo orientação, ele foi inspirado em um sonho a empreender a viagem. Assim, deu baixa no exército, costurou em um bolso interno de seu traje todo o dinheiro que tinha e navegou rumo a São Francisco.

Assim que chegou em Salt Lake City, Meliton conheceu um falante de espanhol que o apresentou para Brigham Young e outros líderes da Igreja.9 Pouco antes, Brigham havia pedido a Daniel Jones e a Henry Brizzee que se preparassem para uma missão no México. Brigham acreditava que alguns descendentes dos povos do Livro de Mórmon viviam lá, e há muito desejava lhes enviar o evangelho. Porém, ele sabia que Parley Pratt havia tentado pregar o evangelho na América Latina em 1851, mas seus esforços haviam falhado em parte porque o Livro de Mórmon não estava disponível em espanhol.10

Como parte da preparação de Daniel e Henry, Brigham havia lhes pedido que estudassem o idioma e traduzissem o Livro de Mórmon. Os dois falavam um pouco de espanhol, mas a ideia de traduzir um livro de escrituras era intimidadora. Nenhum deles achava que tinha experiência suficiente com o idioma. Eles precisavam de um falante nativo que pudesse ajudá-los.

Assim, Daniel e Henry consideraram a chegada de Meliton como uma dádiva de Deus. Ensinaram o evangelho a ele, e Meliton aceitou o batismo com sinceridade de coração.11 Em seguida, Daniel convidou Meliton a permanecer com ele durante o inverno para trabalhar na tradução.

Meliton trabalhou por vários meses na tradução do texto sagrado. Quando o dinheiro acabou, Daniel recebeu permissão de Brigham Young para solicitar doações aos santos. Mais de 400 doadores arrecadaram fundos para apoiar Meliton e custear a impressão.

Após revisar a tradução, Daniel providenciou que cem páginas com trechos selecionados da tradução fossem impressas com o título Trozos selectos del Libro de Mormon.12 No entanto, Brigham queria ter certeza de que a tradução estava correta, então Daniel se programou para reler o texto com Meliton. Conforme liam, Daniel rogava a Deus que o ajudasse a encontrar erros na obra. Sempre que encontrava um trecho que não parecia bom, ele pedia ajuda a Meliton. Ele então estudava a tradução minuciosamente e apontava o que precisava ser corrigido. Daniel sentiu que o Senhor o estava guiando naquele trabalho.

Pouco depois, Trozos selectos foi impresso, e Daniel e outros missionários foram chamados para ir ao México. Meliton não foi designado para acompanhá-los, mas esperava que os esforços dos missionários dessem frutos.13

Os missionários partiram no outono de 1875. Antes de irem, Daniel e seus companheiros carregaram 500 cópias de Trozos selectos no lombo de algumas mulas. Em seguida, começaram sua jornada por estradas de chão batido, ansiosos para apresentar o Livro de Mórmon ao povo do México.14


Nessa época, Salt Lake City fervilhava com as notícias sobre a iminente visita do presidente Ulysses Grant. Nenhum presidente anterior dos Estados Unidos havia visitado o território, e não tardou até que se formasse uma delegação com funcionários territoriais, dignitários municipais e cidadãos encarregados de recebê-lo. Brigham Young foi convidado para participar da delegação, assim como John Taylor e Joseph F. Smith.15

Grant chegou no território em outubro, e Brigham o encontrou, com sua esposa Julia, em um trem na cidade de Ogden. Brigham só pôde cumprimentar brevemente a comitiva, pois o presidente logo pediu licença para ir visitar o vagão de observação do trem.

“Estou ansioso para conhecer a região”, explicou Grant.

Quando o presidente Grant os deixou, Julia comentou: “Não sei exatamente como devo tratá-lo, senhor Young”.

Brigham respondeu: “Às vezes me chamam de governador, outras vezes, presidente, ou mesmo general Young”. Ele havia recebido este último título anos antes, quando atuou como oficial da Legião de Nauvoo.

Julia então declarou: “Como estou acostumada com o jargão militar, vou chamá-lo de general”. O marido dela, herói da Guerra Civil Norte-Americana, havia sido oficial do exército durante a maior parte de sua vida.

“Bem, madame”, respondeu Brigham, “agora você terá a oportunidade de conhecer este povo desprezado, odiado e pobre”.

“Claro que não, general Young”, objetou Julia. “Pelo contrário, seu povo deve ser respeitado e admirado pela persistência, perseverança e fé.” Ela então acrescentou: “Só há uma objeção a seu povo, ou melhor, a você, general”.

Não era preciso que Julia declarasse sua objeção. Seu marido era um opositor ferrenho ao casamento plural. “Na verdade”, Brigham replicou, “sem isso, não teríamos a população que temos”.

“Isso é proibido pelas leis do país”, argumentou Julia, “e já teria sido erradicado há muito tempo pelo forte braço do governo não fosse pela caridade em relação às crianças e aos inocentes que certamente sofreriam”.

Antes que Brigham pudesse responder, um oficial do gabinete o convidou a se juntar ao presidente no vagão de observação, e Brigham se despediu da primeira-dama.

Posteriormente, ao chegarem em Salt Lake City, Brigham se despediu do casal Grant desejando que desfrutassem a visita. Saindo da estação de trem, o casal Grant saiu para um passeio pela cidade, acompanhado de George Emery, o governador do território. Quando se aproximaram da quadra do templo, viram fileiras de crianças vestidas de branco, alinhadas nas ruas em companhia de seus professores da escola dominical. Conforme a carruagem com o casal Grant passava, as crianças jogavam flores na rua e cantavam para os visitantes.

Impressionado, o presidente Grant questionou: “De quem são essas crianças?”

“São crianças mórmons”, respondeu o governador.

O presidente ficou mudo por alguns segundos. Tudo o que havia ouvido falar sobre os santos o fizera acreditar que eram um povo degenerado. Contudo, a aparência e o comportamento daquelas crianças sugeriam o contrário.

“Fui enganado”, ele por fim murmurou.16


Naquele inverno, Samuel Chambers se ergueu para prestar testemunho na reunião do quórum de diáconos da Estaca Salt Lake. Assim como os demais homens naquele grupo, ele já estava na meia-idade. “Vim para cá por causa da minha religião”, Samuel relatou. “Deixei para trás tudo o que tinha e vim para cá a fim de ajudar a edificar o reino de Deus.”

Samuel era membro da Igreja havia mais de 30 anos. Nascido em escravidão no sul dos Estados Unidos, ele havia sido batizado aos 13 anos por um missionário que lhe ensinara o evangelho. Porém, por ser escravo, Samuel não pôde se unir aos santos em Nauvoo. Nos anos seguintes, ele teve pouco contato com a Igreja, mas guardou sua fé por meio da influência do Santo Espírito.

Quando a Guerra Civil chegou ao fim, aqueles que viviam em escravidão nos Estados Unidos foram libertados, mas Samuel e sua esposa, Amanda, não tinham dinheiro para ir para Utah. Assim, trabalharam por cinco anos, poupando todos os centavos que podiam, até terem o suficiente para empreender a viagem. Eles foram para Utah em abril de 1870 com o filho de Samuel, Peter. Edward e Susan Leggroan, o irmão e a cunhada de Amanda, também se mudaram para Utah com seus três filhos.17

As famílias Chambers e Leggroan se estabeleceram na Ala I de Salt Lake City e moravam uma ao lado da outra. Naquela ala também vivia um casal de mestiços que viera da África do Sul, Richard e Johanna Provis. A família Leggroan se uniu à Igreja em 1873 e pouco depois se mudou, com a família Chambers, para a Ala XIII, que era frequentada por Jane Manning James, seu marido, Frank Perkins, e alguns outros santos negros.18

Naquelas alas, os santos adoravam lado a lado, fossem negros ou brancos. Apesar de a Igreja não conferir o sacerdócio aos negros naquela época, Samuel servia como assistente não ordenado no quórum de diáconos e prestava testemunho todos os meses na reunião do quórum. Amanda e Jane frequentavam a Sociedade de Socorro. Eles pagavam o dízimo e as ofertas, e frequentavam as reuniões da Igreja regularmente. Quando foram solicitadas doações para o Templo de St. George, Samuel ofertou cinco dólares, e Jane e Frank doaram 50 centavos cada um.

Samuel e Amanda, assim como outros santos negros, também já haviam participado de batismos pelos mortos na casa de investiduras. Os dois já haviam sido batizados em favor de mais de 20 amigos e parentes falecidos. Edward Leggroan fora batizado em favor do primeiro marido de sua esposa. Jane Manning James fora batizada em favor de uma amiga de infância.19

Samuel estimava sua condição como membro da Igreja e a oportunidade de prestar testemunho ao quórum de diáconos. “Se eu não prestar testemunho”, afirmou, “como vocês vão saber o que sinto, ou o que vocês sentem? Porém, se me ergo e falo, sei que tenho um amigo, e se os ouço falarem o mesmo que eu, então sei que somos um”.20


No fim da tarde de 5 de abril de 1876, uma explosão ensurdecedora se fez ouvir em Salt Lake City. Uma bola de fogo gigantesca ascendeu ao céu acima da colina ao norte da cidade, onde pólvora era armazenada em casamatas de pedra. Algo havia acendido os explosivos, de forma que o arsenal foi destruído.

Na escola da Ala XX, onde Karl Maeser dava aula, a explosão fez desabar parte do forro de estuque. Naquela noite, Karl daria uma palestra no local, então decidiu ir falar imediatamente com o bispo sobre as avarias.21

Karl encontrou o bispo em uma reunião com Brigham Young no escritório do profeta. Karl relatou os sérios prejuízos sofridos pela escola e disse que as aulas não poderiam ser retomadas até que os reparos fossem feitos.

“Está certo, irmão Maeser”, respondeu Brigham. “Mas tenho outra missão para você.”22

Karl se sentiu desanimado. Apenas poucos anos antes ele havia retornado de uma missão na Alemanha e na Suíça. Seu emprego estável na escola da Ala XX era uma bênção para ele e sua família. Eles haviam se estabelecido com certo conforto em Salt Lake City e estavam muito bem.23

Porém, Brigham não queria enviá-lo para muito longe. Assim como Eliza Snow, Brigham e outros líderes da Igreja estavam preocupados com a educação da nova geração, cuja fé não havia sido testada pelas perseguições do início da Igreja nem se havia solidificado por meio de experiências como a conversão e a imigração.24

Brigham não se opunha ao conhecimento secular ou às universidades; alguns de seus filhos até mesmo tinham frequentado a faculdade no leste dos Estados Unidos. Porém, sua preocupação era que os jovens santos em Utah estavam sendo ensinados por pessoas que eram críticas ferrenhas do evangelho restaurado. A Universidade de Deseret, fundada em 1850, admitia alunos de outras igrejas e não ensinava as crenças dos santos dos últimos dias como parte de seu currículo. Brigham queria que os jovens da Igreja tivessem oportunidades educacionais que fortalecessem sua fé e os ajudassem a estabelecer uma sociedade como Sião.25

Para alcançar esses propósitos, ele havia recentemente fundado uma escola em Provo, chamada Academia Brigham Young. O primeiro semestre da escola havia sido concluído, e agora Brigham convidava Karl para assumir a responsabilidade pela escola.

Karl não aceitou o convite de Brigham prontamente. Porém, duas semanas depois, após já ter aceitado a designação, Karl foi procurar o profeta. “Estou prestes a partir para Provo, irmão Young, para dar início ao meu trabalho na academia”, comentou ele. “Tem alguma instrução para mim?”

“Irmão Maeser”, respondeu Brigham, “quero que se lembre de que não deve ensinar nem mesmo o alfabeto ou a tabuada sem o Espírito de Deus”.26


Até o fim daquele ano, todas as alas de Salt Lake City haviam organizado bailes para arrecadar fundos para a construção do Templo de St. George. O bispo da Ala XIII, Edwin Woolley, confiando no jovem Heber Grant, que tinha apenas 20 anos, mas muitos amigos, pediu-lhe que organizasse o baile em sua unidade. “Quero que você faça com que o baile seja um sucesso”, disse a Heber.

No ano anterior, Heber havia sido chamado como conselheiro na presidência da Associação de Melhoramentos Mútuos dos Rapazes em sua ala (A.M.M.R.), uma nova organização iniciada em 1875, quando Brigham Young pediu às alas que organizassem os rapazes da mesma forma que haviam organizado as moças. Como líder da A.M.M.R., Heber tinha a responsabilidade de ajudar os rapazes a desenvolver seus talentos e fortalecer seu testemunho do evangelho.27

Heber não colocou muita fé no pedido do bispo Woolley. “Vou fazer meu melhor”, comentou, “mas preciso da garantia de que, se os custos não forem cobertos, você vai colocar a diferença”.

Ele explicou que os jovens queriam um baile em que pudessem dançar valsa, um estilo de dança popular na época, em que os parceiros bailavam próximos um ao outro, fazendo movimentos circulares no salão. Embora algumas pessoas considerassem a valsa menos apropriada do que a quadrilha tradicional, Brigham Young permitia que fossem tocadas três valsas por baile. Já o bispo Woolley não aprovava a dança, tanto que era proibida nos bailes da Ala XIII.28

“Bem”, respondeu o bispo Woolley, “você pode tocar três valsas”.

“Há outra coisa”, comentou Heber. Se não contassem com uma boa banda no baile, seria difícil vender entradas. “Você não permite que a Olsen’s Quadrille Band toque na ala, porque o flautista ficou bêbado uma vez”, disse ele ao bispo. “A questão é que a Olsen’s é a melhor banda de cordas que há.”

Com relutância, o bispo concordou e permitiu que Heber contratasse a banda. “Deixei que aquele menino fizesse tudo o que ele queria”, pensou ele ao se despedirem. “Eu vou fritá-lo em público se esse baile não der certo.”

Heber chamou o filho do bispo, Eddie, para ajudar na venda dos ingressos e preparar o prédio da ala para o baile. Eles retiraram as mesas do salão, colocaram tapetes no chão e penduraram fotos de Brigham Young e de outros líderes da Igreja nas paredes. Depois, chamaram vários rapazes para divulgar o baile nos lugares onde trabalhavam.

No dia do baile, Heber ficou à porta com uma listagem em ordem alfabética de todos os que haviam comprado entradas. Ninguém seria admitido a menos que tivesse pago 1 dólar e 50 centavos pelo ingresso. Porém, Brigham Young apareceu lá — sem ingresso.

“Pelo que sei, o baile é em benefício do Templo de St. George”, Brigham comentou. Então, tirou 10 dólares do bolso. “Isto é suficiente para pagar minha entrada?”

“Certamente”, respondeu Heber, sem saber se deveria dar o troco ao profeta.

Naquela noite, enquanto Brigham contava o número de valsas, Heber contava o dinheiro. A ala coletou mais de 80 dólares, uma quantia maior do que qualquer outra ala havia coletado para o templo. E os jovens haviam dançado suas três valsas.

Porém, antes do fim do baile, Heber pediu ao líder da banda que tocasse uma valsa-quadrilha, basicamente uma valsa com elementos de uma quadrilha clássica.

Quando a banda começou a tocar, Heber se sentou ao lado de Brigham para ouvir o que ele diria sobre a quarta valsa da noite. Assim que os jovens começaram a dançar, Brigham disse enfaticamente: “Isto é uma valsa”.

Heber então explicou: “Não é. A valsa é dançada em círculos, ao redor de todo o salão. Isto é uma quadrilha”.

Brigham olhou para Heber e sorriu. “Ah, esses rapazes”, respondeu ele.29


Pouco depois do baile na Ala XIII, Brigham partiu para o sul com Wilford Woodruff a fim de dedicar algumas partes do Templo de St. George. Embora o templo não fosse finalizado antes da primavera, algumas salas de ordenanças já estavam prontas para serem usadas.30 No Templo de Nauvoo e na casa de investiduras, os santos haviam realizado investiduras em favor dos vivos. Quando o Templo de St. George fosse dedicado, seriam realizadas pela primeira vez as investiduras em favor dos mortos.31

Conforme se aproximava do assentamento, Brigham viu o templo de longe. À distância, lembrava o Templo de Nauvoo, mas de perto ficava claro que a parte externa era mais simples. O edifício possuía fileiras de janelas altas e de contrafortes sem adornos, que sustentavam as altas paredes brancas. Uma torre com cúpula se erguia acima das ameias em estilo típico de fortalezas enfileiradas no telhado.32

No dia de Ano Novo de 1877, mais de 1.200 pessoas se aglomeraram no porão do templo para a dedicação do batistério.33 Após se posicionar no degrau mais alto da fonte batismal, Wilford Woodruff chamou a atenção dos santos. “Percebo que não é possível que esta congregação se ajoelhe, dada a multidão aqui presente”, comentou, “mas podemos curvar nossa cabeça e nosso coração a Deus”.

Depois que Wilford ofereceu a oração dedicatória, a congregação foi para o salão de reuniões no andar superior. Brigham praticamente já não caminhava mais por causa da artrite, de modo que foi carregado por três homens até lá. Erastus Snow então dedicou o salão, e Brigham foi novamente carregado para a sala de selamento no andar superior.

Em seguida, retornaram para o salão de reuniões, e Brigham lutou para ficar em pé ao púlpito. Apoiando-se numa bengala de nogueira, ele falou: “Sinto que não devo sair desta casa sem exercer minha força — a força dos meus pulmões, do meu estômago e das minhas cordas vocais”.

Brigham queria que os santos se devotassem à redenção dos mortos. “Quando penso nisso, desejo ter a voz de sete trovões para poder despertar as pessoas”, declarou. “Nossos pais poderão ser salvos sem nós? Não. Poderemos nós ser salvos sem eles? Não. Mas, se não despertarmos e não pararmos de perseguir as coisas deste mundo, descobriremos que, como indivíduos, desceremos para o inferno.”

Brigham lamentou o fato de que muitos santos estavam buscando coisas mundanas. “Se despertássemos para este dever, a saber, a salvação da família humana”, comentou ele, “esta casa ficaria lotada, como esperamos que fique, de segunda de manhã até sábado à noite”.

No fim do sermão, Brigham ergueu sua bengala no ar. “Não sei se vocês estão satisfeitos ou não com os serviços de dedicação do templo”, declarou. “Estou muito satisfeito, e eu achava que só ficaria satisfeito quando o diabo fosse derrotado e expulso da face desta Terra.”

Enquanto falava, Brigham bateu com a bengala no púlpito, deixando marcas na madeira.

“Se estraguei o púlpito”, comentou ele, “sei que um de nossos bons marceneiros poderá consertá-lo depois”.34


Em 9 de janeiro, Wilford Woodruff entrou na fonte batismal do templo com a filha de Brigham, Susie, uma jovem de 18 anos, que era casada com um rapaz chamado Alma Dunford. Com o apoio de uma muleta e de uma bengala, Brigham serviu de testemunha enquanto Wilford batizava Susie em favor de uma amiga falecida. Aquele foi o primeiro batismo pelos mortos realizado no Templo de St. George. Em seguida, Wilford e Brigham impuseram as mãos sobre a cabeça de Susie e a confirmaram em favor da falecida.

Dois dias depois, Wilford e Brigham supervisionaram as primeiras investiduras para os mortos realizadas em um templo. Wilford passou praticamente todos os dias seguintes servindo no templo. Ele começou a usar roupas brancas em vez de roupas normais, sendo a primeira pessoa a usá-las como parte das cerimônias do templo. A mãe de Susie, chamada Lucy, que também se dedicava ao trabalho do templo, passou a usar um vestido branco a fim de servir de exemplo para as mulheres.35

Enquanto Wilford trabalhava no templo, Brigham pediu a ele e a outros líderes da Igreja que escrevessem a cerimônia da investidura e as demais ordenanças do templo. Desde a época de Joseph Smith, as palavras das ordenanças haviam sido preservadas apenas oralmente. Agora, já que as ordenanças seriam realizadas a certa distância da sede da Igreja, Brigham queria que as cerimônias fossem escritas a fim de garantir que fossem as mesmas em todos os templos.36

Ao padronizar as ordenanças, Brigham cumpriu um encargo recebido de Joseph Smith após as primeiras investiduras em Nauvoo. “Isso ainda não está organizado da maneira certa, mas fizemos o melhor que podíamos diante das circunstâncias”, foi o que Joseph lhe dissera na ocasião. “Quero que assuma a responsabilidade por essa questão e organize e sistematize todas essas cerimônias.”37

Wilford e outros líderes trabalharam durante semanas naquela designação. Após escreverem as cerimônias, leram-nas para Brigham, que as aceitou e fez revisões conforme a orientação do Espírito. Quando terminaram, Brigham comentou com Wilford: “Agora você tem diante de si um exemplo de como realizar as investiduras em todos os templos, até a vinda do Filho do Homem”.38

Capítulo 29

Que eu morra a caminho de casa

Estetoscópio sobre a cama de uma pessoa doente

Em meados de abril de 1877, Brigham Young disse adeus aos penhascos avermelhados da região sul de Utah. A caminho de Salt Lake City, ele sentia que lhe restavam poucos dias de vida. “Às vezes tenho a impressão de que estou à beira da morte”, relatou ele aos santos em St. George antes de partir. “Não sei quanto tempo me resta, mas é bem possível que eu morra a caminho de casa.”1

Alguns dias depois, ele parou em Cedar City para conversar com um jornalista a respeito de John D. Lee e do Massacre de Mountain Meadows.2 O governo federal havia passado mais de dez anos investigando os envolvidos nos assassinatos. John e outros homens, inclusive o presidente da Estaca Parowan, William Dame, haviam sido presos vários anos antes para serem julgados por sua participação no massacre, o que renovou o interesse nacional no crime cometido 20 anos antes.3 As acusações contra William e os demais já haviam sido retiradas, mas John havia sido julgado duas vezes por ter liderado o ataque, sendo condenado à execução pelo pelotão de fuzilamento.

Durante os julgamentos, os promotores e jornalistas torciam para que John confessasse a participação do profeta no massacre. No entanto, embora estivesse com raiva de Brigham por não o ter defendido da condenação, John se recusara a culpá-lo pelos assassinatos.4

A execução de John havia despertado um furor nacional entre aqueles que falsamente alegavam que Brigham havia ordenado o massacre.5 Em alguns lugares, o ódio em relação à Igreja estava tão acirrado que os missionários enfrentavam dificuldades para encontrar pessoas para ensinar, de modo que alguns élderes haviam decidido voltar para casa. Em geral, Brigham não reagia a ataques contra ele ou contra a Igreja, mas desejou falar publicamente acerca do massacre e aceitou o convite para a entrevista com o repórter.6

O jornalista perguntou a Brigham se John havia recebido ordens da sede da Igreja para matar os emigrantes. “Não que eu saiba”, refutou Brigham, “e certamente não recebeu nenhuma ordem minha”. Ele complementou dizendo que, se soubesse dos planos para matar os emigrantes, teria tentado impedi-los.

“Eu teria ido àquele acampamento e lutado até a morte contra os índios e brancos que perpetraram o massacre para que tal ato não tivesse sido cometido”, afirmou ele.7

Dias mais tarde, Brigham parou em Sanpete Valley para dedicar o terreno do templo em Manti. Enquanto estava lá, o Espírito lhe sussurrou que a estrutura do sacerdócio da Igreja precisava ser reorganizada.8

Ele já havia começado a fazer algumas alterações na organização da Igreja. Dois anos antes, ele havia reestruturado o Quórum dos Doze Apóstolos, de modo que aqueles que tivessem permanecido fiéis a seu testemunho desde a época em que foram chamados tivessem precedência sobre os demais. Isso fez com que John Taylor e Wilford Woodruff ficassem à frente de Orson Hyde e Orson Pratt, que haviam abandonado o quórum brevemente enquanto Joseph Smith ainda vivia. Com a mudança, John Taylor se tornou o membro sênior dos Doze e provável sucessor de Brigham como presidente da Igreja.9

No entanto, durante a viagem e ao se reunir com líderes locais da Igreja, Brigham percebeu que outras mudanças precisavam ser efetuadas. Das 13 estacas da Igreja, algumas eram supervisionadas por presidentes de estaca, enquanto outras eram presididas por membros dos Doze, às vezes sem conselheiros e sem sumo conselho. Algumas alas tinham bispos, enquanto outras tinham bispos presidentes, mas ninguém sabia exatamente qual era a diferença entre um e outro. E algumas alas nem tinham bispo.10

Os quóruns do Sacerdócio Aarônico também não estavam organizados. Os portadores do Sacerdócio Aarônico cuidavam das capelas, visitavam famílias e ensinavam o evangelho. Ainda assim, as alas não tinham portadores suficientes do Sacerdócio Aarônico para formar quóruns, pois geralmente apenas os homens adultos eram ordenados, e normalmente recebiam o Sacerdócio de Melquisedeque logo depois.

Na primavera e no verão de 1877, Brigham, seus conselheiros e o Quórum dos Doze Apóstolos trabalharam juntos a fim de reorganizar as alas e estacas e para fortalecer os quóruns do Sacerdócio Aarônico e de Melquisedeque. Eles decidiram que todos os membros da Igreja deveriam pertencer a uma ala presidida por um bispo que pudesse cuidar deles com o auxílio de dois conselheiros. Também designaram Edward Hunter para servir como o único bispo presidente da Igreja.

A Primeira Presidência e os Doze também instruíram os líderes locais do sacerdócio a ordenarem rapazes aos ofícios do Sacerdócio Aarônico. Pediram especificamente que mestres e sacerdotes adultos visitassem os santos na companhia dos rapazes para treiná-los em suas responsabilidades no sacerdócio. Cada assentamento foi instruído a organizar uma Associação de Melhoramentos Mútuos (A.M.M.) para moças e rapazes.

Viajando semanalmente por todo o território, a Primeira Presidência e os Doze desobrigaram os apóstolos que serviam como presidentes de estaca e chamaram novos líderes em seu lugar. Certificaram-se de que cada presidente de estaca tivesse dois conselheiros e que cada estaca tivesse um sumo conselho. Também orientaram as estacas a realizarem conferências trimestrais.11

O fluxo intenso de viagens e pregações logo pesou sobre Brigham. Ele andava pálido e fatigado. “Em minha ansiedade por ver a casa de Deus em ordem”, admitiu ele, “excedi minhas forças”.12


Em 20 de junho, Francis Lyman recebeu um telegrama de George Q. Cannon, que servia como conselheiro na Primeira Presidência. “O presidente pergunta se você está disposto a servir como presidente da Estaca Tooele?”, dizia a mensagem. “Se sim, pode vir aqui se reunir com os Doze no sábado de manhã?”13

Francis vivia em Fillmore, Utah. A Estaca Tooele ficava 160 quilômetros ao norte. Ele nunca havia morado na região nem conhecia qualquer membro da estaca. Em Fillmore, onde já vivia há mais de dez anos, ele ocupava altas posições no governo local. Se aceitasse servir em Tooele, teria que se mudar com a família para o novo local.

E faltavam apenas três dias para o sábado de manhã.

Aos 37 anos de idade, Francis era um devotado santo dos últimos dias que havia servido missão nas Ilhas Britânicas e tinha participação ativa em seu quórum do sacerdócio. Também já havia reunido a genealogia de sua família e ansiava pelo dia em que pudesse realizar as ordenanças por eles na casa do Senhor.

“Minha maior ambição”, certa vez escrevera em seu diário, “é viver como um santo dos últimos dias e ensinar minha família a fazer o mesmo”.14

Porém, ele ainda estava tentando se acostumar com a decisão tomada por seu pai, Amasa Lyman, que havia se unido ao Novo Movimento, de William Godbe. Ele esperava que seu pai voltasse para a Igreja. Os dois haviam trabalhado juntos na genealogia da família e haviam desfrutado bons momentos juntos. Contudo, Amasa havia morrido em fevereiro, ainda afastado da Igreja.

Pouco antes, Francis havia visitado seu pai no leito de morte. “Não vá embora”, dissera Amasa. “Quero que fique perto de mim.”

“Por quanto tempo?”, perguntou Francis.

“Para sempre”, sussurrou Amasa.15

Após a morte do pai, Francis ficou ansioso para que a condição de membro da Igreja e o sacerdócio de Amasa fossem restaurados, o que permitiria que a família se sentisse completa mais uma vez. Em abril, Francis perguntou a Brigham Young o que poderia ser feito. “Por enquanto, nada”, foi a resposta do profeta. O assunto estava nas mãos do Senhor.

Francis aceitou a decisão de Brigham e a nova designação para servir em Tooele. “Estarei com os Doze no sábado de manhã”, ele respondeu em um telegrama a George Q. Cannon.16

Em 24 de junho de 1877, a Estaca Tooele foi criada e Francis foi designado por imposição de mãos como seu presidente.17 Antes daquela data, os seis maiores assentamentos na região de Tooele possuíam ramos supervisionados por um bispo presidente chamado John Rowberry. Com a criação da nova estaca, cada ramo se tornou uma ala, cujo tamanho variava de 27 a 200 famílias.18

Percebendo que alguns membros da Igreja em Tooele poderiam reclamar por seu novo presidente ser um jovem de fora, Francis não demorou muito para comprar uma casa no centro da cidade, além de chamar dois homens da região como seus conselheiros. Em seguida, convidou o bispo Rowberry para ir com ele visitar as várias alas, onde organizaram novos quóruns e presidências do sacerdócio, além de falarem aos santos e incentivá-los a permanecerem devotos ao Senhor.19

“Nossos interesses temporais e espirituais pelo reino estão inseparavelmente ligados”, ensinou Francis aos membros da nova estaca. “Humilhem-se diante do Senhor e tomem a luz de Seu Santo Espírito como seu guia constante.”20


Em meados de julho de 1877, Jane Richards se sentou ao púlpito ao lado de Brigham Young, no tabernáculo da Estaca Weber, em Ogden. Aquela era uma conferência das Sociedades de Socorro e das Associações das Moças da cidade. Jane, que era presidente da Sociedade de Socorro da Ala Ogden, havia organizado o evento e convidado Brigham a falar.21

Para Jane, nem sempre foi fácil liderar um grupo tão grande de mulheres. Ela havia se unido à Sociedade de Socorro quando era jovem, em Nauvoo.22 Porém, quando foi chamada para liderar a Sociedade de Socorro da Ala Ogden em 1872, ela hesitou. Sua saúde sempre fora frágil, apesar da força que encontrava nas bênçãos do sacerdócio, mas estava relativamente pior quando o chamado lhe foi feito.

Certo dia, sua amiga Eliza Snow veio visitá-la. Eliza a exortou a viver, certa de que Jane ainda tinha muito a fazer em sua vida. Enquanto ministrava a Jane, Eliza prometeu que, se ela aceitasse o chamado para liderar a Sociedade de Socorro em Ogden, ela teria saúde e as bênçãos do Senhor.

Jane foi curada pouco depois pelo poder de Deus, mas ainda passou várias semanas ponderando se deveria aceitar o chamado. Por fim, seu bispo e as irmãs da Sociedade de Socorro imploraram para que ela aceitasse. “O Senhor a tirou do leito de morte para que pudesse fazer o bem a nós”, disseram elas, “e queremos que você aceite o chamado”. Jane então percebeu que seu serviço contribuiria para um bem maior a despeito de quanto estivesse cansada ou do medo que sentia.23

Agora, cinco anos depois, o tabernáculo da Estaca Weber estava lotado de mulheres ansiosas para ouvir o profeta. Depois de Brigham, outros líderes da Igreja falaram. Entre eles estava o marido de Jane, o apóstolo Franklin Richards, que há pouco havia sido desobrigado como presidente da Estaca Weber como parte da reorganização do sacerdócio.

Durante um dos discursos, Brigham perguntou a Jane o que ela achava de serem organizadas Sociedades de Socorro da estaca que realizassem conferências trimestrais. Ele vinha pensando em implementar essas mudanças, como parte de seus esforços para melhor organizar a Igreja, e já havia perguntado a diversas pessoas a respeito do assunto, inclusive a Bathsheba Smith, outra líder ativa na Sociedade de Socorro.24

A pergunta pegou Jane de surpresa, mas não por causa da ideia de organizar uma Sociedade de Socorro da estaca. Apesar de as Sociedades de Socorro funcionarem apenas nas alas, ela e suas conselheiras da Ala Ogden já atuavam informalmente como uma presidência da Sociedade de Socorro da estaca, aconselhando as pequenas Sociedades de Socorro da região. O que a pegou de surpresa foi a ideia de realizar conferências regulares da Sociedade de Socorro.

Jane nem teve tempo de se acostumar com a ideia. Antes do fim da conferência, Brigham a chamou para servir como presidente da Sociedade de Socorro da Estaca Weber e pediu a ela que coletasse relatos das presidentes da Sociedade de Socorro das alas a respeito das condições espirituais e financeiras das mulheres em suas congregações. Se sua saúde permitisse, ele desejava se encontrar com elas novamente na próxima conferência a fim de ouvir os relatos.

Depois da conferência, Brigham pediu a Jane que viajasse com ele para os assentamentos vizinhos. Durante a viagem, ele a ensinou sobre os deveres de seu novo chamado e a importância de se manter registros minuciosos daquilo que ela e a Sociedade de Socorro realizassem. Liderar a Sociedade de Socorro da estaca seria uma tarefa monumental. Antes da recente reorganização da Igreja, Jane havia aconselhado três Sociedades de Socorro em Ogden. Em contrapartida, a recém-formada Estaca Weber tinha 16 alas.25

Quando retornou para Ogden, Jane se reuniu com a Sociedade de Socorro de sua ala. “Gostaria de ouvir todas as irmãs e saber como se sentem a respeito do que o presidente Young nos ensinou”, disse ela.

No restante da reunião, Jane fez anotações enquanto as mulheres prestavam testemunho e compartilhavam as experiências que tiveram na conferência. Muitas expressaram o amor que sentiam pelo evangelho. “Temos a luz e o conhecimento do Santo Espírito”, Jane afirmou às irmãs, “mas, quando os perdemos, ficamos em grande escuridão”.

Em outra reunião, poucos dias depois, Jane acrescentou estas palavras ao prestar testemunho: “Quero viver minha religião”, declarou ela, “e fazer todo o bem que conseguir”.26


Naquele verão, enquanto a Igreja passava por uma grande reorganização, Susie Young Dunford começou a se perguntar se já não era a hora de fazer algumas mudanças em sua própria vida. Seu marido, Alma, havia partido recentemente para uma missão na Grã-Bretanha. No entanto, em vez de sentir falta dele, ela ficou grata por ele ter partido.

Seu casamento havia sido infeliz desde o começo. Alma bebia álcool frequentemente, assim como seu primo Morley, que se casara com a irmã de Susie, Dora. Após a revelação da Palavra de Sabedoria em 1833, nem todos os santos haviam seguido seus conselhos com exatidão. Porém, em 1867, o pai de Susie, Brigham Young, começara a exortar os santos a obedecerem a ela com mais precisão, abstendo-se de café, chá preto, tabaco e álcool.

No entanto, nem todos aceitaram o conselho, e Alma ficava em posição defensiva quando seu hábito de beber era confrontado. Às vezes, ele também era abusivo. Certa noite, após beber, ele expulsou de casa Susie e sua filha Leah, de apenas 6 meses de idade, gritando para que não retornassem.

No entanto, Susie retornou, na esperança de que as coisas mudassem. Ela e Alma tiveram outro filho, Bailey, e ela queria que seu casamento fosse bem-sucedido. Porém, nada mudou. Assim, quando Alma recebeu o chamado missionário, ela ficou aliviada. Às vezes, jovens como Alma eram enviados para a missão a fim de crescer e reformar seu comportamento.

Susie desfrutou de paz e quietude em seu lar. E quanto mais tempo passava longe de Alma, menos ela queria voltar a vê-lo.27

A família de Alma vivia perto de Bear Lake, quase na fronteira norte de Utah, e Susie planejava visitá-los naquele verão. Contudo, antes de viajar para o norte, ela visitou seu pai para pedir conselhos a respeito de outro assunto que estava analisando.28

Recentemente, membros da Igreja haviam publicado um livro em Nova York chamado The Women of Mormondom [As Mulheres do Mormonismo], que visava a contestar as representações de mulheres santos dos últimos dias divulgadas nos livros e nas palestras de Fanny Stenhouse, Ann Eliza Young e outros críticos da Igreja. The Women of Mormondom continha o testemunho de diversas mulheres proeminentes da Igreja e apresentava suas experiências de forma positiva.

Para ajudar a promover o livro, Susie queria embarcar em um circuito nacional de palestras com duas esposas de seu pai, Eliza Snow e Zina Young, bem como com sua irmã Zina Presendia Williams. Susie sempre desejara ser uma grande escritora e palestrante, e ansiava por viajar pelo país e falar em público.29

Brigham foi favorável à viagem de Susie, mas queria que ela a fizesse pelas razões certas. Ele sabia que ela era ambiciosa e sempre procurara apoiá-la para desenvolver seus talentos, por isso a enviara para estudar com alguns dos melhores professores do território. Contudo, ele não queria que ela buscasse a aclamação do mundo em detrimento de sua família.

“Se você se tornasse a maior mulher na face do mundo”, disse ele, “mas negligenciasse seus deveres como esposa e mãe, acordaria na manhã da Primeira Ressurreição e descobriria que havia falhado miseravelmente”.

Como de costume, seu pai não tinha papas na língua. Porém, Susie não se sentiu repreendida. Os modos dele eram gentis e cheios de empatia, e era como se ele conseguisse ver a alma dela. “Tudo o que você fizer após ter satisfeito os anseios justos de seu lar e de sua família”, garantiu ele, “reverterá para seu crédito e para a honra e a glória de Deus”.

“Queria saber que o evangelho é verdadeiro”, admitiu Susie ao prosseguirem com a conversa. Ela desejava saber, no fundo da alma, assim como seus pais, que o evangelho era verdadeiro.30

“Só há uma maneira de você alcançar um testemunho da verdade, filha”, respondeu Brigham, “e é a maneira como adquiri meu testemunho e a maneira como sua mãe adquiriu o dela. Ajoelhe-se diante do Senhor, ore, e Ele ouvirá e responderá”.

Um arrepio percorreu o corpo de Susie, e ela soube que seu pai dizia a verdade. “Se não fosse pelo mormonismo”, contou ele, “hoje eu seria um carpinteiro numa pequena cidade”.

Brigham havia fechado seu negócio muito antes de Susie nascer, mas ainda tinha a mesma fé que demonstrara ao sair de sua casa em Nova York para ir apertar a mão do profeta de Deus em Kirtland. Antes que ele morresse, Susie queria que ele soubesse o quanto o amava.

“Sinto orgulho e gratidão”, afirmou ela, “por ter recebido permissão de vir à Terra como sua filha”.31


Na noite de 23 de agosto de 1877, Brigham se sentou com Eliza Snow na sala onde a família costumava orar. Eles discutiram os planos para enviar Eliza, Zina, Zina Presendia e Susie para o Leste a fim de promover o livro The Women of Mormondom e ajudar as pessoas a entenderem melhor a Igreja.

“É um experimento, mas gostaria muito de testar essa ideia”, Brigham comentou.

Ele então se levantou e pegou um castiçal. Pouco antes, naquela noite, ele havia falado aos bispos de Salt Lake City e os instruíra a se certificar de que os sacerdotes e mestres visitassem mensalmente todos os membros da ala. Em seguida, designara um comitê para supervisionar a construção de um salão de reuniões ao lado do Templo de Salt Lake. Agora, estava cansado.

“Acho que devo me recolher agora”, comentou ele com Eliza.

Durante a noite, Brigham sentiu dores agudas no abdome. Pela manhã, seu filho Brigham Young Jr. correu para ficar ao seu lado e segurou sua mão. “Como você se sente?”, perguntou ele. “Você acha que vai melhorar?”

“Não sei”, respondeu Brigham. “Pergunte ao Senhor.”

Por dois dias, ele ficou de cama, suportando a dor e dormindo muito pouco. Apesar da dor, ele fazia piadas, tentando aliviar a inquietação dos familiares e amigos que se haviam reunido a seu redor. Sempre que alguém perguntava se ele estava sofrendo, ele respondia: “Que eu saiba, não”.

Apóstolos e outros líderes da Igreja o abençoaram, o que o animou. Porém, após quatro dias, ele começou a delirar. Os sintomas ficaram piores, e o médico operou seu abdome, sem sucesso.

Em 29 de agosto, o médico prescreveu um remédio para dor e colocou sua cama mais perto da janela para que pudesse tomar ar puro. Do lado de fora, uma multidão de santos permanecia no jardim da Lion House em reverente silêncio. Enquanto isso, a família de Brigham estava ajoelhada em oração ao redor de sua cama.

Deitado em sua cama sob a janela, Brigham recuperou a consciência por um momento. Ele abriu os olhos e olhou para o teto. “Joseph”, ele disse. “Joseph, Joseph, Joseph.”

Sua respiração foi ficando cada vez mais fraca, até que cessou.32

Capítulo 30

Um movimento contínuo e para frente

Menino e menina caminhando em direção a um edifício da Igreja

Quando Wilford Woodruff chegou em Salt Lake City, três dias após o falecimento de Brigham Young, milhares de pessoas enlutadas enchiam o tabernáculo, onde o corpo de Brigham era velado. O caixão do profeta era simples e tinha um painel de vidro na tampa, permitindo que os santos vissem seu rosto pela última vez.

Os santos em Utah acreditavam que a liderança de Brigham havia cumprido a profecia de Isaías, de que o ermo floresceria como a rosa. Sob a direção de Brigham, os santos haviam irrigado os vales entre as montanhas, levando água para as fazendas, as hortas, os pomares e as pastagens que sustentavam centenas de assentamentos de membros da Igreja. A maioria daqueles assentamentos havia criado raízes, o que fez crescer as comunidades de santos que se esforçavam para viver os princípios da união e da cooperação. Uns poucos assentamentos, tal como Salt Lake City, já haviam se tornado centros urbanos de manufaturas e comércio.

Ainda assim, o sucesso de Brigham como colonizador não ultrapassou seu serviço como profeta de Deus. Muitos daqueles que prestaram homenagens a ele naquela manhã já o haviam ouvido falar com os santos do território ou estar entre eles. Alguns o haviam conhecido como um missionário no leste dos Estados Unidos ou na Inglaterra. Outros se lembravam de como ele havia guiado a Igreja em segurança durante o período de incertezas que se seguiu à morte de Joseph Smith. E alguns haviam cruzado as Grandes Planícies e as Montanhas Rochosas ao lado dele. Muitas pessoas, inclusive as dezenas de milhares de santos que haviam imigrado da Europa e de outras partes do mundo para Utah, não sabiam o que era a Igreja sem ele.

Quando Wilford parou ao lado do caixão, notou que seu velho amigo tinha o semblante natural. O Leão do Senhor estava descansando.1

No dia seguinte, 2 de setembro de 1877, os santos lotaram o tabernáculo para participar do funeral de Brigham, e milhares ficaram do lado de fora. Fileiras de guirlandas pendiam do teto em arco do tabernáculo, e o órgão estava coberto com um pano negro. Os santos, porém, não estavam vestindo roupas pretas, como era o costume nos funerais nos Estados Unidos. Brigham havia lhes pedido que não o fizessem.2

A Igreja ainda não havia apoiado uma nova Primeira Presidência após a morte de Brigham, então John Taylor oficiou na reunião como presidente do Quórum dos Doze.3 Vários apóstolos prestaram homenagens ao falecido profeta. Wilford falou sobre o grande desejo que Brigham tinha de construir templos e redimir os mortos. “Ele sentia que o peso desta dispensação repousava sobre ele”, explicou Wilford. “Alegro-me por ele ter vivido o suficiente para entrar em um templo e participar de sua dedicação, e por ter iniciado o trabalho em outros.”4

John testificou que Deus continuaria a liderar a Igreja em meio aos tumultos dos últimos dias. O jornal Salt Lake Tribune já anunciava que a morte de Brigham causaria disputas entre os líderes da Igreja e o afastamento de muitos santos.5 Outros críticos torciam para que os tribunais levassem a Igreja à ruína. George Reynolds, que havia sido novamente julgado e condenado por bigamia, agora apelava à Suprema Corte dos Estados Unidos. Se aquela instância mantivesse a condenação, os santos seriam virtualmente incapazes de defender seu modo de vida.6

Porém, John não temia o futuro. “O trabalho no qual estamos engajados não é o trabalho dos homens. Não foi Joseph Smith quem deu início a esta obra; muito menos Brigham Young”, declarou. “Esta obra provém de Deus. Ele é o autor.”

“E é nossa responsabilidade, como santos dos últimos dias, que magnifiquemos nosso chamado”, continuou ele, “para que as mudanças pelas quais ansiamos sobrevenham às nações — revoluções após revoluções — a fim de que sigamos em um movimento contínuo e para frente, guiados pelo Senhor”.7


Após a morte de seu pai, Susie Young Dunford se empenhou para saber o que fazer a respeito de seu casamento fracassado. Quando Alma, seu marido, partira em missão, ela imaginava que a experiência o transformaria. No entanto, em suas cartas, ele continuava a se mostrar irritado e em posição defensiva.8

Não querendo agir precipitadamente, Susie ponderou suas opções e orou continuamente a respeito do dilema em que se encontrava. Pouco antes de morrer, Brigham havia relembrado a ela que seus papéis como esposa e mãe eram fundamentais para seu sucesso na vida. Ela queria cumprir aquelas responsabilidades em retidão. Mas isso significava que teria que permanecer em um relacionamento abusivo?9

Certa noite, Susie sonhou que ela e Alma estavam indo visitar seu pai na Lion House. Brigham tinha uma incumbência para eles, mas, em vez de transmiti-la a Alma, como costumava fazer em vida, ele passou a designação para Susie. Ao se retirar para cumprir a tarefa, Susie encontrou Eliza Snow no saguão e perguntou a ela por que Brigham havia entregue a designação a ela, e não a Alma, como sempre fizera até então.

“Naquela época ele não compreendia”, respondeu Eliza no sonho. “Mas agora ele entende.”

Quando Susie acordou, as palavras de Eliza permaneceram em sua mente. Foi reconfortante saber que seu pai havia adquirido no mundo espiritual uma perspectiva diferente da que tinha em vida.

Susie pediu o divórcio logo em seguida e, quando Alma voltou da Inglaterra, ele procurou alguns advogados. Os líderes da Igreja costumavam tentar a reconciliação de casais que queriam se divorciar, mas também acreditavam que, se uma mulher desejasse pôr fim a um casamento infeliz, era o direito dela.10 Isso também se aplicava a mulheres que tinham dificuldades para se adaptar aos desafios do casamento plural. Tendo em vista que os tribunais locais não reconheciam esse tipo de casamento, os próprios líderes da Igreja resolviam os pedidos de divórcio envolvendo esposas plurais.11

Como Susie era a única esposa de Alma, seu caso era diferente. Por estar em um relacionamento abusivo, ela podia receber o divórcio, mas teria que comparecer com Alma diante de um tribunal civil. Em geral, naquela época as cortes nos Estados Unidos e na Europa tomavam partido dos homens em casos como aquele. Os líderes da Igreja aconselhavam ex-maridos a prover todo o sustento necessário para as ex-mulheres e os filhos, mas Alma insistia em ficar com a guarda das crianças e reter quase todos os bens da família.

A audiência para o divórcio de Susie e Alma durou dois dias. No final, Alma ficou com a guarda de sua filha Leah, de 4 anos de idade. Como seu filho, Bailey, tinha apenas 2 anos, a corte o colocou sob os cuidados de Susie, mas designou Alma como seu responsável legal.12

A perda dos filhos partiu o coração de Susie, e ela saiu da audiência desolada por causa da decisão. Porém, já que o divórcio a havia deixado sem propriedades e sem sustento, ela não teve muito tempo para ficar presa em sua dor. Ela precisava desesperadamente planejar o que fazer dali para frente.13

Pouco depois do divórcio, Susie conversou sobre seu futuro com o presidente John Taylor. Ela havia deixado a escola aos 14 anos, mas agora desejava voltar a estudar. O presidente Taylor manifestou seu apoio e ofereceu ajuda para que ela se matriculasse na escola secundária local. Contudo, ao sair do escritório dele, Susie encontrou o apóstolo Erastus Snow.

“Se você quer voltar a estudar, já sei para qual escola deve ir”, comentou ele. “Um lugar onde você preencherá sua alma com a rica luz da inspiração e ocupará sua mente com conhecimentos antigos e modernos. Esse lugar é a Academia Brigham Young, em Provo.”

No dia seguinte, Susie pegou um trem para o sul a fim de conhecer a academia. Apesar de ter sido fundada por seu pai, Susie sabia muito pouco a respeito da escola e de seus propósitos. Quando chegou lá, ela se encontrou com o diretor, Karl Maeser, que já havia sido seu professor. Ele a cumprimentou efusivamente e a matriculou na academia.14


Enquanto isso, na península de Kalaupapa, na ilha de Molokai, a saúde de Jonathan Napela estava cada vez pior. Quando começara a viver entre os leprosos da península, Napela não fora afligido pela doença que assolava tantos outros havaianos, inclusive sua esposa, Kitty. No entanto, cinco anos depois, a doença o havia acometido também. Seu rosto estava inchado e muitos dentes haviam caído, de forma que era quase impossível reconhecê-lo. Suas mãos, que haviam abençoado inúmeras pessoas durante mais de 20 anos, estavam cobertas de feridas.15

Em 26 de janeiro de 1878, Napela e Kitty receberam em sua casa dois missionários, Henry Richards e Keau Kalawaia, com Nehemia Kahuelaau, a autoridade presidente da Igreja em Molokai. Keau e Nehemia eram havaianos, membros da Igreja havia muito tempo, e ambos haviam servido diversas missões. Henry era irmão caçula do apóstolo Franklin Richards e havia servido sua primeira missão na ilha na década de 1850, poucos anos após o batismo de Napela. A última vez em que Henry havia se encontrado com Napela fora em Salt Lake City, em 1869, mas agora, menos de dez anos depois, ele ficou surpreso com a grande mudança de aparência do amigo.16

O dia seguinte era o Dia do Senhor, e Napela planejava levar seus hóspedes para visitar os ramos da península. Apesar de sua doença, Napela continuava a liderar a Igreja em Kalaupapa, supervisionando 78 santos divididos em dois ramos. Contudo, antes de poder empreender a viagem entre os assentamentos, Henry precisava apresentar um visto de turista para o padre Damien, o sacerdote católico que servia como superintendente da colônia. Henry iria passar a noite na casa do padre Damien, pois o conselho de saúde aconselhava os turistas a não passarem a noite junto de pessoas com lepra.

Infelizmente, o padre Damien também já havia contraído a lepra, mas a doença ainda estava nos estágios iniciais e ninguém sabia a respeito de sua condição. Assim como Napela, ele havia devotado sua vida para cuidar do bem-estar físico e espiritual daqueles exilados em Kalaupapa. Embora ele e Napela discordassem em algumas questões religiosas, haviam se tornado bons amigos.17

Na manhã seguinte, Napela e Henry participaram da reunião do ramo que congregava na residência de Lepo, o presidente do ramo, a qual ficava na costa leste da península. Cerca de 40 ou 50 pessoas, muitas das quais não eram membros da Igreja, participaram da reunião. Algumas pareciam estar em boas condições de saúde. Outras estavam cobertas de feridas, da cabeça aos pés. Ao ver seu sofrimento, Henry chorou. Ele e Keau falaram por 45 minutos cada um. Quando terminaram, Nehemia e Napela falaram brevemente.

Após a reunião matinal, Napela levou Henry e Keau para visitar o outro ramo na península. Em seguida, Henry passou aquela noite e a manhã seguinte visitando os mais doentes do assentamento, com o padre Damien.

Napela, Nehemia e Keau estavam esperando quando Henry retornou. Antes que os hóspedes fossem embora, Napela lhes pediu uma bênção. Não tardaria até que ele e Kitty ficassem confinados a uma cama, e aquela provavelmente era a última vez em que veriam Henry.

Henry colocou as mãos sobre a cabeça de Napela e proferiu a bênção. Com o coração pesaroso, os velhos amigos se despediram, então Henry, Keau e Nehemia iniciaram a trilha de volta pela montanha íngreme.18


No fim daquele verão, na zona rural de Farmington, Utah, Aurelia Rogers jantava com Eliza Snow e Emmeline Wells, duas proeminentes líderes da Sociedade de Socorro em Salt Lake City. Elas vieram a Farmington para uma conferência da Sociedade de Socorro, e Aurelia, a secretária local da organização, tinha uma ideia que queria compartilhar urgentemente com elas.19

Aurelia tinha plena ciência das necessidades das crianças. Aos 12 anos de idade, a mãe dela havia morrido, de modo que ela e a irmã mais velha cuidaram dos irmãos mais novos enquanto seu pai servia missão. Agora, com 40 anos de idade, tinha sete filhos vivos, o caçula sendo um menino de apenas 3 anos. Recentemente, ela andava muito preocupada com os meninos da comunidade. Eles eram bagunceiros e costumavam ficar fora de casa até tarde da noite.

“O que nossas meninas terão de fazer para encontrar bons maridos?”, perguntou Aurelia durante o jantar. “Não poderíamos criar uma organização para meninos e treiná-los para que se tornem homens melhores?”

Eliza ficou intrigada. Ela também achava que os meninos precisavam de mais orientação espiritual e moral do que a que recebiam na Escola Dominical ou no Ensino Fundamental.

Eliza levou a ideia para John Taylor, que deu sua aprovação. Ela também buscou o apoio de John Hess, o bispo de Aurelia. Eliza escreveu para ele falando sobre a proposta da organização, e o bispo Hess não tardou em chamar Aurelia como presidente da nova Associação de Melhoramentos Mútuos da Primária na ala.

Enquanto planejava formas de ajudar os meninos da ala, Aurelia percebeu que as reuniões seriam incompletas sem as meninas. Ela escreveu para Eliza e perguntou se poderia convidar também as meninas para participar da Primária.

“Precisamos cuidar tanto das meninas quanto dos meninos”, foi a resposta de Eliza. “Precisamos treiná-los juntos.”20

Num domingo de agosto de 1878, Aurelia e o bispo Hess se reuniram com os pais da região de Farmington para organizar a Primária. O bispo falou primeiro. “Espero que os pais percebam a importância deste movimento”, alertou ele. “Se existe algo nesta vida que merece a atenção dos pais, com certeza é o cuidado para com seus filhos.” Ele designou Aurelia e suas conselheiras por imposição de mãos, e então Aurelia falou com veemência sobre a necessidade de uma organização que apoiasse os pais no ensino das crianças.

“Pressinto que este movimento trará grandes benefícios”, ela comentou. Em seguida, comparou as crianças de Farmington a um pomar com árvores tenras. “As raízes das árvores precisam ser cuidadas”, advertiu, “pois, se as raízes forem firmes, a árvore será firme, e não teremos muitos problemas com os ramos”.21

Quinze dias depois, mais de 200 crianças se reuniram para a primeira reunião dominical da Primária. Aurelia deu o melhor de si para manter a ordem. Ela organizou as crianças em classes divididas por idade e designou a mais velha em cada turma para atuar como monitora. No encontro seguinte, ela pediu às crianças que erguessem o braço em sinal de apoio a ela e às demais líderes.

Aurelia ensinava coisas simples e sinceras às crianças: Ninguém é melhor do que os outros. Não briguem uns com os outros. Sempre paguem o mal com o bem.22


Em setembro de 1878, cerca de um mês após a organização da Primária, o presidente John Taylor enviou os apóstolos Orson Pratt e Joseph F. Smith em uma missão, com o intuito de coletar mais informações sobre os primeiros dias da Igreja. Orson era o historiador da Igreja, e Joseph havia trabalhado por muito tempo no escritório do historiador.

Em viagem para o leste, Orson e Joseph pararam no Missouri para visitar David Whitmer, uma das três testemunhas do Livro de Mórmon. Os apóstolos queriam entrevistá-lo e ver se ele estaria disposto a lhes vender o manuscrito que havia sido usado pelo editor para compor a tipografia da primeira edição do Livro de Mórmon. Martin Harris havia falecido em Utah no ano de 1875, e David era a única das três testemunhas ainda viva.

David aceitou conversar com os apóstolos no quarto do hotel onde estavam hospedados. Embora não tivesse retornado à Igreja após sua excomunhão em 1838, ele recentemente havia fundado outra igreja, que usava o Livro de Mórmon como escritura. Agora, com mais de 70 anos, David ficou surpreso quando Orson se apresentou. Em 1835, David havia ajudado Joseph Smith, Oliver Cowdery e Martin Harris a fazer o chamado de Orson como um dos primeiros apóstolos desta dispensação. Na ocasião, Orson era um homem tímido e esguio. Agora, tinha uma cintura avantajada, entradas no cabelo e uma longa barba branca.23

Logo no começo da entrevista, Orson perguntou se David se lembrava de quando vira as placas de ouro usadas por Joseph Smith para traduzir o Livro de Mórmon.

“Foi em junho de 1829”, respondeu David. “Joseph, Oliver e eu estávamos sentados em uma tora de madeira quando fomos encobertos por uma luz.” David relatou que o anjo que lhes aparecera portava os registros antigos, o Urim e Tumim e outros artefatos nefitas.

“Eu vi tudo aquilo tão claramente quanto vejo esta cama”, comentou ele enquanto batia no leito com a mão. “Ouvi a voz do Senhor com mais clareza do que qualquer outra coisa que jamais ouvi na vida, declarando que os registros das placas do Livro de Mórmon foram traduzidos pelo dom e poder de Deus.”

Orson e Joseph fizeram outras perguntas sobre o passado da Igreja, e David respondeu tão detalhadamente quanto pôde. Eles então perguntaram sobre o manuscrito do editor do Livro de Mórmon, que Oliver Cowdery havia entregue a David. “Você estaria disposto a nos vender o manuscrito?”, Orson perguntou.

“Não. Oliver o deixou aos meus cuidados”, foi a resposta de David. “Considero-o sagrado e não o venderia por dinheiro.”24

No dia seguinte, David mostrou o manuscrito aos apóstolos. Ao fazê-lo, enfatizou que o Senhor desejava que Seus servos levassem o Livro de Mórmon a todo o mundo.

“Isso mesmo”, respondeu Joseph, “e nós o enviamos à Dinamarca, à Suécia, à Espanha, à Itália, à França, à Alemanha, ao País de Gales e às ilhas do mar”.

“Como pode ver, pai Whitmer”, continuou Joseph, “a Igreja não está ociosa”.25


No final do outono, em Utah, Ane Sophie Dorius, uma senhora de 67 anos de idade, viajou para o Templo de St. George com seu filho mais velho, Carl. Já se haviam passado quase 30 anos desde que Ane Sophie se divorciara do pai de Carl, Nicolai, logo após ele ter se unido aos santos dos últimos dias. Durante esse tempo, ela conseguira deixar de lado as mágoas em relação à Igreja, abraçara o evangelho eterno e imigrara da Dinamarca, seu país natal, para se unir a Sião. Agora, estava prestes a participar das sagradas ordenanças que iriam unir sua família desfeita.26

Ane Sophie havia emigrado para Utah em 1874, dois anos após o falecimento de Nicolai. Antes de morrer, ele havia expressado esperança de que um dia pudesse se selar a Ane Sophie para a eternidade.27

Quando chegou em Utah, Ane Sophie se estabeleceu em Sanpete Valley, perto das famílias dos três filhos ainda vivos que tivera com Nicolai — Carl, Johan e Augusta. Ao longo dos anos, Ane Sophie havia visto seus filhos enquanto serviam missões na Escandinávia. Porém, quando se reencontrou com Augusta, ela já tinha 36 anos e sete filhos, e fazia mais de 20 anos que não se viam.28

Ao se estabelecer em Ephraim, Ane Sophie abraçou sua nova vida como mãe e avó. Quando Brigham Young e outros líderes da Igreja reorganizaram as alas e estacas em 1877, a Ala Ephraim foi dividida em duas, e Carl foi chamado para servir como bispo da Ala Ephraim Sul. Depois do chamado, sempre que Ane Sophie ia a uma peça ou um número musical na cidade, ela entrava sem comprar ingresso e simplesmente anunciava sorrindo: “Sou a mãe do bispo Dorius”.

Ane Sophie fora uma confeiteira de mão-cheia na Dinamarca e, após sua chegada, seus familiares em Utah aproveitaram seus talentos. Ela gostava de se arrumar bem para participar de confraternizações em que eram servidos bolos dinamarqueses. Em seu aniversário, ela pendurava um gerânio vermelho no vestido, assava um grande bolo e convidava familiares e amigos para celebrar com ela.29

Ane Sophie e Carl entraram no Templo de St. George em 5 de novembro, e ela foi batizada em favor de sua mãe e de sua irmã, que havia falecido quando ela era criança. Carl recebeu a ordenança em favor do pai de Ane Sophie. No dia seguinte, Ane Sophie recebeu a investidura e, posteriormente, realizou a ordenança em favor de sua mãe e de sua irmã, enquanto Carl a realizou em favor de seu avô. O selamento dos pais de Ane Sophie também foi realizado, tendo ela e Carl servido como procuradores.

No mesmo dia em que recebeu a investidura, Ane Sophie foi selada a Nicolai, tendo Carl servido como procurador, assim restaurando o laço que havia sido desfeito na mortalidade. Em seguida, Carl foi selado a seus pais, tendo como procurador em lugar de seu pai o apóstolo Erastus Snow, um dos primeiros missionários a servir na Dinamarca.30


No começo de janeiro de 1879, Emmeline Wells e Zina Presendia Williams, uma das filhas de Brigham Young, partiram de Utah para uma convenção nacional de líderes dos direitos das mulheres em Washington, D.C.31 Desde as reuniões de indignação em 1870, as mulheres santos dos últimos dias vinham lutando continuamente por seus direitos em Utah e no restante do país. Seu trabalho havia atraído a atenção de algumas das maiores ativistas nacionais pelos direitos das mulheres, tais como Susan B. Anthony e Elizabeth Cady Stanton, que foram juntas para Salt Lake City, onde falaram às mulheres santos dos últimos dias no verão de 1871.32

Ao participarem da convenção em Washington, Emmeline e Zina Presendia pretendiam pressionar o Congresso a favor da Igreja e das mulheres de Utah. Recentemente, num esforço contínuo para enfraquecer o poder político dos santos, alguns legisladores haviam proposto a supressão do direito de voto das mulheres de Utah. Emmeline e Zina Presendia queriam defender seu direito ao voto, condenar os esforços governamentais para interferir na Igreja e buscar apoio político no momento em que a condenação de George Reynolds por bigamia estava sendo revista pela Suprema Corte dos Estados Unidos.33

Aquela não era a primeira vez que Emmeline enfrentava um grande desafio pela Igreja. Em 1876, no ápice de uma infestação de gafanhotos, ela fora chamada por Brigham Young, Eliza Snow e líderes do movimento de resguardo para liderar uma iniciativa de armazenamento de grãos em todo o território. No final de 1877, por meio de sua liderança, as Sociedades de Socorro e as Associações das Moças haviam coletado mais de 10 mil alqueires de grãos e construído dois celeiros em Salt Lake City. Conforme instruídas por ela, muitas Sociedades de Socorro no território também haviam armazenado grãos em caixotes, que ficavam guardados nos salões da Sociedade de Socorro ou nas capelas.34

Emmeline, que era esposa plural de Daniel Wells, também era conhecida por ser uma defensora ferrenha do casamento plural e dos direitos das mulheres da Igreja. Em 1877, ela se tornou editora do Woman’s Exponent e usava a coluna para expressar sua opinião a respeito de diversos assuntos, tanto políticos quanto espirituais. Embora estivesse atolada de trabalho desde que assumira o jornal, ela acreditava que a publicação era essencial para a causa dos santos dos últimos dias.35

“Este jornal contribui para o aprimoramento e o benefício da sociedade”, observou ela em sua coluna, pouco após assumir o Woman’s Exponent. “Desejo fazer tudo o que estiver em meu poder para elevar a condição de meu povo, especialmente a das mulheres.”36

Quando Emmeline e Zina Presendia chegaram em Washington, George Q. Cannon, Susan B. Anthony e Elizabeth Cady Stanton lhes deram as boas-vindas à cidade. Também ficaram sabendo que dois dias antes a Suprema Corte dos Estados Unidos havia unanimemente mantido a condenação de George Reynolds, alegando que a constituição do país assegurava o direito à crença religiosa, mas não necessariamente à ação religiosa. A decisão da corte, para a qual não havia apelação, indicava que o governo federal tinha a liberdade de aprovar e aplicar leis que proibissem o casamento plural.37

Nos dias seguintes, Emmeline e Zina Presendia participaram da convenção de mulheres, defendendo o casamento plural e o direito ao sufrágio. “As mulheres de Utah nunca quebraram as leis do território”, declarou Emmeline, “e seria injusto e contrário à política se fossem privadas desse direito”.

“As mulheres de Utah não pretendem renunciar a seus direitos”, acrescentou Zina Presendia, “mas desejam auxiliar suas irmãs em todo o país”.38

Em 13 de janeiro, Emmeline, Zina Presendia e duas outras mulheres que participaram da convenção foram à Casa Branca para se encontrar com o presidente Rutherford Hayes. O presidente as recebeu em sua biblioteca e ouviu educadamente enquanto elas liam as resoluções da convenção, inclusive os pontos que o censuravam por não ter feito mais pelos direitos das mulheres.

Emmeline e Zina Presendia também o aconselharam a não aplicar a lei Morrill antipoligamia de 1862. “Milhares de mulheres seriam marginalizadas”, alegaram elas, “e, diante do mundo, seus filhos seriam considerados bastardos”.

O presidente Hayes demonstrou compreensão, mas não prometeu ajuda alguma. Pouco depois, sua esposa, Lucy, entrou na sala, ouviu os apelos de Emmeline e Zina Presendia e então as levou para conhecer a Casa Branca.39

Nas semanas seguintes, Emmeline e Zina Presendia testificaram diante de um comitê de congressistas e falaram com as lideranças políticas em favor dos santos. Além disso, apresentaram uma petição ao Congresso, solicitando a revogação da lei Morrill. Na petição, elas pediam ao Congresso que aprovasse leis que reconhecessem a legalidade de esposas e filhos em casamentos plurais já existentes.40 Algumas pessoas ficaram impressionadas pela coragem com que defenderam as crenças dos santos. Outras as consideravam criaturas exóticas, ou reclamavam por terem permitido que esposas plurais falassem na convenção dos direitos das mulheres.41

Antes de irem embora de Washington, Emmeline e Zina Presendia participaram de duas festas organizadas por Lucy Hayes. Apesar de seus esforços, Emmeline e Zina Presendia não haviam conseguido mudar a opinião do presidente em relação aos santos, e ele permaneceu determinado a destruir o “poder material” da Igreja em Utah. Ainda assim, Emmeline admirava a gentileza de Lucy, sua frugalidade, seu charme e sua firme resolução de não servir bebidas alcoólicas na Casa Branca.

Na recepção de 18 de janeiro, Emmeline presenteou Lucy com uma cópia do livro The Women of Mormondom, com uma carta pessoal. Dentro da obra, ela escrevera uma pequena mensagem:

“Aceite este livro como um sinal de amizade de uma esposa mórmon”.42

Capítulo 31

Os retalhos despedaçados da vida

Homem vestindo uniforme listrado de presidiário

Em um dia frio de janeiro de 1879, Ovando Hollister se sentou no escritório de John Taylor. Ovando era um coletor de impostos do território de Utah que, às vezes, escrevia artigos para um jornal dos estados do Leste. Depois da decisão da suprema corte dos Estados Unidos sobre o caso de George Reynolds, o jornal queria que Ovando procurasse saber o que John, o apóstolo sênior da Igreja, pensava a respeito.

John geralmente não dava entrevistas a repórteres, mas, como se tratava do pedido de um representante do governo, ele se sentiu obrigado a dar a conhecer seus pontos de vista sobre a liberdade religiosa e a decisão da suprema corte. “Uma fé religiosa de nada vale a menos que tenhamos a permissão de colocá-la em prática”, disse ele a Ovando. A decisão do tribunal foi injusta, explicou ele, porque restringe o direito que os santos têm de praticar suas crenças. “Não creio que a suprema corte nem o congresso dos Estados Unidos tenham qualquer direito de interferir em meus pontos de vista religiosos”, declarou ele.

Valeria a pena continuar a praticar o casamento plural, perguntou Ovando, já que isso significaria constante oposição por parte do governo?

“Eu diria respeitosamente que não somos a parte que produz esse antagonismo”, disse John. Ele acreditava que a constituição dos Estados Unidos protegia o direito dos santos de praticar o casamento plural. Ao aprovar uma lei inconstitucional, argumentou John, o congresso criou toda tensão que existia entre a Igreja e a nação. “A questão agora é se devemos obedecer a Deus ou ao homem”, disse.

“Você não poderia coerentemente deixar de praticar a poligamia”, perguntou Ovando, “sob o argumento de que não há perspectiva de haver mudança na opinião e na lei do país que são contrárias a ela?” Ele não achava que a Igreja conseguiria sobreviver por muito tempo se continuasse a se opor à lei antipoligamia.

“Deixamos isso a cargo de Deus”, disse John. “Cabe a Ele cuidar de Seus santos.”1


Naquela primavera, na Academia Brigham Young, Susie Young começava cada dia letivo às 8h30 da manhã. Os alunos se reuniam em um edifício de tijolos vermelhos de dois andares, na rua central de Provo. A faixa etária variava entre crianças, homens e mulheres com 20 e poucos anos. A maioria não estava acostumada a atividades escolares diárias que começavam no horário. Mas o diretor Karl Maeser insistia na pontualidade.2

Susie adorava estar na academia. Um de seus colegas de classe, James Talmage, tinha imigrado recentemente da Inglaterra e era apaixonado por ciências. Outro, Joseph Tanner, trabalhava na fábrica de fiação de lã de Provo e havia convencido o diretor Maeser a dar início a aulas noturnas para os trabalhadores da fábrica.3 O presidente da fiação, Abraham Smoot, liderava a junta de diretores da academia. Sua filha, Anna Christina, dava aulas para os alunos mais jovens durante parte do dia, sendo ela mesma uma estudante. Seu irmão mais novo Reed também frequentava a academia, preparando-se para seguir carreira como empresário.4

O diretor Maeser nutria o amor dos alunos pelo evangelho e pelo aprendizado. Brigham Young pedira que ele fizesse da Bíblia, do Livro de Mórmon e de Doutrina e Convênios os livros-texto padrão da escola. Os alunos faziam cursos sobre os princípios do evangelho, com os temas acadêmicos costumeiros. Nas tardes de quarta-feira, o diretor Maeser reunia os alunos para um devocional. Depois da oração, eles prestavam testemunho e contavam o que estavam aprendendo em sala de aula.5

Como fizera alguns anos antes, ao dar aulas na casa da família Young, em Salt Lake City, o diretor Maeser aconselhava Susie a desenvolver seu potencial. Ele a incentivou a escrever e a se lembrar de seu objetivo de atingir um padrão elevado em suas obras. Também confiou a ela o encargo de fazer as atas oficiais dos devocionais.

Como Utah tinha poucos educadores formados, o diretor Maeser geralmente recrutava professores entre seus estudantes mais velhos. Certo dia, enquanto caminhava para casa depois da escola com Susie e a mãe dela, Lucy, ele parou abruptamente no meio da rua.

“A senhorita Susie conhece música o suficiente para dar aulas?”, perguntou.

“É claro que sim”, respondeu Lucy. “Ela já dá aulas desde quando tinha 14 anos.”

“Preciso pensar nisso”, disse o diretor.

Em poucos dias, Susie começou a organizar o departamento de música da academia, sob a direção do diretor Maeser. Como não havia piano na academia, ela comprou um para usar com os alunos. Assim que ela conseguiu uma sala de aula, James Talmage a ajudou a programar os horários letivos, os ensaios para concertos e as aulas individuais dos alunos. Ela passou a despender a maior parte do tempo como professora de música.6

Por mais que Susie gostasse da academia, ainda tinha dificuldades para aceitar seu divórcio. Seu filho, Bailey, estava com ela em Provo, mas o ex-marido enviara a filha, Leah, para morar com a família dele, em Bear Lake, a mais de 240 quilômetros ao norte dali. Susie se preocupava achando que havia estragado sua vida e se perguntava se arruinara sua chance de ser feliz.

Mais tarde, porém, começou a trocar cartas com Jacob Gates, um amigo de St. George que servia missão no Havaí. A princípio, as cartas eram apenas amigáveis, mas ela e Jacob começaram a trocar confidências um com o outro. Susie compartilhou os pesares que teve no primeiro casamento, sua alegria na academia e seu anseio de fazer mais na vida do que dar aulas de música.

“Não, Jake, não quero passar a vida sendo professora”, escreveu-lhe ela em uma carta. “Espero me tornar escritora um dia. Quando tiver estudos suficientes.”

Depois do final do período letivo, Susie planejava ir até o Havaí com Zina Young, uma das viúvas de seu pai a quem ela chamava de sua “outra mãe”, para visitar as Sociedades de Socorro. Ela esperava se encontrar com Jacob enquanto estivesse ali. Embora temesse não atingir seu potencial na vida, ela ainda tinha fé que os céus estavam cientes dela.

“Deus é bom”, escreveu Susie para Jacob, “e Ele vai me ajudar a recolher os retalhos despedaçados da vida e consertá-los de modo que se tornem algo útil”.7


Após uma viagem de quatro dias de trem, George Reynolds chegou à prisão estadual do Nebraska, a quase 1.500 quilômetros a leste de Salt Lake City, para cumprir pena de dois anos por bigamia. Ali dentro, os guardas confiscaram seus pertences, inclusive suas roupas e seus garments do templo. Depois de tomar banho, rasparam-lhe a cabeça e a barba.

Foi-lhe designada uma cela, e ele recebeu uma camisa grossa, sapatos, um boné e um uniforme listrado azul e branco de prisioneiro. Três vezes por dia, Reynolds era conduzido com os outros prisioneiros em silêncio até a mesa de comida, onde retirava sua refeição e retornava à cela para comer sozinho. Após alguns dias, os carcereiros lhe devolveram os garments, e ele se sentiu grato por suas crenças serem respeitadas ao menos nesse aspecto.

Dez horas por dia, seis dias por semana, Reynolds trabalhava como guarda-livros na loja de artigos de lã da prisão. Aos domingos, ele assistia a um breve culto religioso realizado para os prisioneiros. Uma vez a cada duas semanas, os regulamentos da prisão permitiam que ele escrevesse para suas esposas, Mary Ann e Amelia. Ele pedia a elas que escrevessem sempre que pudessem, mas que estivessem cientes de que as cartas seriam abertas e lidas antes de serem entregues a ele.8

Depois de um mês de negociações em Washington, D.C., George Q. Cannon conseguiu que Reynolds fosse transferido para a prisão territorial em Utah.9

Em Ogden, a família de Reynolds o abraçou quando ele fez a baldeação e embarcou no trem para Salt Lake City. Seus filhos mais novos não o reconheceram sem a barba.

“Tenham certeza de que há muitos lugares piores no mundo do que a prisão por motivos de consciência”, escreveu Reynolds mais tarde para sua família. “Não podem tirar de mim a paz que reina em meu coração.”10


Naquele verão, no sul dos Estados Unidos, Rudger Clawson, de 20 anos, e seu companheiro de missão, Joseph Standing, estavam pregando em uma área rural do estado de Geórgia. Rudger, antigo secretário do escritório de Brigham Young, era um missionário relativamente novo. Joseph, de 24 anos, por outro lado, já tinha servido missão e estava presidindo os ramos da Igreja na região.11

O lugar em que trabalhavam tinha sido devastado pela Guerra Civil Americana, e muitas pessoas desconfiavam de forasteiros. Desde a decisão tomada no caso de George Reynolds, a região se tornara mais hostil aos santos dos últimos dias. Os pregadores e jornais espalhavam rumores sobre os élderes, e turbas estavam invadindo a casa de pessoas que eles suspeitavam estar abrigando missionários “mórmons”.

Joseph morria de medo de ser apanhado por uma turba, sabendo que, às vezes, eles amarravam as vítimas em um tronco e as chicoteavam. Ele disse a Rudger que preferia morrer a ser chicoteado.12

Na manhã de 21 de julho de 1879, Rudger e Joseph viram uma dúzia de homens à frente deles na estrada. Três dos homens estavam a cavalo, o restante a pé. Cada homem trazia consigo uma arma de fogo ou clava. Os élderes pararam enquanto os homens os encaravam em silêncio. Depois, em um movimento rápido, os homens lançaram para longe o chapéu e avançaram na direção dos missionários. “Vocês são nossos prisioneiros”, gritou um dos homens.

“Se tiverem um mandado de prisão, queremos vê-lo”, disse Joseph. Sua voz era alta e clara, mas ele parecia pálido.

“Os Estados Unidos da América estão contra vocês”, disse um dos homens. “Não há lei na Geórgia contra os mórmons.”

Sacando as armas, a turba levou os missionários para dentro do bosque próximo. Joseph tentou conversar com os líderes. “Não é nossa intenção permanecer nesta parte do estado”, disse ele. “Pregamos o que entendemos ser a verdade e deixamos a critério das pessoas aceitar ou não.”

Suas palavras não tiveram qualquer efeito. A turba logo se dividiu, e alguns dos homens levaram Rudger e Joseph para um lugar ao lado de uma fonte de água límpida.

“Quero que vocês homens entendam que sou o capitão deste grupo”, disse um homem mais velho. “Se os encontrarmos novamente nesta parte do país, vamos enforcá-los como a cães.”

Por uns 20 minutos, os missionários ficaram ouvindo os homens os acusarem de terem ido para a Geórgia para roubar suas esposas e filhas a fim de levá-las para Utah. Muitos dos rumores espalhados no sul dos Estados Unidos acerca dos missionários se baseavam em noções extremamente errôneas a respeito do casamento plural, e alguns dos homens sentiam que, em nome da honra, tinham a obrigação de proteger as mulheres de sua família por todos os meios necessários.

A conversa encerrou quando os três homens a cavalo chegaram à fonte. “Sigam-nos”, disse um homem que portava um rifle.

Joseph se levantou de um salto. Será que o iriam chicotear? Um dos integrantes da turba tinha deixado uma pistola sobre um tronco de árvore cortado, e Joseph a agarrou.

“Rendam-se!”, gritou ele para a turba.

Um homem que estava à esquerda de Joseph se levantou e o alvejou no rosto. Joseph ficou parado por um instante, cambaleou e tombou no meio da floresta. Fumaça e pó se ergueram ao redor dele.

O líder dos homens apontou o dedo para Rudger. “Atirem neste homem!”, gritou ele. Rudger olhou em volta. Todos os homens armados estavam mirando em sua cabeça.

“Atirem”, disse Rudger, cruzando os braços. Estava com os olhos abertos, mas o mundo pareceu escurecer.

“Não atirem”, ordenou o líder da turba, mudando de ideia. Os outros homens abaixaram as armas, e Rudger se agachou ao lado do companheiro. Joseph tinha se virado, ficando de barriga para cima. Havia um grande ferimento a bala em sua testa.

“Não é horrível ele ter dado um tiro em si mesmo?”, disse alguém da turba.

O que acontecera fora assassinato, não suicídio, sabia Rudger. Mas não ousou discordar do homem. “Sim, é horrível”, respondeu. “Precisamos pedir socorro.” Ninguém da turba se moveu, e Rudger começou a ficar ansioso. “Vocês devem ir, ou então me enviem”, insistiu ele.

“Vá pedir ajuda”, disse-lhe um homem.13


No domingo, 3 de agosto, John Taylor estava diante de 10 mil rostos solenes, ao púlpito do tabernáculo de Salt Lake City. Atrás dele, os assentos estavam cobertos de pano preto e adornados com arranjos florais. Os homens ordenados ao sacerdócio estavam sentados em grupo, como quóruns, e os outros santos ocupavam os demais assentos no piso térreo e na galeria. Perto do púlpito, à plena vista da congregação, estava o caixão de Joseph Standing, decorado com flores.14

Depois que a turba o liberou, Rudger Clawson encontrou ajuda na casa de um amigo que morava nas proximidades e enviou um telegrama para Salt Lake City relatando o assassinato de Joseph. Ele retornou depois ao local do assassinato com um legista para buscar o corpo do companheiro, que tinha sido desfigurado por mais tiros em sua ausência. Uma semana e meia mais tarde, Rudger levou o corpo de volta a Utah, por trem, em uma pesada caixa de metal. A notícia do assassinato se espalhou rapidamente para todas as partes do território.15

John compartilhava do ultraje e da tristeza dos santos. Mas acreditava que deviam ficar orgulhosos ao mesmo tempo que tristes. Joseph morrera em retidão pela causa de Sião. Seu assassinato não impediria que a obra de Deus seguisse adiante.16 Os santos continuariam a construir templos, a enviar missionários por todo o mundo e a expandir as fronteiras de Sião.

Sob a liderança de Brigham Young, os santos tinham estabelecido centenas de assentamentos no oeste dos Estados Unidos, espalhando-se para fora de Utah até os estados vizinhos de Nevada, Wyoming, Novo México e Idaho. No último ano de sua vida, Brigham enviara 200 colonos para se estabeleceram ao longo do rio Little Colorado, no nordeste do Arizona.

Mais recentemente, por convocação de John Taylor, 70 conversos do sul dos Estados Unidos haviam se unido aos santos escandinavos no estabelecimento de uma cidade chamada Manassa, no vizinho estado do Colorado. No sudeste de Utah, uma grande companhia de santos estava cruzando os profundos desfiladeiros da região para se instalar ao longo do rio San Juan.17

John sabia que os princípios da verdade continuariam a encher o mundo a despeito das mãos ímpias que os tentavam derrubar. “Os homens podem clamar por nossas propriedades, podem clamar por nosso sangue, assim como muitos fizeram em outros tempos”, declarou ele, “mas, em nome do Deus de Israel, Sião seguirá em frente e prosperará”.18


Os ventos sopravam sobre os campos de taioba quando Zina e Susie Young seguiam de carruagem por sobre as altas montanhas que dividiam a ilha de Oahu. Zina e Susie estavam indo de Honolulu a Laie, o local de coligação dos santos havaianos. A estrada que descia as encostas do outro lado era tão íngreme que uma barra de ferro tinha sido colocada em um dos lados para impedir a queda dos viajantes. E era preciso a ajuda de dois homens puxando uma longa corda para estabilizar a carruagem enquanto ela descia para o vale verdejante abaixo.19

A Igreja já estava bem estabelecida nas ilhas havaianas, havendo aproximadamente um santo dos últimos dias em cada 12 havaianos.20 Quando Zina e Susie chegaram a Laie, os santos as receberam com uma faixa, música e danças. Acolheram as visitantes com uma refeição de boas-vindas e cantaram um hino especialmente composto para a ocasião.

Após se acomodar para uma visita de dois meses, Zina se reuniu com santos que, tal como ela, eram pioneiros grisalhos. Entre eles estava a presidente da Sociedade de Socorro, Mary Kapo, cunhada de Jonathan Napela, o fiel missionário e líder da Igreja havaiano. Anteriormente naquele verão, Napela falecera em Molokai, firme em seu testemunho, apenas duas semanas antes de sua esposa, Kitty.21

Zina adorou o tempo que passou com os santos havaianos. Ela e Susie se reuniam com frequência com a Sociedade de Socorro e as moças. Em sua primeira reunião, as irmãs havaianas trouxeram um melão, uma sacola de batatas doces, um pepino, alguns ovos, um peixe e uma abóbora. “Achei que fosse doação para os pobres”, escreveu Zina no diário, “mas eram presentes que simbolizavam sua amizade por nós”.22

Certa noite, alguns santos se reuniram em uma casa para ouvir Jacob Gates, o amigo missionário de Susie, tocar “Ó, meu pai” em um órgão que Zina comprara para os santos de Laie. Ao ouvir os havaianos cantarem, Zina pensou em sua amiga Eliza Snow, que escrevera o hino em Nauvoo, tantos anos antes. O hino ensinava sobre os Pais Celestes e outras verdades que Zina aprendera com o profeta Joseph Smith. Ele estava agora sendo cantado em uma parte totalmente diferente do mundo.23

Três dias depois, Susie e Jacob fizeram um passeio juntos pelo desfiladeiro. Susie escrevera uma breve carta de amor para Jacob duas semanas antes, enquanto ele passava o dia fora de Laie, cuidando do trabalho missionário.

“Estou pensando em você agora, longe no alto das montanhas”, escreveu ela. “Você está desejando, como eu, que esse trabalho não tivesse que ser feito hoje, que pudéssemos conversar sobre o futuro e expressar de mil maneiras o que nos passa pela mente?”24

Enquanto Susie e Jacob namoravam, Zina planejava comemorar o segundo aniversário do falecimento de Brigham Young com os santos havaianos. Em 29 de agosto, os membros da Igreja de toda Laie comemoraram a data com ela e Susie. Meninos e meninas decoraram a capela, as irmãs da Sociedade de Socorro compraram carne bovina para o banquete e outros santos cavaram um buraco para assar a carne.

Zina ficou grata pelo empenho deles. Estavam honrando não apenas seu marido falecido, sentiu ela, mas também os princípios que ele tanto se esforçara para estabelecer entre os santos.

No domingo, Zina ajudou a organizar uma nova Sociedade de Socorro com 30 irmãs. Ela e Susie partiram no dia seguinte. Ao se afastarem cada vez mais da ilha, Zina perguntou a Susie se ela estava feliz em voltar para casa. Susie se sentia dividida. Estava ansiosa para rever os filhos, mas também desejava estar com o homem com quem esperava se casar.

“Queria poder me colocar dentro de um envelope e ser enviada para você”, escreveu ela para Jacob durante a viagem. “Não posso vê-lo agora e tudo que posso fazer é me sentar e ficar sonhando com o passado feliz e com o futuro abençoado.”25


Meliton Trejo estava morando no sul do Arizona quando recebeu um chamado do presidente Taylor para servir missão na Cidade do México. Já fazia três anos que Meliton se despedira dos primeiros missionários que partiram rumo ao México. Em sua jornada, os missionários distribuíram centenas de cópias da tradução feita por Meliton de trechos do Livro de Mórmon. Os líderes da Igreja em breve começaram a receber cartas de leitores dos Trozos Selectos pedindo mais missionários.

Meliton mostrara que estava pronto para servir com seu trabalho de tradução e então se preparava para acompanhar James Steward e o recém-chamado apóstolo Moses Thatcher em uma viagem até a capital do México.

Os três missionários se encontraram em Nova Orleans, de onde embarcaram em um navio a vapor para Veracruz. Dali, viajaram até a Cidade do México de trem.26 No dia seguinte à sua chegada, reuniram-se no hotel onde estavam hospedados com Plotino Rhodakanaty, o líder de um grupo de cerca de 20 fiéis da Cidade do México. Plotino, nascido na Grécia, recebeu-os calorosamente. Suas cartas ao presidente Taylor tinham sido muito importantes para persuadir os apóstolos a enviar missionários para a cidade.27 Enquanto Plotino os esperava, ele e outros conversos que ainda não tinham sido batizados deram início a um jornal sobre o evangelho restaurado chamado La Voz del Desierto (A Voz do Deserto).28

Mais tarde naquela semana, os missionários foram até um tranquilo olival nas cercanias da cidade e Moses batizou Plotino e seu amigo Silviano Arteaga em uma piscina de águas quentes que brotavam de uma fonte. “Toda a natureza sorria a nosso redor, e creio que os anjos se regozijavam nas alturas”, escreveu Moses em seu diário.29

Em poucos dias, Meliton batizara mais seis pessoas. Os missionários organizaram um ramo e começaram a realizar reuniões na casa de Plotino. Eles ensinavam o evangelho uns aos outros e abençoavam os enfermos. Moses chamou Plotino para servir como presidente do ramo, com Silviano e outro recém-converso, Jose Ybarola, como conselheiros.

Após cuidadoso planejamento e oração, os missionários decidiram traduzir Voz de Advertência, de Parley Pratt, e outros folhetos da Igreja. Às vezes, a filiação à Igreja tinha um preço, como Plotino descobriu ao perder o emprego de professor por se recusar a negar sua nova religião. Mas o pequeno ramo estava crescendo, e tanto os missionários quanto os conversos sentiram que estavam fazendo parte de algo de grande importância.

Meliton, James e Plotino terminaram a tradução de Voz de Advertência em 8 de janeiro de 1880. Poucos dias depois, Moses escreveu ao presidente Taylor, relatando o progresso da missão.

“Aproveitaremos todas as oportunidades de adquirir conhecimento útil e ao mesmo tempo faremos tudo o que pudermos para divulgar o conhecimento das verdades do evangelho”, assegurou ele a John. “E cremos que o Senhor nos ajudou e continuará a fazê-lo.”30

Capítulo 32

Levantar-nos e aguentar o tranco

Homem e mulher se abraçando após o batismo da mulher

George Q. Cannon e sua esposa Elizabeth estavam em Washington, D.C., no início de 1880. Uma nova legislatura tinha início no Congresso, e George ainda servia como representante do território de Utah. Naquele ano, ele e Elizabeth estavam acompanhados de suas duas filhas. Eles esperavam passar uma imagem positiva das famílias santos dos últimos dias aos políticos e editores de jornais da nação.1

Muitas pessoas sabiam, é claro, que George e Elizabeth praticavam o casamento plural. Na verdade, George tinha quatro esposas e 20 filhos vivos. Ainda assim, como comentou um repórter, a família Cannon não se enquadrava nas caricaturas populares dos santos. “Se as virtudes de uma instituição fossem classificadas de acordo com seus resultados refinados e inteligentes”, escreveu um repórter, “não haveria preconceitos contra a poligamia”.2

Mas o preconceito contra os santos só piorara desde a decisão da suprema corte dos Estados Unidos, um ano antes, no caso de George Reynolds. Em seu discurso anual para a nação, promulgado em dezembro de 1879, o presidente Rutherford Hayes condenara a poligamia e pedira aos agentes da lei que apoiassem a lei antipoligamia Morrill.3

A mensagem do presidente encorajou alguns congressistas a se oporem ainda mais ao casamento plural. Um legislador apresentou um projeto de lei propondo uma emenda constitucional que proibisse a poligamia. Outro declarou sua intenção de expulsar George Q. Cannon do Congresso. Enquanto isso, cidadãos de todo o país começaram a pressionar seus representantes para que se esforçassem mais para erradicar o casamento plural.

“Nuvens pesadas parecem se juntar a nosso redor”, escreveu George a John Taylor em 13 de janeiro. “Se o Senhor não nos fornecer para-raios para desviar o choque elétrico para outro lugar, como tenho certeza que Ele o fará, não vejo outra opção para nós além de levantar-nos e aguentar o tranco.”4


Certa noite, por volta dessa época, Desideria Quintanar de Yáñez teve um sonho no qual ela viu um livro chamado Voz de Amonestación ser impresso na Cidade do México. Quando acordou, sabia que tinha que encontrar aquele livro.5

Desideria, uma descendente do governante asteca Cuauhtémoc, era muito respeitada em Nopala, a cidade em que ela e seu filho José moravam. Embora a maioria das pessoas fosse católica no México, Desideria e José faziam parte de uma congregação protestante local.6

Desideria sentiu que precisava ir à Cidade do México procurar aquele livro misterioso, mas a cidade ficava a 120 quilômetros dali. Poderia percorrer parte do trajeto pela ferrovia, mas a maioria da viagem seria a pé por estradas não pavimentadas. Desideria estava com mais de 60 anos e não tinha condições de fazer a árdua jornada.7

Determinada a encontrar o livro, ela contou ao filho sobre seu sonho. José acreditou nela e partiu em breve para a Cidade do México em busca do livro desconhecido.8

Quando José retornou, ele contou para Desideria a experiência extraordinária que tivera. Viu que a Cidade do México tinha centenas de milhares de pessoas, e sua busca pelo livro parecia sem esperanças. Mas, certo dia, enquanto caminhava pelas agitadas ruas da cidade, ele encontrou Plotino Rhodakanaty, que lhe falou de um livro chamado Voz de Amonestación.

Plotino enviou José a um hotel para falar com o missionário James Stewart. Ali, José ficou sabendo que Voz de Amonestación era a tradução em espanhol de um livro chamado Voz de Admoestação, que os missionários santos dos últimos dias estavam usando havia décadas para apresentar sua religião às pessoas que falavam inglês. Ele testificava acerca da Restauração do evangelho de Cristo e do surgimento do Livro de Mórmon, um registro sagrado dos antigos habitantes das Américas.9

Voz de Amonestación ainda não tinha saído da gráfica, mas James deu folhetos religiosos a José para que ele levasse para casa. José levou os folhetos para a mãe, e ela os estudou cuidadosamente. Desideria, então, pediu aos missionários que fossem até Nopala e a batizassem.

Meliton Trejo chegou à cidade em abril e, a pedido deles, batizou Desideria, José e a filha de José, Carmen. Poucos dias depois, José voltou à Cidade do México e recebeu o Sacerdócio de Melquisedeque. Quando voltou para casa, trazia os braços cheios de folhetos e livros, inclusive dez exemplares do recém-impresso Voz de Amonestación.10


As lembranças mais antigas de Ida Hunt eram de seu avô Addison Pratt balançando-a no colo. Na época, a família de Ida morava em uma fazenda próxima de San Bernardino, Califórnia. Seus pais, John e Lois Pratt Hunt, tinham se estabelecido ali quando Ida tinha por volta de 1 ano de idade. Poucos anos depois, porém, incentivados por Louisa Pratt, a avó de Ida, a família se mudou para Beaver, uma cidadezinha no sul de Utah, onde Louisa vinha morando desde 1858.

Addison morreu na Califórnia em 1872. Embora ele e Louisa não tivessem conseguido resolver suas diferenças e moraram separados durante a maior parte de seus últimos 15 anos de casados, continuavam a mostrar afeto por suas filhas e seus netos. Ida amava muito os dois.11

Ela morava a um quarteirão da casa de Louisa e passava inúmeras tardes ao lado da avó, aprendendo uma lição após outra. Em 1875, quando Ida estava com 17 anos, ela e a família se mudaram de Beaver. Três anos mais tarde, os líderes da Igreja chamaram a família para se mudar novamente, dessa vez para a cidade de Snowflake no território do Arizona. Mas, em vez de ir com a família, Ida decidiu voltar para Beaver e morar com a avó por algum tempo.

De volta a Beaver, Ida era indispensável para a avó e as duas tias, Ellen e Ann, que moravam perto. Ela ajudava nas tarefas domésticas e cuidava dos familiares enfermos. Mas nem todo o tempo de Ida era despendido em casa. Suas noites geralmente eram repletas de jantares, festas e concertos. Ela logo começou a namorar com um rapaz chamado Johnny.

Na primavera de 1880, a família e os amigos de Ida que moravam em Snowflake pediram que ela fosse para casa, e Ida tomou a difícil decisão de sair de Beaver. Louisa mal conseguia falar quando se despediu da neta e lhe desejou uma viagem segura. Seu único consolo era o pensamento de que o relacionamento de Ida com Johnny poderia fazer com que ela voltasse para Beaver.12

Ida viajou para Snowflake com a família de Jesse Smith, presidente da Estaca Arizona Leste. Em relação a duas de suas esposas, Emma e Augusta, havia algo de sagrado e altruísta no relacionamento entre elas que Ida admirava muito. Os pais de Ida não praticavam o casamento plural, por isso ela tivera pouca experiência em observar como as famílias plurais funcionavam. Mas, quanto mais tempo passava com a família Smith, mais considerava a possibilidade de ela mesma praticar o casamento plural.13

Fazer isso diferenciaria Ida de outros santos de sua idade. Embora a maioria dos santos aceitasse e defendesse o casamento plural, o número de famílias plurais na Igreja estava diminuindo. A prática se limitava em grande parte aos santos do Oeste americano, e não eram realizados casamentos plurais entre os membros da Igreja da Europa, do Havaí e de outros lugares do mundo inteiro.

No auge da prática, no final da década de 1850, metade das pessoas de Utah tinha a expectativa de fazer parte de uma família plural durante a vida. Esse índice diminuíra para cerca de 20 ou 30 por cento, e continuava a cair.14 Como o casamento plural não era obrigatório para os membros da Igreja, os santos podiam manter sua condição de bons membros da Igreja e perante Deus se decidissem não o praticar.15

Vários meses depois de Ida ter chegado a Snowflake, ela recebeu a notícia do falecimento de sua avó. Tomada de tristeza, Ida sentiu remorso por ter deixado Louisa. Se tivesse permanecido em Beaver, disse a si mesma, poderia ter consolado a avó em seus últimos meses de vida.

Por volta dessa época, Ida também recebeu uma carta de Johnny. Ele queria ir para o Arizona e se casar com ela. Mas a essa altura ela esperava se casar com um homem que estivesse disposto a praticar o casamento plural. Johnny não tinha fé no evangelho e Ida sabia que ele não era a pessoa certa para ela.16


Em 1880, a Igreja comemorou o aniversário de 50 anos desde a Restauração. Relembrando que a antiga Israel comemorava um jubileu a cada 50 anos para perdoar dívidas e livrar pessoas da escravidão, o presidente John Taylor cancelou as dívidas de milhares de santos pobres que tinham ido para Sião com empréstimos do Fundo Perpétuo de Emigração. Pediu aos santos que eram donos de bancos e empresas que cancelassem parte das dívidas que lhes eram devidas e instou os membros da Igreja a doar animais para os necessitados.

Também pediu a Emmeline Wells, presidente do comitê de cereais da Sociedade de Socorro, que emprestasse aos bispos todo o trigo dos celeiros da Sociedade de Socorro necessário para alimentar os pobres das alas.17

Em junho, o presidente Taylor assistiu à conferência da Sociedade de Socorro da Estaca Salt Lake. A reunião incluiu representantes da Associação Primária e da Associação de Melhoramentos Mútuos das Jovens Damas (A.M.M.J.D.), que eram consideradas auxiliares da Sociedade de Socorro. Durante a reunião, Eliza Snow nomeou Louie Felt, presidente da Primária de uma ala, para supervisionar as Primárias de toda a Igreja. A congregação apoiou Louie e também duas mulheres para servirem como suas conselheiras.

Mais tarde, na mesma reunião, o presidente Taylor pediu a um secretário que lesse o relato da organização da Sociedade de Socorro de Nauvoo em 1842. O presidente Taylor estivera presente na primeira reunião em que Emma Smith fora eleita presidente da sociedade. Ele também dera às conselheiras de Emma, Sarah Cleveland e Elizabeth Ann Whitney, autoridade para agir em seu chamado.

Depois que o secretário terminou de ler o relato, o presidente Taylor falou sobre os poderes e os deveres que a Sociedade de Socorro proporcionava às mulheres. Mary Isabella Horne propôs, então, que ele designasse Eliza Snow como presidente de todas as Sociedades de Socorro da Igreja. Eliza tinha servido como secretária da Sociedade de Socorro original e estivera aconselhando todas as Sociedades de Socorro das alas por mais de uma década. Mas não havia uma presidente geral da Sociedade de Socorro desde que Emma Smith liderara a organização na década de 1840.

O presidente Taylor apresentou o nome de Eliza para ser a presidente geral da Sociedade de Socorro, e a congregação a apoiou. Eliza então escolheu Zina Young e Elizabeth Ann Whitney como conselheiras, Sarah Kimball como secretária e Mary Isabella Horne como tesoureira. Tal como Eliza, todas tinham participado da Sociedade de Socorro de Nauvoo e servido na organização desde que fora estabelecida em Utah.

No final daquela tarde, durante a última reunião da conferência, Eliza apresentou o nome de Elmina Taylor, uma das conselheiras de Mary Isabella Horne na presidência da Sociedade de Socorro de uma estaca, para servir como presidente geral da Associação de Melhoramentos Mútuos das Jovens Damas. Elmina foi apoiada com conselheiras, uma secretária e uma tesoureira.18

As mulheres de todo o território se regozijaram com essas novas presidências gerais.

“Sinto-me muito contente de ver minhas irmãs agindo assim”, declarou Phebe Woodruff na reunião de uma Sociedade de Socorro, um mês depois. Belinda Pratt, a presidente da Sociedade de Socorro de uma estaca, escreveu em seu diário: “Que época grandiosa de se viver! Que grandes responsabilidades têm as irmãs da Igreja! Que grande obra estão realizando!”19

Outras mudanças inspiradas ocorreram na Igreja naquele ano. Desde o falecimento de Brigham Young, ocorrido três anos antes, o Quórum dos Doze vinha liderando a Igreja sem uma Primeira Presidência. Após discutirem e orarem a respeito do assunto, o quórum apoiou unanimemente John Taylor como o presidente da Igreja, tendo George Q. Cannon e Joseph F. Smith como seus conselheiros. Posteriormente, numa sessão lotada da conferência geral de outubro, os santos ergueram a mão para apoiar a nova presidência.20

Após o apoio, George Q. Cannon se levantou e propôs que a Pérola de Grande Valor, uma coletânea de alguns escritos e traduções inspiradas feitas por Joseph Smith, fosse aceita como uma das obras-padrão da Igreja. Embora os missionários já usassem edições da Pérola de Grande Valor desde que fora publicada em 1851, foi só naquela ocasião que aos membros foi solicitado que a aceitassem como um volume de escrituras.

“É gratificante ver a unidade de sentimentos que foi manifestada em nossos votos de apoio”, disse o presidente Taylor posteriormente. “Continuem agora a ser unidos em outras coisas, como foram nisso, e Deus estará a nosso lado daqui por diante.”21


Seis meses depois, na agitada cidade costeira de Trondheim, Noruega, Anna Widstoe saiu das águas congelantes como membro recém-batizada de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Embora sentisse o corpo frio, tinha o fogo do evangelho ardendo dentro de si e estava repleta de amor pelos santos que a rodeavam.

O caminho de Anna não tinha sido fácil. O marido falecera inesperadamente três anos antes, deixando ela e seus dois filhos, John e Osborne, sozinhos. Viviam agora com uma pequena pensão e o que ela ganhava com seu trabalho de costureira. Depois da morte do marido, Anna se voltara a Deus e se questionava por que Ele havia lhe tirado o marido.

Ela lia a Bíblia desde a infância e conhecia suas histórias. Agora passara a estudá-la em busca de respostas. Ao fazê-lo, sentiu-se mais próxima de Deus. Mas havia algo nas doutrinas da igreja que ela frequentava que parecia incompleto e insatisfatório.

Certo dia, um sapateiro chamado Olaus Johnsen devolveu um par de sapatos que ela lhe pedira que consertasse. Dentro de cada sapato, havia um folheto religioso. Ela leu o folheto e ficou curiosa em conhecer mais, por isso comprou outro par de sapatos do sapateiro em um cálido dia de primavera, pouco tempo depois. Na sapataria, porém, ela ficou relutante em fazer muitas perguntas ao sapateiro. Quando estava abrindo a porta para sair, ele a chamou.

“Posso lhe dar algo de mais valor do que solas para os sapatos de seus filhos”, disse ele.

“O que você, um sapateiro, pode me dar?”, perguntou ela.

“Posso lhe ensinar como encontrar felicidade nesta vida e como se preparar para ter alegria eterna na vida futura”, disse ele.

“Quem é você?”, perguntou Anna.

“Sou membro da Igreja de Cristo”, respondeu Olaus. “Somos chamados de mórmons. Temos a verdade de Deus.”

Ao ouvir isso, Anna fugiu da sapataria. Os santos dos últimos dias tinham na Noruega a fama de serem fanáticos. Mas o folheto a deixou interessada, e logo ela assistiu a uma reunião com os santos de Trondheim, na casa de Olaus e sua esposa, Karen. Havia rígidas distinções de classe na sociedade norueguesa, e Anna ficou prestando atenção na casa humilde da família Johnsen e nas pessoas pobres que ali adoravam. Quando o marido estava vivo, ela pertencia a uma classe mais rica e tendia a desprezar as pessoas pobres.

Nos dois anos que se seguiram, Anna se reuniu assiduamente com os missionários, a despeito de suas reservas. Certo dia, em casa, ela sentiu o Espírito com muita força. As distinções de classe nada significavam para o Senhor, mas o preconceito dela era forte quando pensava na impopularidade da Igreja, nos membros e na pobreza deles. “Devo me rebaixar a isso?”, perguntava-se a si mesma.

Depois, respondia à sua própria pergunta: “Sim, se for a verdade, preciso fazê-lo”.22


Enquanto isso, nos Estados Unidos, James Garfield sucedeu Rutherford Hayes como presidente do país. Tal como Hayes, ele condenou a Igreja e encarregou o congresso de dar um fim, de uma vez por todas, ao casamento plural. Quando um homem descontente atirou em Garfield poucos meses depois do início de seu mandato, houve especulações de que o pistoleiro fosse um santo dos últimos dias.23 Mas a acusação era falsa. John Taylor rapidamente condenou o ataque, expressando pesar pelo presidente ferido, recusando-se a culpá-lo pela atitude política que ele havia tomado contra a Igreja.

“Ele, como todos nós, é um ser falível”, disse John aos santos. “Somos todos falíveis, e nem todo homem conseguiria resistir à pressão que ele tem de suportar.”24

O presidente Garfield morreu devido ao ferimento alguns meses depois. Seu sucessor, Chester Arthur, estava tão determinado quanto ele a banir o casamento plural.25 Como o representante de Utah no Congresso, George Q. Cannon sentiu a pressão imediatamente. Em dezembro de 1881, o senador George Edmunds apresentou um projeto de lei ao Congresso que tornaria mais fácil processar os santos pela prática do casamento plural.

Se a lei Edmunds fosse aprovada, os santos poderiam ser presos por “coabitação ilegal”, o que significava que os tribunais não precisariam mais provar que um casamento plural tinha sido realizado. Todo membro da Igreja que aparentasse estar praticando o casamento plural poderia ser condenado, segundo a lei. Os casais plurais que morassem na mesma casa ou que fossem vistos juntos em público estariam sob o risco de serem presos.

A lei tiraria o direito de voto dos homens e das mulheres que praticassem o casamento plural, sujeitando-os a multas e a passar um tempo na prisão, impedindo-os de servir em júris e de ter cargos políticos.26

Algo que pressionava George ainda mais era o fato de que sua esposa Elizabeth retornara a Utah, tendo contraído pneumonia. Ele queria estar ao lado dela. Em 24 de janeiro de 1882, porém, George recebeu um telegrama com uma mensagem de Elizabeth. “Permaneça em seu posto”, pediu-lhe ela. “Deus pode me curar em resposta a suas orações, sejam elas proferidas aí ou aqui.”

Dois dias depois, George recebeu outro telegrama informando que Elizabeth havia falecido. “O pensamento de que estamos separados pelo restante desta vida e que jamais verei novamente o rosto dela nem terei o prazer de receber sua afetuosa atenção e seu doce convívio na carne quase me deixa totalmente imobilizado”, escreveu George em seu diário.27

A lei Edmunds foi aprovada pouco tempo depois, desqualificando George para servir no congresso. Em 19 de abril, ele discursou pela última vez na câmara dos deputados. Sentiu-se mais calmo do que de costume, mas se sentia ultrajado com a decisão de seus colegas de aprovarem a lei Edmunds. Os santos praticavam o casamento plural porque Deus assim lhes ordenara, disse ele. Não tinham o desejo de impor sua crença a ninguém, mas simplesmente queriam ter o direito de obedecer a Deus da maneira que consideravam correta.

“No que se refere à condenação do mundo, estamos dispostos a ser colocados no mesmo nível que Abraão”, acrescentou George.

Mais tarde, alguns congressistas cumprimentaram George por seu discurso. Outros representantes confessaram que tinham sido pressionados a se oporem a ele. A maioria simplesmente parecia contente com o fato de que ele estivesse partindo.28


A lei Edmunds não mudou o que Ida Hunt pensava em relação ao casamento plural. No outono de 1881, ela morava com Ella e David Udall na cidade de St. Johns, Arizona, a uns 70 quilômetros de Snowflake. Nesse período, ela trabalhava na loja cooperativa local com David, que era bispo em St. Johns, e tinha se tornado próxima de Ella, como se fossem irmãs.29

Logo depois de se tornar um bispo, David e Ella concluíram que era o momento de praticarem o casamento plural. David, então, pediu Ida em casamento, com o consentimento de Ella. Ida queria aceitar a proposta, mas sabia que Ella ainda tinha dificuldade em aceitar a ideia de compartilhar o marido. Assim, em vez de responder à proposta de David, Ida voltou a Snowflake, com o coração tumultuado.30

Mais tarde, Ida escreveu uma carta para saber quais eram os verdadeiros sentimentos de Ella sobre a proposta de casamento. “Não posso seguir adiante com a questão sem primeiro ter alguma certeza de sua disposição de dar um passo assim”, disse ela à amiga. “Não é apenas seu direito, mas seu dever essencial declarar claramente todas as objeções que tiver.”

“Prometo-lhe”, garantiu a Ella, “que não ficarei ofendida”.31

Ella enviou uma breve resposta seis semanas depois. “O assunto em questão é algo que me causa grande dor e sofrimento, mais do que você possa imaginar”, escreveu ela, “ainda assim, sinto como me sentia desde o princípio, de que, se é a vontade do Senhor, estou perfeitamente disposta a suportar isso e confiar que Deus fará com que seja o melhor para todos”.32

Em 6 de maio de 1882, Ida partiu de Snowflake para uma viagem de 18 dias até o Templo de St. George com David, Ella e a filhinha deles, Pearl. Ao cruzarem lentamente o deserto, Ida viu que Ella ainda estava infeliz em relação ao casamento. Ida foi muito cuidadosa em suas palavras e ações, preocupando-se em não falar ou fazer algo que resultasse em mais dor para Ella. Juntas, leram livros em voz alta e brincaram com Pearl para evitar o silêncio desconfortável.

Certa noite, Ida conversou em particular com David, preocupada com a infelicidade de Ella e temerosa de ter feito a escolha errada ao aceitar a proposta de David. As palavras amorosas e encorajadoras dele lhe encheram o coração de esperança. Ela foi dormir naquela noite com a certeza de que Deus os apoiaria em suas provações se tentassem ser obedientes.

Ida e David foram selados no Templo de St. George em 25 de maio. Diante de um futuro incerto, Ida sentia que podia confiar em David para cuidar dela e orou para que seu amor por ele sempre aumentasse. Ella também pareceu se consolar com as palavras e o conselho do homem que realizou a cerimônia.

Naquela noite, a família pousou na casa de uma das irmãs de Ella. Depois que todos foram se deitar, Ella entrou no quarto de Ida, sem conseguir dormir. Pela primeira vez, as duas conversaram face a face sobre seu novo relacionamento mútuo — e sobre suas esperanças e seus desejos em relação ao futuro.

As duas acreditavam que o casamento de Ida com David fora a vontade de Deus. Mas, como a lei Edmunds estava agora em vigor, os acontecimentos do dia tinham colocado a família ainda mais em oposição ao governo.

“O casamento sob circunstâncias comuns é um passo sério e importante”, escreveu Ida naquela noite em seu diário, “mas assumir um casamento plural nestes tempos perigosos é duas vezes mais”.33

Capítulo 33

Até que a tempestade tenha passado

Navio a vapor no mar

Na véspera do Natal de 1882, o chefe maori Hare Teimana estava de pé, na beira de um despenhadeiro que ficava ao lado de sua vila, próxima de Cambridge, Nova Zelândia. Abaixo, viu um homem subindo resolutamente o despenhadeiro. Mas, por que aquele estranho estava subindo a montanha para a vila quando poderia ter vindo mais facilmente pela estrada? Por que estava tão apressado em chegar ao topo? Será que tinha algo importante para dizer?

Enquanto Hare observava o estranho subir, percebeu que o conhecia. Certa noite, alguns meses antes, o apóstolo Pedro, vestido de branco, aparecera no quarto de Hare. Ele disse a Hare que um homem estava vindo até o povo maori trazendo o mesmo evangelho que Jesus Cristo pregara enquanto estava na Terra. Pedro disse que Hare reconheceria o homem assim que o visse.1

Missionários protestantes e católicos haviam convertido a maioria dos maoris ao cristianismo na década de 1850, portanto Hare conhecia a missão de Pedro na antiga igreja de Cristo. Também acreditava na realidade das visões e das revelações. Os maoris consultavam seus matakite, ou videntes, para receber orientação direta de Deus. Mesmo após se converterem ao cristianismo, alguns matakite, chefes tribais e os patriarcas de família, continuavam a ter visões e a receber orientação divina para seu povo.2

Um ano antes, na verdade, os líderes maoris tinham perguntado a Pāora Te Pōtangaroa, um matakite muito reverenciado, a qual igreja os maoris deveriam se filiar. Após jejuar e orar por três dias, Pāora dissera que a igreja à qual eles deviam se filiar ainda não tinha chegado. Mas disse que ela viria em algum momento em 1882 ou 1883.3

Reconhecendo o homem que subia o despenhadeiro como a pessoa mencionada por Pedro em sua visão, Hare estava ávido para ouvir o que ele tinha a dizer. Mas o homem estava exausto quando chegou à vila, e Hare teve que esperar que ele recuperasse o fôlego. Quando o homem finalmente falou, foi em maori. Ele disse se chamar William McDonnel e que era missionário de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Deu a Hare alguns folhetos religiosos e testificou que continham o mesmo evangelho que Cristo ensinara em Seu ministério. Também falou do encargo que Cristo deu a Pedro de proclamar o evangelho após Sua Ascensão.4

Hare ficou muito interessado, mas William estava ansioso para se juntar a seus dois companheiros de missão, que tinham pegado a estrada para a vila. Quando William começou a partir, Hare o agarrou pelo colarinho do casaco. “Você vai parar aqui e me contar tudo sobre o evangelho”, exigiu ele.

William começou a compartilhar tudo o que sabia, e Hare continuou a segurá-lo firmemente pelo colarinho. Quinze minutos se passaram, e William viu seus companheiros, o presidente da missão William Bromley e Thomas Cox, que chegaram à vila pela estrada principal. Ele acenou com o chapéu para lhes chamar a atenção, e Hare finalmente largou seu colarinho. Então, com William atuando como intérprete, os homens conversaram com Hare, expressando o desejo deles de se reunirem com os maoris daquela região.

Hare os convidou a voltar mais tarde naquele dia. “Vocês podem fazer a reunião em minha casa”, disse ele.5


Naquela noite, William McDonnel se reuniu com o presidente Bromley e Thomas Cox na casa de Hare Teimana. Tendo nascido na Irlanda, William se mudara para a Nova Zelândia depois que o capitão de um navio lhe dissera que aquele era um bom país. Mais tarde, foi morar entre os maoris por vários anos e aprendeu o idioma deles. Mudou-se, então, para a cidade de Auckland, Nova Zelândia, onde se casou em 1874 e se filiou à Igreja poucos anos depois.6

Embora tivessem sido chamados missionários para pregar na Nova Zelândia e na vizinha Austrália desde o início da década de 1850, a Igreja era pequena na Nova Zelândia. Ao longo das três décadas anteriores, pelo menos 130 membros tinham ido para o Vale do Lago Salgado, reduzindo o número de membros nos ramos da Nova Zelândia, assim como acontecera em outros países.

A maioria dos membros era imigrante europeu, como William. Mas, logo após o batismo de William, o presidente Bromley foi para a Nova Zelândia com o encargo dado por Joseph F. Smith, o novo segundo conselheiro na Primeira Presidência, de levar o evangelho ao povo maori.7 O presidente Bromley orou para saber quem eram as pessoas certas a serem enviadas, e sentiu que William era uma delas. Seis meses mais tarde, William batizou o primeiro maori a receber a ordenança na Nova Zelândia, um homem chamado Ngataki.8

Agora, sentados entre homens e mulheres maoris na casa de Hare, os missionários estavam cumprindo o encargo dado por Joseph F. Smith. O presidente Bromley lia uma passagem da Bíblia em inglês, William abria a mesma seção na Bíblia maori e a passava para que alguém a lesse. O grupo ouviu atentamente a mensagem e William disse ao grupo que voltaria na noite seguinte.

Antes de os missionários irem embora, Hare levou William para ver a filha dele, Mary. Ela estava enferma há semanas e os médicos disseram que era apenas uma questão de tempo até que ela viesse a falecer. William acabara de ensinar que os élderes que tinham o sacerdócio de Deus podiam dar bênçãos de cura, e Hare quis saber se eles abençoariam sua filha.

A menina parecia estar prestes a morrer. William, o presidente Bromley e Thomas se ajoelharam ao lado dela e impuseram as mãos em sua cabeça. Um doce espírito encheu o recinto e Thomas a abençoou com vida.

Naquela noite, William não conseguiu dormir. Ele tinha fé que Mary poderia ser curada. Mas, e se aquela não fosse a vontade de Deus? Como isso afetaria a fé exercida por Hare e pelos outros maoris se ela morresse?

Pouco antes do nascer do sol, William foi para a casa de Hare. Ao longe, viu uma mulher da vila vindo em sua direção. Quando chegou até onde ele estava, ela o ergueu do chão com um abraço. Depois, tomou-o pela mão e o puxou até a casa de Hare.

“Como está a menina?”, perguntou William.

“Muito bem!”, disse a mulher.

Quando William entrou na casa, viu Mary sentada na cama, olhando ao redor do quarto. Ele apertou a mão dela e pediu à mãe que desse alguns morangos para ela comer.9

Naquela noite, Hare e a esposa, Pare, aceitaram o batismo, além de outra pessoa da vila. O grupo foi até o rio Waikato, onde William entrou nas águas, ergueu o braço direito em ângulo reto e imergiu cada um deles no rio. Depois disso, voltou para casa em Auckland e Thomas Cox e a esposa, Hannah, continuaram a ministrar aos maoris em Cambridge.

Dois meses mais tarde, em 25 de fevereiro de 1883, o primeiro ramo maori da Igreja foi organizado.10


Após seu batismo, Anna Widtsoe estava ansiosa para atender à conclamação do Senhor para se coligar em Sião. Anthon Skanchy, um dos missionários que lhe ensinara o evangelho, escrevia com frequência para incentivar a ela e a seus jovens filhos a se unirem a ele e a outros santos escandinavos em Utah. Tendo já imigrado para Logan, Utah, onde os santos estavam terminando de construir um templo de dimensões e aparência semelhantes ao de Manti, ele entendia o desejo dela de sair da Noruega.

“Tudo vai contribuir para seu bem”, garantiu-lhe ele em carta. “Você e seus pequeninos não serão esquecidos.”11

Por mais ansiosa que Anna estivesse para se mudar para Utah, ela sabia que sentiria saudades de sua terra natal. Seu falecido marido estava enterrado ali, e ela se importava profundamente com os outros membros da Igreja de sua cidade. Com frequência, quando os santos europeus saíam de seus ramos a fim de irem para Sião, deixavam lacunas na liderança local da Igreja, dificultando o progresso de minúsculas congregações. Anna era conselheira na Sociedade de Socorro de seu ramo e, se ela decidisse se mudar para Utah, o pequeno grupo de mulheres sem dúvida sentiria muita falta dela.

Também tinha que pensar em seus dois filhos. John, de 11 anos, e Osborne, de 5 anos, eram meninos inteligentes e bem-comportados. Em Utah, eles teriam que aprender um novo idioma e se adaptar a uma nova cultura, o que os deixaria atrasados em relação às outras crianças da mesma idade. E como ela os sustentaria? Desde seu batismo, Anna vinha se dando muito bem trabalhando como costureira. Caso partisse da Noruega, perderia a pensão do marido e teria que reiniciar seu trabalho em um lugar diferente.12

Anna também voltara a se relacionar com Hans, um antigo pretendente, que parecia interessado em reacender seu relacionamento romântico. Ele não era membro da Igreja, mas parecia apoiar a religião dela. Mas Anna não tinha muita esperança de que ele se unisse aos santos, já que parecia mais interessado pelas coisas do mundo do que em buscar o reino de Deus.13

Ao repassar tudo isso na mente, Anna se deu conta de que apenas retardaria seu progresso e o dos filhos ficando na Noruega. O governo norueguês não reconhecia a Igreja nem a considerava cristã. Turbas perseguiam os missionários, e os ministros frequentemente criticavam a Igreja nos sermões e em folhetos. Com exceção de sua irmã caçula Petroline, que ficara interessada pela Igreja, a própria família de Anna também a rejeitara depois que havia se filiado à Igreja.

No outono de 1883, Anna decidiu deixar a Noruega. “Estou viajando de casa para Utah assim que puder”, escreveu ela para Petroline em setembro. “Se não formos capazes de deixar tudo, até a vida se isso for exigido, não somos discípulos.”14

No entanto, o dinheiro era um obstáculo. Sua família jamais a ajudaria a fazer a mudança e Anna não sabia como pagaria as despesas da emigração. Então, dois missionários que haviam retornado do campo e um santo norueguês lhe doaram algum dinheiro. Hans também lhe deu um pouco de dinheiro para a viagem, e a Igreja permitia que ela usasse parte do dízimo para pagar as passagens da família.

Em sua última reunião com sua Sociedade de Socorro, Anna expressou o quanto estava feliz pelo fato de o reino de Deus estar novamente na Terra — e que ela tinha a oportunidade de ajudar a edificá-lo. Ao ouvir o testemunho de suas irmãs da Sociedade de Socorro, ela desejou que todas sempre vivessem de modo que o Espírito de Deus estivesse com elas e as iluminasse.

Em outubro de 1883, Anna, John e Osborne embarcaram em um navio, em Oslo, rumo à Inglaterra. Na praia, seus amigos santos noruegueses se despediram acenando lenços. A majestosa costa norueguesa jamais tinha parecido tão bela para Anna. Pelo que sabia, ela jamais voltaria a vê-la novamente.15


No início do verão de 1884, Ida Hunt Udall estava servindo como presidente da Associação de Melhoramentos Mútuos das Jovens Damas da Estaca Arizona Leste, um cargo que exigia que ela zelasse pelas jovens de Snowflake, de St. Johns e de outros assentamentos da região, e desse aulas para elas. Embora não conseguisse visitar todas as associações da estaca com muita frequência, ela se sentia feliz quando se reuniam para as conferências trimestrais.16

Desde seu casamento com David Udall, Ida havia se mudado de volta para St. Johns, onde os santos enfrentavam forte oposição. A cidade era governada por cidadãos poderosos que não queriam que os santos se instalassem no condado. Conhecido como o Círculo, o grupo assediava os membros da Igreja e tentava impedi-los de votarem. Também publicavam um jornal que incentivava os leitores a aterrorizarem os santos.

“Como Missouri e Illinois se livraram dos mórmons?”, perguntava um artigo. “Com armas de fogo e a forca.”17

Em seu lar, com David e Ella, porém, Ida tinha encontrado paz. Por um tempo, Ella tivera dificuldades em se acostumar com a nova condição de Ida na casa, mas as duas mulheres tinham se tornado mais próximas ao se ajudarem mutuamente nas enfermidades e em outros problemas cotidianos. Desde que se unira à família, Ida tinha ajudado Ella no parto de duas filhas, Erma e Mary. A própria Ida ainda não tinha filhos.

Em 10 de julho de 1884, cinco dias após o nascimento de Mary, Ida estava limpando a mesa depois do jantar quando o cunhado de David, Ammon Tenney, apareceu à porta. Ele tinha sido acusado de poligamia, e sua esposa Eliza, irmã de David, tinha sido intimada a depor contra ele. Em vez de se submeter à lei e ser uma testemunha-chave no julgamento do marido, Eliza decidira se esconder dos delegados.18

“A próxima a ser intimada pode ser você”, alertou Ammon a Ida. Sendo bispo de St. Johns — e sabidamente polígamo —, o marido seria um alvo importante para acusação. Se um delegado com uma intimação encontrasse Ida, ela poderia ser forçada a testemunhar contra David no tribunal. Sob a lei Edmunds, ele poderia receber uma multa de 300 dólares e ser condenado a seis meses de prisão por coabitação ilegal. E a pena por poligamia era ainda mais severa. Caso fosse considerado culpado, David teria que pagar uma multa de 500 dólares e ser condenado a cinco anos de prisão.19

O primeiro pensamento de Ida foi em Ella, que estava se recuperando do parto da filha. Ella ainda precisava de sua ajuda, e Ida não queria abandoná-la. Mas, se ficasse na casa, isso apenas aumentaria o risco que a família corria.

Ida rapidamente se cobriu com um xale e saiu silenciosamente da casa. Eliza e outras mulheres estavam se escondendo dos delegados na casa de um vizinho, e Ida se uniu a elas. A maioria das mulheres tinha deixado filhos para trás, sem ter outra opção a não ser confiar seus pequeninos aos cuidados de outras pessoas.

Dia após dia, mantinham um olho vigilante na estrada, agachando-se embaixo da cama ou atrás das cortinas sempre que um estranho se aproximava da casa.

Depois de ter passado seis dias na casa do vizinho, um amigo se ofereceu para fazer o transporte dela e das outras mulheres em segredo até Snowflake. Antes de sair da cidade, Ida voltou para casa e rapidamente embalou alguns pertences para a viagem. Ao dar um beijo de despedida em Ella e nas crianças, ela teve a impressão de que se passariam muitos dias antes de se verem novamente.20

Ida discursou para a organização das moças da Ala Snowflake assim que lá chegou, tendo ainda uma viva lembrança dos problemas que enfrentara em St. John. “Aqueles que sofrem perseguição por causa do evangelho têm uma paz e um contentamento que mal conseguiriam imaginar”, testificou ela. “Não podemos esperar uma vida tranquila na Igreja, sem provações. Nossa vida sem dúvida será colocada em risco.”21


No final do verão, vários santos do território de Utah tinham sido presos sob a lei Edmunds, mas ninguém havia sido condenado e colocado na prisão. Entre os santos presos estava Rudger Clawson, que assistira ao assassinato de seu companheiro de missão, Joseph Standing, cinco anos antes. Rudger estava casado com duas mulheres: Florence Dinwoody e Lydia Spencer. Após a prisão dele, Lydia se ocultou, deixando a acusação sem uma testemunha-chave.22

O julgamento de Rudger começou em outubro. Na audiência, testemunhas santos dos últimos dias, inclusive o presidente John Taylor, procuraram colaborar o menos possível no tribunal. Quando os acusadores perguntaram ao profeta onde poderiam ser encontrados os registros de casamento da Igreja, suas respostas foram vagas.

“Se você quiser vê-los”, perguntou um advogado, “há um meio de saber com certeza onde estão?”

“Eu poderia descobrir perguntando”, respondeu o presidente Taylor.

“Teria a gentileza de fazê-lo?”, perguntou o advogado.

“Ora”, respondeu o profeta secamente, “não sou gentil o suficiente para fazê-lo”. Todos no tribunal romperam em risos.23

Após uma semana de depoimentos semelhantes, o júri de 12 homens não conseguiu chegar a uma conclusão sobre o caso e o juiz adiou o julgamento. Mas, naquela mesma noite, o vice-delegado conseguiu encontrar Lydia Clawson e a intimou a depor contra Rudger no tribunal.

Um novo julgamento teve início em breve. Após ouvir o depoimento de várias testemunhas que haviam aparecido no julgamento anterior, o promotor chamou Lydia ao banco de testemunhas. Ela parecia pálida, porém determinada. Quando o funcionário judicial tentou fazer com que ela fizesse o juramento, ela se recusou.24

“Não sabe que é errado não fazer o juramento?”, perguntou o juiz a Lydia.

“Pode ser”, respondeu ela.

“Você pode ser presa”, advertiu o juiz.

“Isso depende do senhor, meritíssimo”, disse Lydia.

“É temerário da sua parte decidir desafiar o governo”, declarou o juiz. Ordenou então que ela ficasse sob custódia do delegado e adiou o julgamento.

Naquela noite, ao ser transportada para a penitenciária estadual, Lydia recebeu uma mensagem de Rudger implorando que ela testificasse contra ele. Ela estava grávida e, caso se recusasse a cooperar com o tribunal, poderia acabar tendo que dar à luz em uma prisão federal, a centenas de quilômetros de sua casa e da família.25

Na manhã seguinte, o delegado acompanhou Lydia até uma sala de tribunal lotada, onde os promotores novamente a chamaram para o banco das testemunhas. Dessa vez, ela não se recusou a fazer o juramento quando o funcionário judicial pediu. Depois, o promotor perguntou se ela era casada.

Quase sussurrando, Lydia respondeu que sim.

“Com quem?”, pressionou ele.

“Rudger Clawson”, disse ela.

Os membros do júri levaram menos de 20 minutos para dar o veredicto de culpado — o primeiro sob a lei Edmunds.26 Nove dias depois, Rudger compareceu perante o juiz para ouvir a sentença. Antes de dar seu parecer, o juiz perguntou a Rudger se tinha algo a dizer.

“Lamento muito que as leis de meu país tenham ido de encontro às leis de Deus”, disse Rudger, “mas, sempre que isso acontecer, invariavelmente optarei pelas leis de Deus”.

O juiz se acomodou na cadeira. Estivera preparado para ser condescendente com Rudger, mas a atitude de rebeldia do jovem o fez mudar de ideia. Com solenidade no olhar, sentenciou Rudger a quatro anos de prisão e o multou em 500 dólares por poligamia e em 300 dólares por coabitação ilegal.

O tribunal ficou em silêncio. Um delegado levou Rudger para fora da sala, permitindo que se despedisse de amigos e parentes, e depois o conduziu à penitenciária. Rudger passou sua primeira noite na prisão confinado com 50 dos piores criminosos do território.27


Naquele inverno, nos assentamentos espalhados por todo o território de Utah, os delegados continuaram a assediar os santos na própria casa, esperando pegar as famílias plurais desprevenidas. Dia e noite, pais e mães viam horrorizados os homens da lei invadirem suas casas e tirarem os filhos da cama. Alguns delegados se esgueiravam pelas janelas ou ameaçavam derrubar as portas. Se encontravam uma esposa plural, podiam prendê-la caso se recusasse a depor contra o marido.

Por mais que John Taylor quisesse incentivar os santos a continuarem a viver sua religião, ele via que as famílias estavam sendo destruídas e se sentia responsável pelo bem-estar delas.28 Em breve, começou a se aconselhar com os líderes da Igreja sobre uma mudança dos santos para fora dos Estados Unidos para que não fossem presos e tivessem mais liberdade.29

Em janeiro de 1885, ele e Joseph F. Smith partiram de Salt Lake City com uns poucos apóstolos e amigos de confiança para visitar os santos do território do Arizona, pouco ao norte do México. Muitos santos estavam vivendo atemorizados ali, e alguns já tinham fugido para o México para escapar dos delegados.30

Ansiosos para ver por si mesmos se mais santos poderiam encontrar refúgio naquele país, John, Joseph e seus companheiros cruzaram a fronteira e entraram no México. Ali encontraram alguns lugares promissores próximos de água suficiente para dar suporte a um assentamento.31 Quando a companhia retornou ao Arizona, alguns dias depois, John e seus companheiros se aconselharam sobre o que fazer em seguida.

Por fim, eles decidiram comprar terras e estabelecer assentamentos no estado de Chihuahua, no México. John pediu a alguns homens que começassem a arrecadar fundos. Em seguida, ele e os demais partiram de trem para San Francisco.32 Ao chegar lá, John recebeu um telegrama urgente de George Q. Cannon. Inimigos internos estavam conspirando, advertiu George, e planejavam prender a Primeira Presidência.

Vários homens pressionaram John para que ficasse na Califórnia até que o perigo passasse. Sem ter muita certeza do que fazer, o profeta orou pedindo orientação. Anunciou, então, que voltaria para Salt Lake City e enviaria Joseph F. Smith para o Havaí em outra missão. Uns poucos protestaram, seguros de que John e os outros seriam presos caso voltassem para casa. Mas estava claro na mente de John que seu lugar era em Utah.

John chegou à sua casa poucos dias depois e convocou um conselho especial com os líderes da Igreja. Contou-lhes seu plano de comprar terras no México e declarou sua intenção de evitar a captura, ocultando-se. Aconselhou aos santos que fizessem tudo que lhes fosse possível, com exceção da violência, para que não fossem condenados. Ele faria o mesmo.33

Naquele domingo, John falou publicamente aos santos no tabernáculo apesar do risco de ser preso. Lembrou à congregação que já haviam enfrentado oposição no passado. “Ergam o colarinho do casaco, abotoem-se e se protejam do frio até que a tempestade tenha passado”, aconselhou ele. “Esta tempestade passará, assim como as outras.”34

Tendo incentivado os santos da melhor maneira que pôde, John saiu do tabernáculo, entrou em uma carruagem e partiu noite adentro.35

Capítulo 34

Nada temos a temer dos ímpios

Folheto intitulado: Por Que Praticamos o Casamento Plural

Em 8 de março de 1885, Ida Udall acordou no dia de seu aniversário de 27 anos vendo um glorioso raiar do sol. Porém, por mais que lhe fosse agradável um dia quente no final do inverno, Ida sabia que tinha que tomar cuidado ao sair de casa. Na maioria dos dias, precisava ficar dentro de casa até o pôr do sol — caso contrário se arriscava a ser reconhecida por um delegado dos Estados Unidos.1

Fazia oito meses que Ida fugira de sua casa em St. Johns, Arizona, e fora para o “subterrâneo”, um termo que os santos estavam começando a usar para descrever a vida de alguém que se ocultava para não ser preso. Nesse tempo, o marido, David, tinha sido acusado de poligamia e sido julgado com cinco outros santos. Quase 40 homens depuseram nos julgamentos, e vários deles tinham cometido perjúrio contra os santos. “Parece não haver lei nem justiça para os mórmons no Arizona”, escrevera David para Ida na época.2

Quando o julgamento terminou, cinco dos homens foram condenados por poligamia. Três deles receberam a sentença de passar três anos e meio em uma penitenciária de Detroit, Michigan, a mais de 3 mil quilômetros dali. Somente David escapara da condenação, mas apenas porque seu caso fora adiado por seis meses, enquanto a acusação procurava mais testemunhas que depusessem contra ele — inclusive Ida.3

Depois de sair do Arizona, Ida tinha se mudado para a casa do pai e da madrasta de David, em Nephi, uma cidade que ficava a uns 130 quilômetros ao sul de Salt Lake City. Apenas os familiares e amigos mais próximos de Ida sabiam onde ela estava.

Ida nunca tinha passado um tempo com os sogros antes, por isso a princípio lhe pareceu estar morando com estranhos. Mas começara a amá-los e fizera amizade com seus novos vizinhos, inclusive outras esposas plurais que se ocultavam para proteger a família. As reuniões da Igreja e o convívio com as amigas ajudavam a alegrar seus longos e tristes dias.4

No aniversário de Ida, suas amigas e seus familiares que moravam em Nephi lhe fizeram uma festa. Mas aqueles que lhe eram mais queridos — seus pais, David e a primeira esposa de David, Ella — estavam a centenas de quilômetros dali. Já não via David há quase seis meses. E a ausência dele parecia especialmente difícil de suportar por estar grávida de seu primeiro filho, que nasceria dali a poucas semanas.5

Pouco tempo após sua festa de aniversário, Ida recebeu um exemplar de um jornal do Arizona. Quando abriu o jornal, ficou atônita ao ver uma manchete anunciando o falecimento de sua mãe, Lois Pratt Hunt. Lois tinha apenas 48 anos de idade, e Ida não estava preparada para perdê-la.

As amigas de Ida gentilmente lhe tiraram o jornal das mãos e se sentaram ao lado dela até o entardecer. Poucas horas depois, ela entrou em trabalho de parto e deu à luz uma menina saudável de olhos azuis, à qual deu o nome de Pauline.

As semanas que se seguiram foram um misto de tristeza e alegria, mas Ida estava grata por ter Pauline com ela. “Fui abençoada com minha própria filhinha”, escreveu ela no diário. “Agradeço a Deus por ter algo pelo que viver e trabalhar agora.”6


Naquela primavera, no norte de Utah, Sagwitch, sua esposa Moyogah e 16 outros shoshones subiram a colina que ia dar no Templo de Logan.7 O templo tinha sido terminado e dedicado um ano antes, um testamento da fé e do trabalho árduo dos santos do norte de Utah e do sul de Idaho. Entre os que haviam trabalhado incansavelmente para construir o templo estavam Sagwitch e outros santos shoshones.8

Os shoshones tinham percorrido uma longa estrada para chegar ao templo. Doze anos tinham se passado desde que Sagwitch e mais de 200 outros shoshones haviam se filiado à Igreja. Eles faziam os serviços de adoração em sua própria ala e em seu próprio idioma.9 Sagwitch e Moyogah foram selados na casa de investiduras10 e o filho de Sagwitch, Frank Timbimboo Warner, foi chamado como missionário entre os shoshones.11

Mas o ataque do exército dos Estados Unidos ao acampamento shoshone, que ficava às margens do rio Bear, ainda assombrava os sobreviventes, e outras dificuldades continuavam a assolá-los. Depois de se filiarem à Igreja, Sagwitch e seu povo receberam terras no sul de Utah para se estabelecerem nelas e as cultivarem. No entanto, poucos meses após a chegada dos shoshones, as pessoas de uma cidade vizinha que não eram membros da Igreja começaram a temer que os santos brancos incitassem os índios a atacá-los. As pessoas da cidade ameaçaram os shoshones e os obrigaram a abandonar suas terras, justamente quando estavam começando a colheita. Os shoshones voltaram no ano seguinte, mas os grilos e um gado perdido tinham consumido suas plantações.12

Atuando sob a direção do presidente John Taylor, os líderes da Igreja em breve encontraram terras para os shoshones na fronteira norte de Utah.13 Sua pequena cidade de Washakie tinha, então, várias casas, currais, uma oficina de ferreiro, uma loja cooperativa e uma escola.14

A edificação de uma nova vida era árdua, mas isso não impediu que Sagwitch e seu povo ajudassem na construção do templo. Com o pouco tempo que tinham a dispor, homens da comunidade viajavam em parelhas de bois e por trem até Logan, onde ajudavam a transportar pedras. Em outras ocasiões, preparavam a argamassa que fixava as paredes do templo ou misturavam gesso para revestir as paredes internas. Na época em que o templo foi dedicado, os shoshones haviam doado milhares de horas de trabalho para construir o prédio sagrado.15

Sagwitch também fizera sua parte embora estivesse ficando velho e tivesse cicatrizes nas mãos devido ao massacre de Bear River. A chacina ainda estava na lembrança de seu povo. Muitos sobreviventes calculavam a idade pelo número de anos que haviam se passado desde o horrível evento.16 Não conseguiam esquecer os pais, os irmãos, os maridos, as esposas, os filhos e os netos que tinham perdido.

No dia do massacre, Sagwith não conseguira impedir que os soldados matassem seu povo. Mas, na primavera de 1885, ele e outros shoshones passaram quatro dias no templo, realizando ordenanças em favor de seus parentes falecidos, inclusive muitos que tinham sido mortos em Bear River.17


Em junho de 1885, Joseph Smith III e seu irmão Alexander foram até o território de Utah em outra missão para a Igreja Reorganizada de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Como os missionários anteriores de sua igreja tinham tentado fazer, os irmãos queriam convencer os santos de Utah e de outras partes que o profeta Joseph Smith jamais havia praticado o casamento plural.18

Entre os santos que notaram a chegada deles estava Helen Whitney, a filha de 56 anos de Heber e Vilate Kimball. Helen conhecia a mensagem dos irmãos. De fato, ela havia publicado um folheto, O Casamento Plural Conforme Ensinado pelo Profeta Joseph, em resposta às alegações de Joseph III a respeito do pai. Como esposa plural do próprio Joseph Smith, Helen sabia com certeza que o profeta havia praticado o casamento plural.19

Helen tinha 14 anos quando o pai dela lhe ensinara o princípio e perguntara se ela queria ser selada a Joseph. Ela ficou revoltada a princípio e respondeu com indignação. Mas, ao longo do dia, pensou nisso, sabendo que o pai a amava muito para lhe ensinar qualquer coisa que fosse contrária à vontade de Deus. Concordou com o selamento, acreditando que a união ajudaria na exaltação dela e de sua família, ligando-os a Joseph Smith nas eternidades.

Em quase todos os aspectos, o acordo não era nada convencional. Helen era muito nova para se casar, mesmo que naquela época algumas mulheres com a idade dela se cassassem nos Estados Unidos. Assim como algumas das outras esposas de Joseph, ela havia sido selada ao profeta apenas para a eternidade. Ela e Joseph raramente tiveram alguma interação social, e ela nunca deu indícios de que tivessem um relacionamento físico íntimo. Ela continuou morando na casa de seus pais e, assim como outras esposas plurais da época de Nauvoo, manteve segredo sobre seu selamento. Contudo, ela estava na idade em que algumas moças começavam a ser cortejadas, e foi difícil para ela explicar a suas amigas porque não participava mais de algumas reuniões sociais.20

Depois da morte do profeta, Helen se casara com Horace Whitney, um dos filhos de Newel e Elizabeth Ann Whitney. Helen tinha 17 anos, e Horace, 22 anos na época e estavam profundamente apaixonados. No dia do casamento, prometeram se apegar um ao outro pelo restante da vida e, se possível, nas eternidades. Mas, no altar do Templo de Nauvoo, eles se casaram apenas para esta vida, porque Helen já tinha sido selada a Joseph Smith para a eternidade.21

Mais tarde, depois de se estabelecer em Utah, Helen havia consentido que Horace se casasse com Lucy Bloxham e Mary Cravath. Lucy morreu pouco tempo depois, mas Mary e Helen moravam em casas vizinhas e tinham um bom relacionamento. Helen e Horace foram felizes no casamento por 38 anos, e ela deu à luz 11 filhos.22 Horace morreu em 22 de novembro de 1884, e Helen agora passava parte do tempo escrevendo para o Deseret News e para o Woman’s Exponent.23

O casamento plural nunca tinha sido fácil para Helen, mas ela o defendia vigorosamente. “Se eu não tivesse um forte testemunho proveniente do Senhor”, escreveu ela, “não creio que teria conseguido me submeter a isso por um momento sequer”.

Poucos anos após ter escrito o folheto O Casamento Plural Conforme Ensinado pelo Profeta Joseph, Helen publicou um segundo folheto, Por Que Praticamos o Casamento Plural, que abordava as críticas mais comuns à prática. “Não pode haver nada de mal”, disse ela aos leitores, “em algo que inspira a oração, expulsa o egoísmo do coração e amplia os laços dos sentimentos humanos, levando a pessoa a realizar grandes atos de bondade fora de seu próprio círculo”.24

Embora ficasse, às vezes, exausta ao escrever, o que Helen ganhava cobria sua assinatura do jornal e outras despesas.25 Seus editoriais censuravam as pessoas que perseguiam a Igreja por defenderem a liberdade religiosa por um lado, mas moverem uma inexorável campanha contra a Igreja por outro. Suas palavras também proporcionavam incentivo para os outros santos.

“Se este povo fizer sua parte, os poderes do Altíssimo se manifestarão em favor deles”, garantiu ela aos leitores em agosto de 1885. “Nada temos a temer dos ímpios.”26

Helen via as tentativas de Joseph III de distanciar o pai do casamento plural como algo que violentava a verdade.27 Certo dia, ao viajar de trem pela região central de Utah, ela notou um homem que subiu em seu vagão e se sentou à frente dela. Não parecia ser membro da Igreja, e Helen se perguntou se seria um agente do governo que estava ali para implementar as leis antipoligamia. Depois que o estranho saiu do trem, ela ficou sabendo, chocada, que ele era Joseph Smith III.

“Se eu tivesse sabido que era ele”, escreveu ela em seu diário, “teria sido mais destemida em criticá-lo e em me dar a conhecer”.28

Embora Helen tivesse passado a maior parte da vida casada com Horace, ela sabia que fora selada ao profeta Joseph Smith. Nem sempre estava claro para ela como seus relacionamentos funcionariam na vida após a morte. Mas ela pretendia reivindicar todas as bênçãos eternas que o Senhor prometera a sua família. Deus sempre a tirara da fornalha da aflição, e ela continuava a confiar que Ele faria tudo dar certo no final.

“Há muito aprendi a deixar tudo nas mãos Dele, que conhece melhor que nós mesmos o que nos proporcionará felicidade”, escreveu ela.29


Poucos meses após o nascimento da filha, Ida Udall estava novamente de mudança. Viajando com um nome falso, ela passava várias semanas por vez na casa de diversas amigas e parentes, em Utah.30 David iria a julgamento em agosto de 1885. Como os promotores não conseguiram montar um caso convincente contra ele por poligamia, começaram, em vez disso, a usar contra ele uma falsa acusação de perjúrio que seus inimigos de St. Johns inventaram algum tempo antes.31

Ida e David se viram pela última vez em maio de 1885, dois meses depois do nascimento de Pauline. Depois disso, Ida recebera uma carta de David expressando pesar por tudo o que ela tivera de suportar por causa dele.

“Às vezes, sinto que teria sido melhor se eu tivesse sido preso em vez de fazer com que você precisasse usar outro nome e correr de um lado para o outro, com medo de ser reconhecida”, escreveu ele.32

Mas Ida estava esperançosa de que seu sacrifício valeria a pena, principalmente porque muitas pessoas acreditavam que David seria inocentado. Enquanto esperava notícias do julgamento no Arizona, ela se consolava cuidando de Pauline. Cuidar das necessidades do bebê, às vezes, era a única coisa que a distraía do suspense que tanto a cansava.33

Em 17 de agosto, chegou a notícia de que David tinha sido considerado culpado da acusação de perjúrio e sentenciado a três anos de prisão. Ida ficou consternada, mas esperava que pudesse ao menos voltar para sua família no Arizona. O apóstolo George Teasdale, porém, recomendou que ela não deixasse de se esconder. Se David fosse perdoado da inconsistente acusação de perjúrio, seus inimigos poderiam tentar condená-lo por poligamia.

Ida seguiu o conselho do apóstolo e não retornou ao Arizona.34 Mas, a cada dia que se passava, ela ficava mais ansiosa em ter notícias de David na prisão. Ele somente podia escrever uma carta por mês para a família, por isso ela dependia de Ella lhe enviar cópias das cartas dele. Mas Ella estava enfrentando suas próprias dificuldades, principalmente depois que sua filha caçula, Mary, falecera em outubro de 1885.

Por três meses, Ida não recebeu nenhuma carta de David. Quando um maço de cartas dele finalmente chegou, descobriu que ele começara a usar um codinome para ela. Temeroso de se incriminar, David passara a se referir a ela pelo nome da mãe dela, Lois Pratt.35


Naquele outono, enquanto se ocultava dos delegados no sul de Salt Lake City, o presidente Taylor chamou Jacob Gates para servir outra missão no Havaí. Seis anos se passaram desde que Jacob retornara de sua primeira missão nas ilhas. Nesse ínterim, ele se casara com Susie Young, que passou a se chamar Susa. Eles moravam em Provo, estavam criando três filhos e esperavam outro. Bailey, o filho de Susa de seu primeiro casamento, também morava com eles. Sua filha Leah, porém, ainda morava com a família do pai, no norte de Utah.

O inesperado chamado de Jacob para a missão deixou Susa ansiosa e cheia de dúvidas. A carta pedia que Jacob partisse para o Havaí dali a apenas três semanas, dando-lhe pouco tempo para organizar seus negócios. Também não indicava se ele poderia levar a família junto, como, às vezes, os missionários tinham permissão de fazer.

Susa queria ir com ele e levar os filhos, mas não estava esperançosa. “Pelo tom da carta que Jacob recebeu, ele não acha que querem que eu vá”, escreveu ela para a mãe no dia seguinte. “Imagine a perspectiva que tenho para meus próximos três anos.”36

Jacob aceitou prontamente o chamado para a missão, mas perguntou ao presidente Taylor se Susa e os filhos poderiam acompanhá-lo. “Preferia que fossem comigo”, escreveu. Ele lembrou ao profeta que Susa já estivera no Havaí e conhecia bem a região.37

Não houve resposta imediata e Susa se preparou para a ida de Jacob sozinho. Ela ficara sabendo que três outros missionários já tinham recebido permissão de levar a família para Laie, onde os alojamentos eram limitados, por isso não esperava ter a mesma bênção. Então, faltando apenas uma semana para a partida dele de Utah, Jacob recebeu uma carta concedendo-lhe permissão para levar a família.38

Susa e Jacob se apressaram com os preparativos. Entre outras coisas, escreveram para Alma Dunford, ex-marido de Susa, perguntando se Bailey, de 10 anos, poderia acompanhá-los ao Havaí. Em vez de responder por carta, Alma esperou até que a família estivesse partindo para o Havaí. Ele então os confrontou na estação ferroviária de Salt Lake City com um policial e uma ordem judicial que invocava seus direitos de manter Bailey consigo em Utah.

Embora Bailey sempre tivesse morado com Susa, a ordem judicial a deixava impossibilitada de impedir que Alma o levasse. Quando Susa se separou do filho, com o coração partido, o menino gritou e tentou voltar para junto dela.39

Susa e Jacob zarparam para o Havaí pouco tempo depois com os outros filhos. Durante a viagem, Susa se sentia angustiada e doente. Quando o navio aportou em Honolulu, Joseph F. Smith, que estava morando no exílio na ilha para não ser preso, foi recebê-los. Na manhã seguinte, foram para Laie, onde uma grande multidão de santos os recebeu com um jantar e um concerto.40

Susa e Jacob logo se aclimataram à vida em Laie. Susa admirava a linda paisagem a seu redor, mas tinha dificuldades para se acostumar com os alojamentos dos missionários, que estavam infestados de insetos. “Quando me sinto totalmente sozinha”, escreveu ela em um artigo bem-humorado para o Woman’s Exponent, “tenho muita companhia: camundongos, ratos, escorpiões, centopeias, baratas, pulgas, mosquitos, lagartos e milhões de formigas”.41

Na maior parte do tempo, ela tinha saudades de Utah.42 Porém, poucos meses após sua chegada, ela recebeu uma carta de Bailey. “Queria que você estivesse aqui”, escreveu ele. “Penso em você nas minhas orações.”43

Nessas orações, ao menos, Susa poderia se consolar.


Quando John Taylor começou a se esconder, no início de 1885, uniu-se a George Q. Cannon, que havia ido para o subterrâneo apenas algumas semanas antes. Até então, eles haviam se refugiado na casa de santos fiéis em Salt Lake City e região, mudando-se sempre que os vizinhos se tornassem suspeitos, ou se John não se sentisse confortável. Como sempre estavam sendo caçados pelos oficiais, eles não podiam baixar a guarda.44

Sem poder se reunir pessoalmente com os santos, a Primeira Presidência procurava administrar os assuntos da Igreja por carta. Quando certos assuntos não podiam ser resolvidos dessa maneira, eles se reuniam secretamente com outros líderes da Igreja, em Salt Lake City. Toda ida à cidade era arriscada. Nenhum líder da Igreja que praticava o casamento plural estava seguro.45

Em novembro, os delegados federais prenderam o apóstolo Lorenzo Snow, que tinha 71 anos de idade e estava com a saúde fragilizada.46 Antes de sua prisão, Lorenzo decidira morar com apenas uma de suas famílias para evitar a acusação de coabitação ilegal. Mas um dos juízes envolvidos no caso disse que ele precisava deixar completamente de ser marido de suas esposas. “Preferiria morrer mil mortes”, declarara Lorenzo, “a renunciar a minhas esposas e violar essas sagradas obrigações”.47

Em janeiro de 1886, o juiz sentenciou Lorenzo a 18 meses de prisão, sob três acusações de coabitação ilegal. No mês seguinte, o oficial Elwin Ireland e outros deputados invadiram a fazenda de George Q. Cannon e entregaram intimações aos membros da família que moravam lá. Em seguida, Ireland fixou uma recompensa de 500 dólares pela prisão de George.48

Quando George ficou sabendo da recompensa, deu-se conta de que um monte de “sabujos humanos” o estaria caçando. Sem querer colocar o profeta em risco, decidiu se separar de John por um tempo. John concordou e o aconselhou a ir para o México. Poucos dias depois, George raspou a barba e embarcou em um trem, esperando sair sorrateiramente de Utah sem ser reconhecido.49

Mas, de alguma maneira, espalhou-se a notícia de que George saíra da cidade, e um xerife entrou no trem e o prendeu. O delegado Ireland foi até o local para escoltar George de volta a Salt Lake City.

Enquanto o trem seguia sacolejante, um membro da Igreja se aproximou de George e sussurrou que um grupo de santos planejava resgatá-lo antes que o trem chegasse à cidade. George se levantou e foi até uma plataforma que ficava do lado de fora de um dos vagões dos trens. Não queria que ninguém fosse preso — ou morto — por causa dele.

Olhando para a paisagem invernal, George pensou em saltar do trem. Mas o deserto do Oeste era um lugar desolado. Se pulasse do trem no momento errado, poderia parar a quilômetros da cidade mais próxima. Seria fatal percorrer aquelas terras áridas a pé, especialmente para alguém com quase 60 anos de idade.

De repente, o trem deu um solavanco, jogando George para fora da plataforma. Ele bateu com a cabeça e o lado esquerdo no chão, enquanto o trem seguia chocalhando, até desaparecer ao longe na paisagem fria e cinzenta.

Jazendo semi-inconsciente no solo congelado, George sentiu a dor lhe percorrer a cabeça e o corpo. A ponta do nariz estava desviada para um lado, quebrado. Um ferimento que lhe atravessava a sobrancelha ia direto até o crânio, cobrindo-lhe o rosto e as roupas de sangue.

Erguendo-se, George começou a caminhar lentamente ao longo dos trilhos. Em breve, viu um policial caminhando em sua direção. O delegado Ireland notara sua ausência e tinha ordenado ao trem que parasse. George foi mancando até o policial, que o escoltou até uma cidade próxima.

Ali, George enviou um telegrama pedindo que nenhum santo interferisse em sua prisão. Ele estava nas mãos do Senhor.50

Capítulo 35

Um dia de provação

Homem com a insígnia de delegado dos Estados Unidos

Em 17 de fevereiro de 1886, uma multidão aguardava na estação de trem de Salt Lake City pela chegada de George Q. Cannon e seus captores. O oficial Ireland escoltou George desde o trem até um escritório na cidade, onde outra multidão havia se reunido para expressar solidariedade ao prisioneiro ferido e machucado. Lá dentro, o oficial deu um colchão a George e permitiu que descansasse enquanto aguardava a visita de seu advogado e outros visitantes.1

O julgamento de George foi marcado para 17 de maio, e o juiz o libertou sob uma fiança de 45 mil dólares. Um grande júri, enquanto isso, começou a interrogar as esposas e os filhos de George a fim de coletar provas de que ele havia transgredido a lei Edmunds.

“Esses homens estão mortos em relação a qualquer compaixão humana”, declarou George quando soube dos interrogatórios brutais. “São tão incompassivos quanto os mais iníquos e depravados piratas.”2

Depois de sua libertação, George se encontrou secretamente com o presidente Taylor. George estava quase completamente decidido a ir para a prisão, mas tinha orado para que o profeta soubesse a vontade do Senhor em relação à questão. Em seu encontro, George explicou sua situação, e o presidente Taylor concordou que ele devia se submeter à lei. Se George não fosse a julgamento, ele perderia a indenização da fiança de 45 mil dólares, a qual seus amigos tinham generosamente concordado em pagar para seu benefício.

Naquela noite, porém, o Senhor revelou ao presidente Taylor que seu primeiro conselheiro deveria voltar a se esconder. A revelação foi como um relâmpago e, assim que veio, o profeta imediatamente se ajoelhou ao lado da cama em grata oração. Poucos anos antes, o Senhor o inspirara a investir dinheiro da Igreja não ligado ao dízimo em uma companhia mineradora a fim de criar um fundo de reserva especial para a Igreja. O presidente Taylor acreditava que a reserva deveria ser usada para reembolsar os homens que haviam pago a fiança de George.3

George sentiu que a revelação foi uma resposta a suas orações. Ele e o presidente Taylor encaminharam a decisão para os quatro apóstolos que estavam na cidade, e eles aprovaram a execução do plano.

George, porém, preocupava-se se seria justo ele voltar a se esconder, especialmente porque outros homens tinham ido para a prisão devido a suas convicções. Não queria que ninguém de dentro ou de fora da Igreja achasse que ele era um covarde. Mas sabia agora qual era a vontade do Senhor para ele e decidiu confiar nela.

“Se Deus me dirige a um curso de ação a tomar”, escreveu ele em seu diário, “desejo segui-lo e deixar o resultado nas mãos Dele”.4


Mais ou menos na mesma época em que George Q. Cannon voltou a se esconder, Emmeline Wells estava novamente em Washington, D.C., viajando a negócios pela Igreja. Sete anos já se haviam passado desde que ela se encontrara com o presidente Rutherford Hayes e sua esposa, Lucy. Desde essa época, a oposição contra a Igreja havia aumentado, ainda mais agora, quando o Congresso tentava aprovar uma emenda à Lei Edmunds, que tornaria a legislação ainda mais dura, a qual ficou conhecida como a Lei Edmunds-Tucker.5

A lei proposta procurava, entre outras coisas, tirar das mulheres de Utah o direito ao voto, e Emmeline sentia que tinha o dever de se manifestar novamente contra ela.6 Estava esperançosa de conseguir persuadir pessoas sensatas — especialmente seus aliados na luta pelos direitos das mulheres — a verem como aquela lei era injusta.

Em Washington, Emmeline falou com legisladores e ativistas que eram favoráveis à sua causa. Alguns estavam indignados com o fato de as mulheres de Utah perderam seu direito ao voto. Outros discordavam da parte da lei que permitia que o governo confiscasse as propriedades particulares dos santos. Mas a oposição ao casamento plural calou o entusiasmo até daqueles a quem Emmeline chamava de amigos.7

Após passar várias semanas em Washington, ela embarcou em um trem rumo ao Oeste, acreditando que tinha feito tudo o que podia pelos santos. Em sua viagem, ficou sabendo que 2 mil mulheres tinham recentemente lotado o Teatro Salt Lake a fim de protestar contra o tratamento que o governo estava dando às famílias plurais. Na reunião, Mary Isabella Horne havia conclamado as mulheres a se manifestarem contra a injustiça. “Será que nós, as mulheres de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, devemos nos submeter a insultos e injúrias sem erguer a voz contra isso?”, perguntou ela.8

Emmeline ficou entusiasmada com a força de suas irmãs no evangelho e ansiava em se juntar a elas. Mas, a caminho de casa, ela recebeu um telegrama do presidente Taylor pedindo que retornasse a Washington. Um comitê de mulheres santos dos últimos dias redigira resoluções conclamando os líderes da nação a dar fim a sua cruzada contra os santos. As resoluções também rogavam às esposas e mães de todos os Estados Unidos que auxiliassem as mulheres de Utah. O profeta queria que Emmeline apresentasse as resoluções a Grover Cleveland, o presidente dos Estados Unidos. Ellen Ferguson, uma médica e cirurgiã santo dos últimos dias de Salt Lake City, iria com ela.9

Em poucos dias, Emmeline estava de volta a Washington. Ela e Ellen se reuniram com o presidente Cleveland na biblioteca da Casa Branca. Ele não era tão intimidador como elas esperavam, mas sabiam que seria difícil persuadi-lo a apoiar a causa delas. Um ano antes, ele recebera uma delegação de santos dos últimos dias de Utah e lhes dissera: “Gostaria que vocês de lá fossem como o restante de nós”.10

O presidente ouviu Emmeline e Ellen com atenção e prometeu avaliar seriamente as resoluções que elas apresentaram. Mas, embora parecesse favorável à causa delas, não o era tanto a ponto de se arriscar a ofender os legisladores antipoligamia.

“Tudo o que pode ser feito aqui para apresentar os fatos e procurar remover o preconceito parece apenas uma gota no oceano da opinião pública”, escreveu Emmeline no Woman’s Exponent pouco tempo depois. “Mas não devemos nos cansar de fazer o bem mesmo que as oportunidades sejam poucas e o preconceito, muito forte.”11


Enquanto isso, em Sanpete Valley, em Utah, os delegados tinham começado a prender os santos polígamos de Ephraim, Manti e das cidades vizinhas.12 Como presidente da Primária da Ala Ephraim Sul, Augusta Dorius Stevens instruiu as crianças sobre como agir caso os delegados tentassem questioná-las.13 As crianças inocentes com frequência eram uma fonte fácil de informações, por isso elas precisavam aprender a reconhecer os delegados e a criar confusão para atrapalhar as investigações.14

Mais de 30 anos já haviam se passado desde que Augusta deixara sua família em Copenhague, Dinamarca, para ir a Utah. Naquela época, ela tinha apenas 14 anos e a mãe odiava a Igreja. Agora, a mãe acabara de se divorciar do marido. Se alguém dissesse a Augusta que sua família um dia se reuniria novamente em Sião, com os pais selados por procuradores no templo, ela provavelmente não teria acreditado.15

Mas era exatamente o que estava acontecendo, e agora a família Dorius era muito importante em Sanpete Valley. O pai de Augusta e a maioria de seus irmãos já tinham falecido há muito tempo, mas sua mãe, Ane Sophie, agora com mais de 70 anos, tinha muito orgulho dos filhos, dos quais se envergonhara anteriormente por serem membros da Igreja. Os irmãos de Augusta, Carl e Johan, tinham grandes famílias plurais que cresciam ano após ano, com mais filhos e netos. Seu meio-irmão, Lewis, filho da segunda esposa do pai, Hannah, também tinha uma grande família plural. A meia-irmã de Augusta, Julia, a quem a mãe adotara na Dinamarca, também estava casada e criava uma família no vale.16

Embora o casamento plural dos irmãos Dorius os colocasse sob o risco de serem presos, o marido de Augusta, Henry, estava seguro. Sua primeira esposa havia falecido em 1864, por isso ele e Augusta já não praticavam o casamento plural. Eles tiveram oito filhos, cinco dos quais ainda estavam vivos.17 Nenhum de seus filhos casados praticava o casamento plural.18

Mas, como trabalhava como parteira e enfermeira, Augusta ainda poderia ser alguém que os delegados poderiam interrogar ou usar como testemunha. Vendo a necessidade de melhores cuidados médicos para os santos, Brigham Young e Eliza Snow tinham começado na década de 1870 a aconselhar as mulheres santos dos últimos dias a estudar medicina. Augusta se tornou parteira em 1876, depois de estudar em Utah. Com o incentivo dos líderes da Igreja e da Sociedade de Socorro, outras mulheres frequentaram faculdades de medicina nos estados do leste dos Estados Unidos. Algumas delas também ajudaram a Sociedade de Socorro a fundar o Hospital Deseret, em Salt Lake City, em 1882.19

À vista dos delegados, as crianças eram prova de coabitação ilegal, ou mesmo de casamento plural, e as parteiras como Augusta poderiam servir de testemunhas no tribunal. Augusta continuava a fazer o parto de bebês e a visitar pacientes, porém, indo de porta em porta com uma bolsa de couro preta e um semblante alegre.20

Na Primária, ela com frequência dizia às crianças o quanto elas eram abençoadas por terem sido criadas em Sião, a despeito dos riscos existentes na época. As reuniões da Primária eram um lugar seguro para as crianças aprenderem o evangelho. Augusta as ensinava a serem bondosas com os idosos e com os portadores de deficiências. Incentivava as crianças a serem educadas e a fazerem tudo o que pudessem para compartilhar as bênçãos do templo.21

Tal como outros líderes da Igreja, ela também salientava a importância de tomar o sacramento dignamente a cada semana, o que as crianças faziam na Escola Dominical. “Não devemos tomar o sacramento se tivermos sentimentos ruins no coração em relação às crianças com quem brincamos ou qualquer outra pessoa”, ensinava-lhes ela. “Devemos ser fervorosos e ter o Espírito de Deus para nos amarmos uns aos outros. Se odiarmos alguma criança com quem brincamos ou um irmão ou uma irmã, não podemos amar a Deus.”22

E ela lembrava as crianças da Primária a não se esquecerem daqueles que estavam sendo assediados pelos delegados. “Este é um dia de provação”, disse ela, “e devemos nos lembrar de oferecer nossas humildes orações por nossos irmãos que estão na prisão — e por todos os santos”.23


Naquele inverno, enquanto morava em um esconderijo em Utah, Ida Udall recebeu um telegrama do marido, David. O presidente Cleveland o havia perdoado da acusação de perjúrio e ele estava voltando para casa.

Ida ficou muito feliz por David, mas triste por não poder se juntar a ele em St. Johns, Arizona. “Quão solitária e saudosa me sinto ao pensar que não poderei participar de nenhuma das alegrias pelo retorno de meu próprio marido”, lamentou ela em seu diário.24

Ida continuava a morar em Nephi, com frequência lutando contra o sentimento de solidão e frustração por seu exílio.25 Em setembro de 1886, depois que David precisou adiar uma muito esperada visita para ir vê-la, ela lhe escreveu uma carta irada e a colocou no correio antes que tivesse tempo de mudar de ideia.

“Eu disse que, da minha parte, ele não precisava se preocupar em vir me visitar”, escreveu ela, furiosa, em seu diário. “Achei que já tinha perdido demasiadamente meu tempo, esperando alguém que não dava a mínima por mim.”

Pouco depois, Ida ficou acordada chorando, com remorso do que tinha escrito na carta. Então, em uma mensagem de sua cunhada, ela ficou sabendo que David tinha orado pelo bem-estar dela e de Pauline. Ao pensar em David orando por ela e pela filha, Ida sentiu o coração tocado, e ela escreveu novamente para ele, dessa vez se desculpando pela carta irada.26

Em breve recebeu uma carta de David assegurando-lhe que ele era seu “marido afetuoso e devotado”, seguida de outra, mais longa, repleta de esperança e de palavras amorosas e contritas. “Perdoe-me também por todas as indelicadezas em atos, palavras e pensamentos e pela aparente negligência”, rogou David. “Tenho um testemunho de que o dia de libertação está próximo, às portas, e que teremos alegria na Terra.”27

Em dezembro, uma acusação pendente de poligamia contra David foi retirada, possibilitando que Ida voltasse para o Arizona.28 David foi a Nephi em março de 1887 para buscar a ela e Pauline, bem a tempo de comemorar o aniversário de 2 anos da menininha. Pauline não conhecia o pai e reagia com veemência sempre que ele tentava abraçar Ida. “Tire as mãos dele de você!”, advertia ela à mãe.

A viagem da família até o Arizona levou três semanas. Aquele foi o maior período de tempo que ela passou sozinha com o marido nos cinco anos em que estavam casados.29


Depois de um ano acompanhando o marido no campo missionário, Susa Gates se acostumara com sua casa no Havaí. Jacob trabalhava em uma usina de açúcar, transformando a cana-de-açúcar colhida no assentamento em um produto comerciável.30 Susa fazia o melhor possível para suprir as demandas da vida doméstica. Estava grávida de novo e, além de lavar a roupa e preparar as refeições, ela ficava atarefada confeccionando camisas para Jacob; vestidos de algodão listrado para a filha de 6 anos, Lucy; camisas e calças para Jay, de 4 anos, e Karl, de 3 anos; e aventais novos para o bebê Joseph. Com frequência se sentia cansada no final do dia, mas ainda encontrava tempo para escrever e enviar artigos para os jornais de Utah e da Califórnia.31

Certa manhã, em fevereiro de 1887, o pequeno Jay apresentou febre e tosse. A princípio, Susa e Jacob acharam que fosse um resfriado, mas os sintomas pioraram ao longo da semana seguinte. Eles cuidaram de Jay fazendo o melhor que podiam e pediram a Joseph F. Smith e a outros que o abençoassem. Susa se maravilhou com a fé exercida em favor do filho. Mas Jay não melhorou.

Na noite de 22 de fevereiro, Susa ficou acordada com Jay, esfregando azeite em sua barriga para tentar aliviar a dor. A respiração dele ficou entrecortada e difícil. “Não saia do meu lado esta noite, mama”, disse-lhe ele. “Fique comigo esta noite.”

Susa prometeu que ficaria, mas, depois da meia-noite, Jacob pediu que ela descansasse um pouco enquanto ele cuidava do filho. Jay parecia estar dormindo bem, por isso ela foi se deitar, sem querer acreditar que seu filhinho morreria. Ele estava em missão com sua família, disse a si mesma, e as pessoas não morrem em missão.

Jay acordou mais tarde e sussurrou “mama” várias vezes ao longo da noite. Pela manhã, ele parecia pior, e a família chamou Joseph F. e Julina Smith. O casal Smith ficou com a família Gates durante o restante do dia. Jay não melhorou e, naquela tarde, adormeceu tranquilamente, vindo a falecer pouco antes das 14 horas.32

A dor que Susa sentiu foi inexprimível, mas ela mal tinha começado seu luto quando Karl apresentou a mesma doença. À medida que ele foi piorando, os santos de toda a Laie jejuaram e oraram, mas de nada adiantou. A família foi colocada em quarentena para prevenir a disseminação da doença, e Karl morreu logo em seguida.33

Embora muitas famílias fossem ajudar Susa e Jacob, Joseph F. e Julina Smith estavam constantemente ao lado deles. Eles tinham perdido sua filha mais velha, Josephine, quando tinha por volta da idade dos meninos e compreendiam a angústia dos amigos. Quando os meninos morreram, Joseph estava ao lado do leito deles. Julina lavou o corpo deles, confeccionou-lhes roupas mortuárias e os vestiu pela última vez.34

Nos dias que se seguiram, Jacob chorou pelos filhos, mas Susa estava por demais aturdida para chorar. Preocupava-se com a possibilidade de seus outros filhos pegarem a doença. Depois do falecimento de Karl, ela também deixara de sentir o bebê se mexendo no ventre. Embora Jay tivesse visto a criança em um sonho pouco antes de sua morte, Susa se perguntava se o bebê ainda estaria vivo.

Depois, um dia, ela sentiu um leve movimento — um pequeno sinal de vida. “Um movimento bem fraco me consola com a esperança de que ainda haja vida batendo sob meu coração entristecido”, escreveu ela para a mãe. Não entendia por que seus filhos tinham morrido, mas encontrou forças sabendo que Deus estava cuidando dela.

“Com tudo isso, sei que Deus governa nos céus”, escreveu ela para a mãe. “Deus me abençoou e me ajudou a suportar meus fardos. Louvado seja Seu santo nome para sempre.”35


No início de 1887, o congresso aprovou a lei Edmunds-Tucker. A nova lei dava aos tribunais de Utah um poder ainda maior de condenar e punir as famílias plurais. As mulheres do território perderam o direito ao voto, e as crianças nascidas em casamentos plurais perderam os direitos de herança. Os candidatos a eleitores, membros do júri e líderes governamentais eram obrigados a fazer um juramento antipoligamia. A Igreja e o Fundo Perpétuo de Emigração deixaram de existir como entidades legais, e o governo adquiriu autoridade para confiscar certas propriedades da Igreja cujo valor ultrapassasse 50 mil dólares.36

John Taylor, George Q. Cannon e outros líderes da Igreja buscavam se manter um passo à frente dos oficiais. Cada vez mais santos buscavam refúgio nos pequenos assentamentos da Igreja em Chihuahua, México, inclusive em Colonia Díaz e Colonia Juárez.37 Outros membros haviam fundado um assentamento no Canadá, chamado Cardston.38 Aquelas mulheres e aqueles homens estavam dispostos a viajar centenas de quilômetros em direção a áreas remotas fora dos Estados Unidos no intuito de proteger sua família, seguir os mandamentos de Deus e guardar os sagrados convênios que haviam feito no templo.

Naquela primavera, o estado de saúde de John Taylor piorou muito e George ficou preocupado com o bem-estar do profeta. Embora ainda estivessem se escondendo, os dois homens tinham morado por seis meses com uma família, em uma casa isolada em Kaysville, a pouco mais de 30 quilômetros ao norte de Salt Lake City. John passara a sentir dor no coração, falta de ar e insônia. Sua memória estava começando a falhar, e ele tinha dificuldade para se concentrar. George insistia para que ele consultasse um médico, mas, com exceção de alguns chás de ervas, John se recusava a tomar medicamentos.39

Em 24 de maio, John não se sentia bem o suficiente para cuidar dos assuntos da Igreja, por isso pediu que George cuidasse deles pessoalmente. Mais assuntos surgiram, e John pediu que George os resolvesse também. Quando chegou uma mensagem solicitando conselho sobre uma importante questão política, John pediu a George que fosse até Salt Lake City cuidar disso.40

Os pensamentos de George se voltaram para Joseph F. Smith, que ainda estava no exílio, no Havaí. No outono anterior, ele escrevera para Joseph contando os problemas que ele e John estavam enfrentando. “Não sei dizer quantas vezes desejei que você estivesse aqui”, expressara ele. “Senti como se a Primeira Presidência fosse um pássaro com uma asa faltando.”

Mais recentemente, George tinha informado a Joseph acerca das más condições de saúde de John. “A vontade dele, como você sabe, é indômita”, escreveu ele em uma carta. Mas o profeta já não era jovem, e seu corpo estava definhando. Se John piorasse, George prometera chamar Joseph imediatamente.

Havia chegado a hora. Embora George soubesse que, ao chamar Joseph de volta para casa ele o estaria colocando em risco, enviou uma mensagem pedindo que voltasse para Utah.

“Dei esse passo sem comunicá-lo a ninguém, temendo que possa criar alarme ou colocar em perigo sua segurança”, escreveu ele. “Nada tenho a dizer, exceto que você precisa ser extremamente cauteloso.”41


Na manhã de 18 julho, George começou a assinar recomendações para o templo, uma tarefa normalmente reservada para o presidente da Igreja. A essa altura, John Taylor quase não saia do quarto e mal tinha forças para falar. Todo o fardo das responsabilidades da Primeira Presidência recaiu sobre os ombros de George.42

No final daquela tarde, um carroção coberto se aproximou da casa, em Kaysville. Quando parou, uma figura conhecida saiu, e George foi tomado por uma torrente de alívio e alegria ao reconhecer Joseph F. Smith. Ao levar Joseph para dentro a fim de ver o profeta, eles encontraram John sentado em uma cadeira em seu quarto, quase inconsciente. Joseph pegou John pela mão e falou com ele. John pareceu reconhecer seu conselheiro.

“Esta é a primeira vez que a Primeira Presidência se reúne em dois anos e oito meses”, disse George para John. “Como se sente?”

“Sinto que devo agradecer ao Senhor”, sussurrou John.43

Ao longo da semana seguinte, as condições de saúde de John pioraram. Certa noite, George e Joseph estavam cuidando de assuntos da Igreja quando foram subitamente chamados para o quarto de John. John estava deitado imóvel na cama, com a respiração entrecortada e fraca. Após alguns minutos, parou totalmente de respirar. Isso aconteceu tão serenamente que pareceu a George que estava vendo um bebê adormecendo.

Para ele, perder John era como perder seu melhor amigo. John tinha sido como um pai para George. Nem sempre concordavam em tudo, mas George o considerava um dos homens mais nobres que já conhecera. Pensou na reunião da Primeira Presidência uma semana antes. Agora, estavam separados novamente.

George e Joseph rapidamente começaram a fazer planos para avisar os apóstolos. George já escrevera sobre o estado de saúde do profeta para Wilford Woodruff, o presidente do Quórum dos Doze, e Wilford estava seguindo lentamente para Salt Lake City, proveniente de St. George, tomando cuidado para evitar os delegados. Os outros apóstolos, em sua maioria, ainda estavam escondidos.

Na ausência deles, George sabia estar em uma situação delicada. Como o presidente da Igreja havia morrido, ele e Joseph já não podiam atuar como membros da Primeira Presidência. Mas a Igreja ainda se via diante de graves perigos e precisava de liderança. Se ele continuasse a administrar os assuntos da Igreja, independentemente dos Doze, poderia desagradar os outros apóstolos. Mas que opção tinha ele? O quórum estava disperso, e alguns assuntos simplesmente não podiam ser adiados nem ignorados.

George também sabia que ele e Joseph tinham que agir rapidamente. Se a morte de John se tornasse pública cedo demais, os delegados poderiam ficar sabendo do paradeiro deles e vir pegá-los. Ele e Joseph já não estavam mais seguros.

“Precisamos levantar acampamento”, anunciou George, “e sair daqui assim que pudermos”.44

Parte 4

Um templo de Deus

Julho de 1887–Maio de 1893

Boas-novas de alegria aos espíritos em prisão,

Aos santos de todos os países e ilhas do mar

Por um templo de Deus no meio das montanhas;

E alegria, aos tribunais dos céus, vai chegar.

Eliza R. Snow, “O templo”

mapa da Praça do Templo, Oceania

Capítulo 36

As coisas fracas deste mundo

flores silvestres na pradaria

Em 29 de julho de 1887, Wilford Woodruff estava com George Q. Cannon e Joseph F. Smith junto à janela da sala do presidente da Igreja, em Salt Lake City. Juntos, eles assistiam passar lentamente à procissão fúnebre de John Taylor que seguia pela cidade. Grandes grupos de pessoas se postavam ao longo das ruas, enquanto mais de uma centena de carruagens, charretes e carroções passavam. Emmeline Wells expressou o que muitos santos sentiam ao escrever que o presidente Taylor “era um homem de cuja liderança as pessoas sempre poderiam estar seguras e de quem sempre poderiam com justiça se orgulhar”.1

Somente a ameaça de prisão impediu Wilford e os outros dois apóstolos de saírem para a rua a fim de prestar homenagem a seu amigo e profeta. Como a maioria dos membros do quórum, Wilford raramente aparecia em público para não ser preso por poligamia ou coabitação ilegal. Quando sua esposa Phebe faleceu em 1885, Wilford ficou a seu lado junto ao leito. Mas não participou do funeral dela três dias depois, temendo ser capturado. Agora, como presidente do Quórum dos Doze e líder sênior da Igreja, Wilford tinha se tornado um alvo ainda maior para os delegados.

Wilford jamais aspirara liderar a Igreja. Quando soube do falecimento de John, o fardo da responsabilidade lhe pesou nos ombros. “Maravilhosos são Teus caminhos, ó Senhor Deus Todo-Poderoso”, ele orou, “pois Tu sem dúvida escolheste as coisas fracas deste mundo para realizar Tua obra na Terra”.2

Wilford reuniu os Doze alguns dias após o funeral para debater o futuro da Igreja. Como acontecera depois do falecimento de Joseph Smith e de Brigham Young, o quórum não organizou imediatamente uma nova Primeira Presidência. Em vez disso, em uma declaração pública, Wilford reafirmou que, na ausência de uma Primeira Presidência, os Doze Apóstolos tinham a autoridade para liderar a Igreja.3

Nos meses que se seguiram, os apóstolos realizaram muitas coisas sob a liderança de Wilford. Embora o Templo de Manti estivesse quase pronto para ser dedicado, o maior e mais ambicioso templo de Salt Lake ainda estava longe de ser terminado. O projeto original do templo exigia que dois grandes salões de assembleia ocupassem o andar térreo e o andar superior do edifício. Enquanto estava escondido para não ser preso, porém, John Taylor pensou em um novo projeto que eliminaria o salão de assembleia inferior, proporcionando bem mais espaço para as salas de investidura. Agora, Wilford e os Doze consultaram os construtores sobre a melhor maneira de implementar aqueles planos. Também aprovaram a proposta de fazer o acabamento das seis torres do templo em granito, em vez de madeira, como fora projetado originalmente.4

Wilford e os outros líderes da Igreja prepararam discretamente outra tentativa de tornar Utah um estado. Como o empenho de prender os líderes da Igreja impedira os santos de realizar conferências gerais em Salt Lake City nos três anos anteriores, os Doze também negociaram com os delegados locais para que permitissem que Wilford e os apóstolos que não tinham sido acusados de poligamia ou de coabitação ilegal deixassem de se ocultar a fim de realizarem a conferência na cidade.5

Quando os apóstolos se reuniram, Wilford notou o começo de uma discórdia em suas reuniões. Vários apóstolos tinham sido chamados para o quórum desde o falecimento de Brigham Young, uma década antes, incluindo Moses Thatcher, Francis Lyman, Heber Grant e John W. Taylor. Aparentemente, cada um deles tinha sérias reservas em relação a George Q. Cannon. Acreditavam que ele tinha tomado decisões equivocadas como empresário, político e líder da Igreja.

Entre suas preocupações, estava o modo como George recentemente abordara um caso de ação disciplinar da Igreja envolvendo seu filho, um preeminente líder da Igreja que cometera adultério. Também não gostaram que George tivesse tomado decisões para a Igreja sozinho durante a enfermidade terminal de John Taylor. Tampouco estavam contentes com o fato de George estar aconselhando Wilford em relação aos assuntos da Igreja embora a Primeira Presidência tivesse sido dissolvida e George tivesse retornado a seu lugar entre os Doze. Na mente dos apóstolos mais novos, George estava agindo por interesses próprios e os excluindo do processo de tomada de decisões.6

George, porém, acreditava estar sendo julgado erroneamente. Admitiu ter cometido pequenos erros de tempos em tempos, mas as acusações contra ele eram falsas ou se baseavam em informações incompletas. Wilford entendia as imensas pressões que George tinha enfrentado ao longo dos anos anteriores e continuava a expressar sua confiança nele e a recorrer a sua sabedoria e experiência.7

Em 5 de outubro, véspera da conferência geral, Wilford reuniu os apóstolos para buscar uma reconciliação. “Mais do que todos os homens sob o céu”, disse ele, “devemos estar unidos”. Ele, então, ouviu por horas enquanto os apóstolos mais novos expressavam suas queixas. Quando terminaram, Wilford falou sobre Joseph Smith, Brigham Young e John Taylor, tendo conhecido pessoalmente cada um deles e trabalhado de perto com eles. Por mais grandiosos que aqueles homens tivessem sido, vira imperfeições neles. Mas eles não tinham de prestar contas a ele, disse Wilford. Teriam que prestar contas a Deus, que era o juiz deles.

“Devemos tratar o irmão Cannon com consideração”, disse Wilford. “Ele tem suas falhas. Se não tivesse, não estaria aqui conosco.”

“Se feri seus sentimentos de qualquer modo”, acrescentou George, “humildemente peço perdão”.

A reunião terminou depois da meia-noite, faltando horas para a oração de abertura da conferência geral. Apesar do pedido de perdão de George, Moses Thatcher e Heber Grant ainda acreditavam que ele não tinha respondido adequadamente por seus erros e disseram aos irmãos que não se sentiam reconciliados.

Em seu diário, Wilford descreveu a noite com três breves palavras: “Foi muito dolorosa”.8


Por volta dessa época, Samuela Manoa conduzia sua canoa pelas águas azuis escuras do porto de Pago Pago. Atrás dele, os picos escarpados de Tutuila, uma ilha samoana, erguiam-se para o céu. Bem à frente, um grande veleiro estava ancorado na entrada do porto, esperando que um marinheiro local ajudasse o timoneiro do navio a passar em segurança pelos recifes.

Sendo residente da ilha vizinha de Aunu‘u, Samuela conhecia muito bem o porto. Quando sua canoa finalmente chegou ao navio que aguardava, Samuela chamou o capitão e ofereceu ajuda. O capitão desceu uma escada de cordas pelo costado do navio e recebeu Samuela a bordo.

Samuela seguiu o capitão à sala dele no convés inferior. Era bem cedo pela manhã, e o capitão perguntou se Samuela gostaria de preparar presunto e ovos para comer antes de seguir para o porto. Samuela agradeceu, e então lhe foi dado um jornal velho para acender o fogo.

Samuela sabia ler um pouco de inglês e viu que um dos jornais era da Califórnia. Ao colocar o jornal no fogo, uma manchete se destacou no meio das chamas. Era o anúncio de uma conferência para os membros de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Samuela sentiu o coração disparar e agarrou o jornal e o tirou das chamas.9

A data da conferência já havia passado, mas Samuela estava mais interessado no nome da igreja do que no evento propriamente dito. Aquela era sua igreja e, pela primeira vez em anos, ele ficara sabendo que ela ainda prosperava nos Estados Unidos.

Quando jovem, na década de 1850, Samuela tinha sido batizado pelos missionários santos dos últimos dias no Havaí. Em 1861, porém, Walter Gibson assumira o controle do assentamento dos santos em Lanai e dissera a Samuela e aos outros que a Igreja em Utah tinha sido destruída pelo exército dos Estados Unidos. Sem ter conhecimento da fraude de Walter, Samuela acreditou nele e apoiou sua liderança. Quando Walter o enviou com outro santo havaiano, Kimo Belio, para uma missão em Samoa em 1862, ele aceitou o chamado.10

Samuela e Kimo foram os primeiros missionários santos dos últimos dias em Samoa e batizaram cerca de 50 samoanos em seus primeiros anos ali. Mas o serviço de correio era precário, e os missionários tinham dificuldades para manter contato com os santos do Havaí.11 Como os líderes da Igreja em Utah não emitiram o chamado para que se abrisse uma missão em Samoa, não foram enviados outros missionários para auxiliar Samuela e Kimo, e a congregação de santos samoanos decaiu.12

Kimo já havia falecido, mas Samuela permanecera em Samoa e fizera dali seu lar. Tinha se casado e iniciado um negócio próprio. Seus vizinhos o conheciam como o missionário santo dos últimos dias do Havaí, mas alguns deles tinham começado a duvidar da existência da igreja da qual ele dizia fazer parte.13

Samuela há muito se perguntava se Walter mentira para ele em relação à destruição da Igreja nos Estados Unidos.14 Agora, 25 anos depois de ir para Samoa, ele finalmente tinha motivos para ter esperança de que, se escrevesse para a sede da Igreja, alguém responderia.15

Agarrando o jornal, Samuela foi correndo procurar o capitão do navio e pediu ajuda para escrever uma carta para os líderes da Igreja em Utah. Na carta, ele pediu que fossem enviados missionários para Samoa o mais breve possível. Ele estivera esperando por vários anos, escreveu ele, e estava ansioso para ver o evangelho ser pregado novamente entre os samoanos.16


No outono de 1887, Anna Widtsoe e seus dois filhos, John e Osborne, já por quatro anos moravam na cidade de Logan, no norte de Utah. A irmã de Anna, Petroline, também se filiara à Igreja na Noruega e se mudara para Utah, estabelecendo-se em Salt Lake City, cerca de 130 quilômetros ao sul.17

Anna trabalhava como costureira, dedicando muitas horas ao trabalho para ganhar o suficiente para sustentar os filhos. Ela queria que os filhos fossem professores, como o finado pai dos meninos tinha sido, e ela fez dos estudos uma prioridade na vida deles. Como John, de 15 anos, trabalhava na loja cooperativa local para ajudar no sustento da família, ele não podia ir à escola durante o dia. Em vez disso, estudava sozinho álgebra em seu tempo livre e tinha aulas particulares de inglês e latim com um santo britânico. Enquanto isso, Osborne, de 9 anos, frequentava a escola local e tinha um desempenho excelente nos estudos.18

Poucos anos antes da chegada da família Widtsoe, Brigham Young doara terras para uma escola na região, semelhante à que ele estabelecera em Provo. O Brigham Young College foi inaugurado em Logan, em 1878, e Anna estava determinada a enviar seus filhos para lá assim que estivessem preparados mesmo que isso significasse que John não poderia mais trabalhar na loja. Algumas pessoas achavam que ela estava errada em enfatizar a educação mais do que o trabalho braçal, mas ela acreditava que o desenvolvimento da mente era tão importante quanto o desenvolvimento do corpo.19

Anna também se assegurava de que os meninos participassem dos programas e das reuniões da Igreja. Aos domingos, eles frequentavam a reunião sacramental e a Escola Dominical. Osborne frequentava a Primária durante a semana, e John frequentava as reuniões do Sacerdócio Aarônico nas noites de segunda-feira. Quando era diácono, ele cortava lenha para as viúvas e ajudava a cuidar do tabernáculo da estaca, onde a ala realizava suas reuniões. Sendo agora um sacerdote, ele se reunia com o bispado e outros sacerdotes e visitava algumas famílias todos os meses, como “professor da ala”. John também fazia parte da Associação de Melhoramentos Mútuos dos Rapazes.

Anna frequentava as reuniões da Sociedade de Socorro nas quintas-feiras. Os santos de Logan provinham de todas as partes dos Estados Unidos e da Europa, mas a fé no evangelho restaurado os unia. Era comum nas reuniões da Sociedade de Socorro local ouvir algumas mulheres falar ou prestar testemunho em sua língua natal, enquanto outras as interpretavam. Anna aprendeu inglês depois de morar um ano em Logan, mas, com tantos santos escandinavos na região, ela tinha muitas oportunidades de falar norueguês.20

Nas reuniões da Igreja, Anna aprendeu e entendeu melhor o evangelho restaurado. Não lhe havia sido ensinada a Palavra de Sabedoria na Noruega, e ela continuava a tomar café e chá em Utah, principalmente quando tinha de trabalhar até tarde da noite. Esforçou-se por dois meses, sem conseguir largar essas bebidas. Certo dia, porém, caminhou com resolução até o armário da cozinha, tirou dali os pacotes de café e chá e os lançou no fogo.

“Nunca mais”, disse ela.21

Anna e os filhos participavam do trabalho do templo. Ela e John viram o presidente Taylor dedicar o Templo de Logan em 1884. Poucos dias depois, John foi batizado e confirmado em favor do pai, John Widtsoe Sr., no templo. No mesmo dia, ele e Osborne também foram batizados e confirmados por outros parentes falecidos, inclusive seus avós e bisavós. Anna e sua irmã Petroline foram, então, ao templo e receberam sua investidura. Anna voltou para ser batizada e confirmada em favor de sua mãe e outras parentes falecidas.

O Templo de Logan se tornara precioso para ela. Os céus pareceram se abrir no dia em que ele foi dedicado, recompensando-a por todos os sacrifícios que fizera para ir a Sião.22


Em grande parte do ano de 1887, as condições de saúde de Eliza Snow foram piorando. Estando com 83 anos de idade, a amada poetisa e presidente geral da Sociedade de Socorro tinha vivido por mais tempo que muitos santos de sua geração e sabia que a morte estava próxima. “Não tenho escolha em relação a morrer ou viver”, lembrava ela às amigas. “Estou perfeitamente disposta a ir ou a ficar, conforme o Pai Celestial ordenar. Estou nas mãos Dele.”

As condições de saúde de Eliza pioraram no transcorrer do ano. Zina Young e outras amigas próximas cuidavam constantemente dela. Às 10 horas de 4 de dezembro de 1887, o patriarca John Smith a visitou em seu leito na Lion House, em Salt Lake City. Perguntou se ela o reconhecia, e ela sorriu. “Claro que sim”, disse ela. John lhe deu uma bênção, e ela agradeceu. Na manhã seguinte, Eliza faleceu tranquilamente com o irmão Lorenzo a seu lado.23

Como líder das mulheres santos dos últimos dias, Eliza organizou Sociedades de Socorro, Associações de Melhoramentos Mútuos das Jovens Damas e Primárias em quase todos os assentamentos do território e ministrou a elas. Também presidiu o trabalho das mulheres na casa de investiduras por mais de 30 anos. Em cada um desses lugares, Eliza inspirou as mulheres a empregar seus talentos para ajudar Deus a salvar a família humana.

“É dever de cada uma de nós ser uma mulher santa”, ensinara-lhes ela certa vez. “Sentiremos que fomos chamadas para cumprir deveres importantes. Nenhuma de nós está isenta disso. Não há irmã que esteja tão isolada e cuja esfera de influência seja tão pequena a ponto de não poder realizar muitas coisas para o estabelecimento do reino de Deus na Terra.”24

Na edição de 15 de dezembro do Woman’s Exponent, Emmeline Wells a homenageou, chamando-a de “mulher eleita” e “poetisa de Sião”. “A irmã Eliza sempre foi corajosa, forte e destemida nos cargos que ocupou”, escreveu Emmeline. “As filhas de Sião devem imitar seu sábio exemplo e seguir seus passos.”25


Em abril seguinte, os santos apoiaram a amiga de Eliza, Zina Young, como a nova presidente geral da Sociedade de Socorro. Tal como Eliza, Zina tinha sido esposa plural tanto de Joseph Smith quanto de Brigham Young.26 Quando Eliza se tornou presidente geral da Sociedade de Socorro em 1880, ela escolheu Zina como conselheira. Ao longo dos anos, as duas mulheres tinham trabalhado, viajado e envelhecido juntas.27

Zina era conhecida por sua ministração amorosa e pessoal e seus poderosos dons espirituais. Por anos ela presidira a Deseret Silk Association, um dos programas cooperativos da Sociedade de Socorro. Também fora uma experiente parteira que ocupava o cargo de vice-presidente do Hospital Deseret, um hospital administrado pela Sociedade de Socorro em Salt Lake City. Embora tivesse aceito seu novo chamado com certo receio, estava determinada a ajudar a Sociedade de Socorro a prosperar como fizera sob a liderança de Eliza.28

Pouco depois de receber seu chamado, Zina viajou para o norte até o Canadá a fim de visitar sua única filha, Zina Presendia Card. Antes de seu falecimento, John Taylor pedira ao marido de Zina Presendia, Charles, que estabelecesse um assentamento no Canadá para os santos polígamos exilados.29 Até então, as enfermidades e o inverno tinham impedido que Zina visitasse a filha. Mas Zina Presendia estava prestes a ter um bebê, e Zina queria estar ao lado dela.30

Zina chegou a Cardston, o novo assentamento canadense, justamente quando as flores silvestres estavam começando a florir. Cercada de prados verdejantes, a cidade parecia perfeitamente preparada para florescer.31

Zina viu que a filha também estava prosperando a despeito das dificuldades enfrentadas ao longo dos anos. Tendo ficado viúva aos 24 anos, Zina Presendia criara dois filhos sozinha por vários anos, até que o caçula, Tommy, morreu de difteria aos 7 anos. Três anos depois, ela se casou com Charles na condição de esposa plural.32

Embora Zina Presendia não estivesse acostumada à vida de pioneira, ela tinha constituído um lar confortável em uma pequena cabana de toras. Cobrira as paredes internas ásperas e toscas da cabana com um tecido macio de flanela que ela mesmo fizera, cada aposento de uma cor diferente. Com a chegada da primavera, ela sempre procurava manter um buquê de flores na mesa da sala de jantar.33

Zina Young passou cerca de três meses em Cardston. Durante sua estadia, reuniu-se assiduamente com a Sociedade de Socorro. Em 11 de junho, ensinou às mulheres que Cardston tinha sido preservada para os santos de Deus. Havia um espírito de união entre as pessoas, disse ela, e o Senhor tinha grandes bênçãos reservadas para elas.34

Um dia, depois da reunião, Zina Presendia entrou em trabalho de parto. Zina estava a seu lado, tanto como parteira quanto como mãe. Depois de apenas três horas de trabalho de parto, Zina Presendia deu à luz uma menina rechonchuda e saudável: sua primeira filha.

A mãe, a avó e a bisavó do bebê haviam todas recebido o nome de Zina. Pareceu adequado chamá-la de Zina também.35


Mesmo antes que a carta de Samuela Manoa chegasse a Salt Lake City, o Espírito estivera atuando sobre os líderes da Igreja para que expandissem o trabalho missionário em Samoa. No início de 1887, o apóstolo Franklin Richards chamou Joseph Dean, de 31 anos, e sua esposa Florence para servir missão no Havaí. Ao ser designado por imposição de mãos, ele foi instruído a levar o evangelho a outras ilhas do Pacífico também, inclusive Samoa.36

Joseph foi enviado para o Pacífico, em parte, para proteger a ele e sua família dos delegados. Ele cumprira uma missão no Havaí com sua primeira esposa, Sally, dez anos antes. Após voltar para o continente, casara-se com Florence como esposa plural e passara um tempo preso sob a acusação de coabitação ilegal. As autoridades continuaram a perseguir Joseph até que ele e Florence partiram para o Havaí. Sally, enquanto isso, permaneceu em Salt Lake City com os cinco filhos que ela e Joseph tiveram.37

Joseph escreveu para Samuela vários meses após chegar ao Havaí, e Samuela logo respondeu, ávido para auxiliar na obra.38 Em maio de 1888, poucos meses após Florence dar à luz um menino que eles chamaram de Jasper, Joseph enviou uma carta para Samuela, informando-o de que ele e a família iriam para Samoa no mês seguinte. Pouco depois, Susa e Jacob Gates fizeram uma festa para a família Dean, e Joseph, Florence e seu filho bebê partiram para Samoa logo em seguida.39

Não houve incidentes no primeiro trecho de sua viagem de 3.200 quilômetros, mas o capitão do navio a vapor não tinha intenção de viajar até a ilha de Aunu‘u, onde Samuela morava. Em vez disso, ele aportou o navio em Tutuila, que ficava a uns 30 quilômetros a oeste de Aunu‘u.

Joseph não conhecia ninguém em Tutuila, mas procurou ansiosamente um líder em meio às pessoas que foram receber o navio. Avistando um homem que parecia estar no comando, Joseph estendeu a mão e disse uma das poucas palavras em samoano que ele conhecia: “Talofa!”

Surpreso, o homem retribuiu a saudação de Joseph. Joseph, então, tentou dizer a ele para onde ele e sua família queriam ir, falando em havaiano e salientando as palavras “Aunu‘u” e “Manoa”.

De repente, o homem arregalou os olhos. “Você é amigo de Manoa?”, perguntou ele em inglês.

“Sou, sim”, respondeu Joseph, aliviado.

O homem se chamava Tanihiili. Samuela o enviara para se encontrar com Joseph e a família e transportá-los para Aunu‘u. Ele os conduziu até um pequeno barco com uma tripulação de 12 outros samoanos. Depois que a família Dean embarcou, dez dos homens começaram a remar até alto mar, enquanto os outros dois e Tanihiili davam rumo ao barco. Lutando contra fortes ventos, os remadores manobraram o barco por cima e para além das ondas ameaçadoras, até o conduzirem em segurança ao porto de Aunu‘u.

Samuela Manoa e a esposa, Fasopo, saudaram Joseph, Florence e Jasper na praia. Samuela era um homem magro, bem mais velho que Joseph e de compleição frágil. Lágrimas lhe marcaram o rosto crestado pelas intempéries ao lhes dar as boas-vindas em havaiano. “Sinto-me grandemente abençoado por Deus nos ter reunido e por poder encontrar Seu bom servo aqui em Samoa”, disse ele.

Fasopo tomou Florence pela mão e a levou para a casa de três aposentos que todos compartilhariam. No domingo seguinte, Joseph pregou seu primeiro sermão em Samoa para uma casa repleta de vizinhos curiosos. Falou em havaiano, e Samuela traduziu. No dia seguinte, Joseph rebatizou e reconfirmou Samuela, como os santos faziam, às vezes, na época, para renovar seus convênios.

Uma mulher chamada Malaea estava entre os que se reuniram para observar a ordenança. Movida pelo Espírito, ela pediu que Joseph a batizasse. Ele já tinha trocado suas roupas batismais molhadas para a confirmação, mas as vestiu novamente e entrou nas águas.

Nas semanas que se seguiram, mais 14 samoanos foram batizados. Cheio de entusiasmo e esperança, Joseph escreveu para Wilford Woodruff em 7 de julho a fim de contar o que acontecera com sua família. “Sinto-me movido a profetizar em nome do Senhor que milhares de pessoas aceitarão a verdade”, relatou ele. “Esse é meu testemunho hoje e creio que viverei para vê-lo ser cumprido.”40

Capítulo 37

Ao trono da graça

Templo de Manti

Wilford Woodruff e George Q. Cannon chegaram ao Templo de Manti no meio da noite de 15 de maio de 1888. Tinham partido de Salt Lake City alguns dias antes, viajando depois do pôr do sol para evitarem os delegados. O último trecho da viagem era um percurso de quase 65 quilômetros de carruagem, através de um desfiladeiro traiçoeiro. Viajando no escuro, o condutor saiu duas vezes da estrada, quase fazendo com que os apóstolos caíssem no despenhadeiro.1

Wilford tinha ido a Sanpete Valley para dedicar o terceiro templo de Utah. Como sua presença em eventos públicos colocaria George e outros líderes da Igreja em perigo, Wilford decidiu dedicar o templo em uma pequena cerimônia privativa. Mais tarde, os santos realizariam uma dedicação pública sem ele para os que tivessem uma recomendação especial do bispo ou do presidente da estaca.2

A beleza do novo templo era de tirar o fôlego. Construído em pedra calcária de cor creme retirada das montanhas próximas, erguia-se no alto de uma colina com vista para um mar de campos de trigo. Adornos delicadamente esculpidos e murais coloridos decoravam o interior do templo, e duas magníficas escadarias em espiral pareciam suspensas no ar, sem um único pilar de sustentação.3

A conclusão do templo foi um momento radiante em uma época particularmente difícil para Wilford. A desunião no Quórum dos Doze continuava a ameaçar a capacidade deles de liderar eficazmente a Igreja. Oito meses se haviam passado desde o falecimento de John Taylor, e alguns dos apóstolos mais novos ainda viam defeitos em George. Wilford estava pronto para reorganizar a Primeira Presidência, mas não podia fazê-lo enquanto o quórum estivesse em desarmonia.

Os apóstolos tinham feito algum progresso no processo de cura da divergência que havia no quórum. Em março, Wilford os reunira várias vezes para tentar reconciliar as diferenças entre eles. Em uma reunião, lembrou ao quórum que eles precisavam ser guiados pela humildade e pelo amor. Humildemente confessou seus próprios erros ao falar, às vezes, com excessiva rispidez, o que inspirou cada apóstolo a confessar seus próprios pecados e pedir perdão aos outros. Depois disso, porém, alguns membros do quórum continuavam sem disposição de apoiar a formação de uma nova Primeira Presidência.4

A lei Edmunds-Tucker continuava a ameaçar a Igreja também. Com o poder de confiscar propriedades da Igreja de valor superior a 50 mil dólares, as autoridades federais tinham assumido o controle do escritório de dízimos da Igreja, do escritório do presidente e do quarteirão do templo, que incluía o Templo de Salt Lake, que estava em construção. O governo tinha, então, feito a proposta de alugar de volta o quarteirão do templo por uma taxa simbólica de um dólar por mês. Wilford achara a oferta ofensiva, mas concordou para permitir que a construção do templo prosseguisse.5

A nova lei também tinha colocado a supervisão das escolas públicas de Utah nas mãos de um comitê federal, e os apóstolos se preocupavam com a possibilidade de que os educadores santos dos últimos dias fossem ignorados quando buscassem um cargo no ensino. Mais cedo naquele ano, George havia sugerido que fossem estabelecidas mais academias de propriedade da Igreja para empregar esses instrutores e ensinar princípios do evangelho aos alunos. Wilford e os apóstolos apoiaram unanimemente esse plano e, em 8 de abril, anunciaram a organização de uma junta de educação para reger o novo sistema.6

Com esses assuntos ameaçando a Igreja, Wilford dedicou o Templo de Manti em 17 de maio de 1888. Na sala celestial, ele se ajoelhou em um altar e fez uma oração, agradecendo a Deus pela maravilhosa bênção de outro templo em Sião.

“Tu viste o trabalho de Teus santos na construção desta casa. Seus motivos e suas obras são todos conhecidos por Ti”, orou ele. “Nós hoje o apresentamos a Ti, ó Senhor nosso Deus, como fruto dos dízimos e das ofertas de livre e espontânea vontade de Teu povo.”

Naquele dia, após a dedicação, Wilford recebeu um relatório de que o delegado federal Frank Dyer estava exigindo que a Igreja entregasse todas as suas propriedades localizadas em Logan, inclusive a casa do dízimo, o tabernáculo e o templo. Wilford registrou uma simples oração em seu diário, pedindo a Deus que protegesse os templos contra aqueles que os desejavam profanar.7

Na semana seguinte, o apóstolo Lorenzo Snow presidiu a dedicação pública do Templo de Manti. Antes do início da sessão, muitos santos presentes no salão de assembleia do templo ouviram vozes angelicais cantando na sala. Em outras ocasiões, os santos viram halos ou manifestações brilhantes de luz em torno dos oradores. Algumas pessoas relataram ter visto Joseph Smith, Brigham Young, John Taylor e outras pessoas. Enquanto Lorenzo lia a oração dedicatória, alguém na congregação ouviu uma voz dizer: “Aleluia, aleluia, o Senhor seja louvado”.

Para os santos, aquelas manifestações espirituais eram sinais do zeloso cuidado de Deus. “Elas consolaram o povo”, escreveu uma pessoa que testemunhou as manifestações, “sendo uma prova de que, nos momentos mais sombrios, o Senhor está com eles”.8


Enquanto ainda estavam em missão no Havaí, Susa e Jacob Gates começaram a pensar no que aconteceria quando retornassem. Certo dia, no início de 1888, Jacob disse: “Su, eu gostaria que você trabalhasse no Exponent com o cargo de editora assistente”. Susa já tinha publicado artigos no Woman’s Exponent sob o pseudônimo de “Homespun”, e Jacob tinha grande confiança no talento dela.

Susa queria usar seus escritos para ajudar a Igreja. Eliza Snow a encorajara a “nunca escrever uma linha ou palavra que não visasse a ajudar e beneficiar este reino”, e Susa procurava seguir aquele conselho. Mais tarde, ela tinha começado a pensar em escrever artigos em defesa da Igreja para revistas do leste dos Estados Unidos. Mas nunca tinha pensado em trabalhar como editora antes.9

A verdade era que ela estava tendo dificuldades para encontrar tempo para escrever. Acordava às 6 horas na maioria das manhãs e dava atenção a três filhos e às intermináveis tarefas de cuidar de uma família.10 Mal se tinha passado um ano desde a morte de seus filhinhos menores, Jay e Karl, e ela ainda sofria com a perda, às vezes, desejando sair de Laie apenas para impedir que seus pensamentos se voltassem para as duas sepulturas na encosta da colina acima de sua casa. Uma tosse em qualquer um de seus filhos ainda a deixava ansiosa.11 Seria o momento certo para assumir mais responsabilidades?

Mas, assim que a ideia de trabalhar para o Exponent foi plantada na mente de Susa, rapidamente criou raízes. Ela escreveu para Zina Young, descrevendo seu desejo de mudar o Woman’s Exponent para uma revista mensal impressa em papel de boa qualidade, semelhante às revistas femininas que eram muito populares na época.

“Desejo do fundo da alma edificar este reino. Quero trabalhar arduamente para ajudar minhas irmãs”, escreveu ela. “Esse emprego seria um trabalho de amor, porque você sabe como adoro escrever.”12

Ao mesmo tempo, ela enviou uma carta para Emmeline Wells, a editora do jornal, e para outras pessoas que ela respeitava, pedindo conselhos. Romania Pratt, uma das poucas médicas do território, que regularmente escrevia para o Woman’s Exponent, foi a primeira a responder.

“Minha querida jovem e talentosa amiga”, escreveu ela, “não sinto que seria a melhor coisa para você ser membro ou associada no Exponent”. Emmeline gostava de gerenciar o jornal à maneira dela, explicou Romania, e não receberia de bom grado o envolvimento de Susa. Em vez disso, Romania sugeriu que Susa desse início a uma nova revista para as moças da Igreja.13

Susa adorou a ideia e escreveu para seu amigo Joseph F. Smith a esse respeito. Ele respondeu pouco tempo depois, dando seu total apoio. Ele vislumbrava uma revista escrita e produzida inteiramente por mulheres santos dos últimos dias e incentivou Susa a procurar “boas e sábias conselheiras” para ajudá-la.

“A nenhuma pessoa que seja capacitada deveria ser negado o privilégio de fazer o melhor de que ela é capaz”, escreveu ele. “Nossa comunidade difere de todas as outras. Nossa prosperidade depende de nossa união, nossa cooperação e nosso esforço mútuo. Não há ninguém independente.”14

Seguindo a recomendação de Joseph, Susa escreveu para Wilford Woodruff e para a presidência da Associação de Melhoramentos Mútuos das Jovens Damas, buscando o apoio deles para a revista. Wilford escreveu de volta alguns meses mais tarde, dando seu apoio. A presidência da AMMJD também deu seu apoio.

“Bem, está nas mãos do Senhor”, escreveu Susa em seu diário. Assim que ela retornasse aos Estados Unidos, tentaria tornar sua revista realidade.15


No outono de 1888, George Q. Cannon decidiu que era do melhor interesse seu e da Igreja que ele fosse para a prisão. Nos meses que antecederam a morte de John Taylor, o Senhor revelara que George precisava se ocultar novamente com o profeta para ajudar a administrar a Igreja. Como John havia falecido, e a liderança da Igreja estava nas mãos dos Doze, George já não tinha o dever de permanecer oculto.16

Wilford Woodruff também acreditava que os santos precisavam melhorar o relacionamento deles com o governo dos Estados Unidos para conseguir que Utah se tornasse um estado. Sob um governo estadual, os santos poderiam usar seu voto majoritário para eleger líderes que protegessem sua liberdade religiosa. Como a lei Edmunds-Tucker se aplicava apenas aos territórios, ela já não teria poder para prejudicar a Igreja caso Utah se tornasse um estado.17 Mas era pouco provável que o Congresso dos Estados Unidos concedesse a condição de estado a Utah enquanto um importante apóstolo fosse fugitivo da justiça.

Quando ele ficou sabendo que o promotor dos Estados Unidos estava disposto a recomendar uma sentença leve, George começou a refletir sobre como os santos se beneficiariam caso ele se entregasse. Sua rendição poderia servir como um sinal de paz para os legisladores de Washington. Também esperava que suas ações fortalecessem a determinação de outros homens de enfrentarem acusações semelhantes.18

Em 17 de setembro, ele se considerou culpado de duas acusações de coabitação ilegal, ciente de que poderia ter de passar quase um ano na cadeia. O presidente do tribunal, que, segundo os rumores, era mais moderado ao lidar com os santos do que os juízes anteriores, deu-lhe uma sentença relativamente curta de 175 dias atrás das grades.19

George quis dar início a seu tempo de prisão o mais breve possível, por isso, no mesmo dia em que recebeu a sentença, foi transportado para a penitenciária territorial de Utah. A prisão castigada pelas intempéries ficava em uma colina, em Salt Lake City.20 Normalmente, quando novos prisioneiros entravam no pátio, os internos gostavam de atormentá-los gritando: “Peixe fresco!” Mas, quando George entrou, ninguém gritou. Em vez disso, os homens o rodearam, surpresos e curiosos por verem um apóstolo na prisão.

Dentro da penitenciária, George encontrou três níveis de pequenas celas. O carcereiro lhe designou uma cela no nível mais alto, dizendo-lhe que poderia ficar ali sem que fossem trancadas as pesadas portas de ferro. No entanto, George não estava buscando favores. Vestiu o mesmo uniforme branco e preto da prisão e seguiu as mesmas regras que os demais internos.21

Depois de estar há pouco tempo na prisão, George organizou um curso de estudo da Bíblia. Mais de 60 homens assistiram à primeira reunião de domingo, inclusive vários que não eram santos dos últimos dias. Os prisioneiros leram e discutiram os cinco primeiros capítulos de Mateus. “Um espírito muito deleitoso prevaleceu”, escreveu George em seu diário.22

As semanas se passaram, e George sentiu que o tempo passado na prisão era mais feliz do que ele esperava. Nos dias de visita, ele tratava dos assuntos da Igreja e se reunia com outros apóstolos, inclusive Heber Grant, cujo coração começara a se abrandar em relação a ele. Também recebia visitas de amigos e familiares, e passava muito tempo aconselhando os outros prisioneiros.

“Minha cela parecia um lugar celeste”, escreveu George em seu diário. “Sinto que anjos estiveram ali.”23


Enquanto George Q. Cannon cumpria sua sentença na prisão, Joseph F. Smith viajou para Washington, D.C., a fim de ajudar o advogado da Igreja, Franklin S. Richards, a conseguir apoio político para que Utah se tornasse estado.24 Ainda fugitivo, Joseph às vezes se perguntava se deveria seguir o exemplo de George e se entregar às autoridades. Mas Wilford Woodruff havia designado Joseph para supervisionar as atividades políticas da Igreja em Washington, e Joseph acreditava que a condição de estado ou uma intervenção divina seriam o único caminho para uma liberdade religiosa duradoura para os santos.25

Em Washington, Joseph tinha a liberdade de andar pela cidade embora tomasse cuidado para evitar os salões do Congresso, onde alguém poderia reconhecê-lo. Passou vários dias ajudando Franklin a preparar um discurso para o comitê que recomendaria se o Congresso votaria a favor ou contra a concessão da condição de estado a Utah. Então, poucas horas antes do discurso, ele abençoou Franklin para que tivesse um bom espírito com ele.26

Durante o discurso, Franklin descreveu o casamento plural como uma prática prestes a desaparecer. Com frequência, disse ele, os processos por poligamia movidos pelo governo eram contra homens idosos que tinham adotado o casamento plural muitos anos antes. Franklin também afirmou que os residentes de Utah, a maioria dos quais não praticava o casamento plural, deveriam ter a liberdade de eleger seus próprios líderes sob um governo estadual.27

Após dias de deliberações, o comitê decidiu não fazer recomendações ao Congresso. Joseph ficou desapontado, mas considerou o discurso de Franklin tão bom que enviou cópias dele para mais de 3 mil legisladores e pessoas importantes de todo o país.

Pouco tempo depois, porém, recebeu um telegrama informando que George Peters, o promotor dos Estados Unidos para Utah, estava planejando intimar os familiares de Joseph a depor contra ele perante um grande júri.28

Joseph considerou isso um ato de traição. Poucos meses antes, Peters havia extorquido 5 mil dólares da Igreja, com a promessa de que seria complacente nas futuras ações legais movidas contra os santos dos últimos dias. Embora sempre fossem comprados e vendidos favores políticos nos Estados Unidos naquela época, Joseph sentiu todo o seu ser se encher de revolta contra o fato de aquela quantia ter sido paga a Peters. Mas, após debater a questão com Wilford, Joseph decidira que ceder à chantagem poderia ajudar a proteger os santos.29

Joseph respondeu imediatamente o telegrama, instruindo suas esposas e seus filhos sobre onde poderiam se esconder. Porém, sentiu-se ansioso por todo o restante do dia. “Oro a Deus que proteja minha família das garras de inimigos fanáticos e impiedosos”, escreveu ele em seu diário.30


Ao longo do inverno de 1888–1889, o Quórum dos Doze não conseguiu chegar a um acordo sobre a formação de uma nova Primeira Presidência. Os delegados federais, enquanto isso, continuavam a prender líderes da Igreja. Em dezembro, o apóstolo Francis Lyman se rendeu às autoridades, indo fazer companhia a George Q. Cannon na prisão. Como presidente dos Doze, Wilford Woodruff se via obrigado a liderar a Igreja com um número cada vez menor de apóstolos a seu lado.31

Wilford passava parte de seu tempo trabalhando em sua fazenda, escrevendo cartas e assinando recomendações para os santos que queriam frequentar os Templos de Logan, Manti ou St. George.32 Em fevereiro de 1889, George Q. Cannon foi libertado após passar cinco meses na prisão. Wilford o convidou com vários amigos a seu escritório, no dia seguinte, para comemorarem. Os membros do Coro do Tabernáculo arrastaram um órgão até ali, e o coro cantou hinos. Depois, alguns santos havaianos que tinham imigrado para Utah entoaram três canções, inclusive duas compostas para a ocasião. Um dos homens, Kanaka, tinha mais de 90 anos de idade. George o batizara em sua missão no Havaí, no início da década de 1850.

Naquela noite, Wilford foi recebido pela família Cannon para saborear um peru no jantar. “Seu pai tem o maior cérebro e a melhor mente de todos os homens do reino”, disse ele a um dos filhos de George. Agora que George tinha sido libertado da prisão, Wilford esperava que todos os apóstolos reconhecessem suas boas qualidades e seguissem em frente juntos para liderar a Igreja.33


Depois que Zina Young retornou a Salt Lake City, voltando de Cardston, ela sentiu todo o peso de sua nova responsabilidade como presidente geral da Sociedade de Socorro. Estava à frente de mais de 22 mil mulheres, em centenas de alas e ramos do mundo inteiro. Além de servir como líder espiritual, ela supervisionava várias instituições, como o Hospital Deseret, e muitos bens, incluindo mais de 32 mil alqueires de cereais em estoque.

Zina tinha escolhido duas líderes experientes da Sociedade de Socorro, Jane Richards e Bathsheba Smith, para apoiá-la como conselheiras, mas as exigências do chamado ainda lhe pareciam demasiadamente pesadas. Sua filha, Zina Presendia, lembrou-a de outra pessoa que poderia ajudar. “Fale com a querida tia Em”, escreveu ela. “Ela nasceu para ser um general.”34

Zina se referia a Emmeline Wells, que serviu como secretária da Sociedade de Socorro, uma função que a colocou no comando das comunicações, das transações financeiras e do agendamento de visitas a Sociedades de Socorro de todo o território. Os deveres de Emmeline como editora do Woman’s Exponent já a mantinham extremamente ocupada.35 Mesmo assim, ela concordou de boa vontade em ajudar Zina com suas novas responsabilidades.

“Evidentemente terei bem mais trabalho nas mãos do que tinha antes”, escreveu Emmeline em seu diário. “Assomam-se rapidamente muitas responsabilidades para as mulheres de Sião.”36

Tanto Zina quanto Emmeline tinham fortes sentimentos em relação ao direito de voto para as mulheres — um direito que a lei Edmunds-Tucker lhes havia tirado. No inverno de 1889, Zina e Emmeline se encontraram com Wilford Woodruff e outros líderes da Igreja para discutir a formação de uma associação em prol do sufrágio feminino em Utah. Wilford e outros membros do Quórum dos Doze deram todo o seu apoio.37

Em breve, as reuniões em prol do sufrágio feminino começaram a ser realizadas logo após as reuniões regulares da Sociedade de Socorro, em todas as alas de Utah e de Idaho. Emmeline com frequência publicava relatórios dessas reuniões no Woman’s Exponent. Zina, enquanto isso, conclamava o governo dos Estados Unidos a devolver o “direito divinamente concedido do sufrágio” para as mulheres de Utah. “Por ele e com ele poderemos realizar imenso bem para o mundo”, disse ela. Também declarou seu comprometimento de trabalhar com as mulheres de fora da Igreja. “Esperamos estender a mão para as mulheres da América”, disse ela, “e dizer que estamos com vocês nessa grande luta”.38

À medida que a Sociedade de Socorro crescia, Zina se preocupava com a possibilidade de que as estacas individuais ficassem desconectadas das líderes da Sociedade de Socorro, e umas das outras. Sua solução foi convidar as Sociedades de Socorro das estacas remotas para uma conferência em Salt Lake City. A Associação de Melhoramentos Mútuos dos Rapazes realizara conferências semelhantes com sucesso.39

A primeira conferência geral da Sociedade de Socorro foi marcada para 6 de abril de 1889, de modo a coincidir com a data da conferência geral. Naquela noite, Zina se levantou no Assembly Hall, na Praça do Templo, diante das mulheres que se haviam reunido em Sião provenientes de muitas nações. Nos 40 anos que se passaram, mais de 80 mil santos dos últimos dias tinham emigrado para a América, vindos de além-mar. A maioria era do Reino Unido, mas muitos outros tinham vindo da Escandinávia e de países das regiões de língua alemã da Europa. Outros ainda tinham vindo da Nova Zelândia, da Austrália e das ilhas do Pacífico.

Zina encorajava as várias congregações a visitar as reuniões umas das outras para se conhecerem. “Haverá a tendência à união e à harmonia, será promovida confiança e serão fortalecidos os laços que nos unem”, prometeu ela, “porque há mais diferença em nossa maneira de falar do que nas motivações de nosso coração”.

“Irmãs, sejamos um grande grupo organizado e defendamos o que é certo”, disse ela. “Não duvidem da bondade de Deus nem da veracidade da obra na qual estamos engajadas.”40


Na primeira sexta-feira de abril de 1889, Wilford Woodruff reuniu os apóstolos. Quase dois anos se haviam passado desde o falecimento de John Taylor, e Wilford aguardara pacientemente que o quórum se tornasse unido. Ele havia liderado, conforme as revelações instruíam, de modo gentil e manso, com longanimidade e amor não fingido. Agora, na véspera do início da conferência geral de abril, ele sentia que chegara a hora de reorganizar a Primeira Presidência.

Nos meses anteriores, havia se desenvolvido um crescente consenso entre os apóstolos de que a formação de uma Primeira Presidência era do melhor interesse para a Igreja, e que Wilford era a escolha do Senhor para liderá-los, não importando quem ele escolhesse como seus conselheiros. Wilford tinha até escrito para Francis Lyman na prisão e recebido seu apoio.41

Os apóstolos concordaram unanimemente, então, em formar uma nova Primeira Presidência. Wilford, então, nomeou George Q. Cannon como seu primeiro conselheiro e Joseph F. Smith como segundo conselheiro.

“Só posso aceitar essa nomeação sabendo que é a vontade do Senhor”, disse George, “e que ela tem a sincera e plena aprovação de meus irmãos”.

“Orei sobre o assunto”, assegurou-lhe Wilford, “e sei que essa é a mente e a vontade do Senhor”.

Apesar das dúvidas que ainda tinha sobre George, Moses Thatcher votou a favor. “Quando votar a favor dele, eu o farei sem restrições e tentarei apoiá-lo com toda a minha força”, disse ele. Heber Grant também manifestou seu apoio à escolha feita pelo presidente Woodruff, com apenas algumas ressalvas.

O restante dos apóstolos apoiou a nova presidência de todo o coração, e Wilford ficou contente de ver que o quórum estava finalmente se unindo. “Nunca vi uma época em que a Igreja precisasse tanto do serviço dos Doze quanto hoje”, disse ele.42

No domingo, milhares de santos lotaram o tabernáculo para a sessão da tarde da conferência geral. Naquela assembleia solene, os membros da Igreja tiveram a oportunidade de apoiar a nova Primeira Presidência. Quando foi lido o nome de Wilford e de seus conselheiros, um mar de mãos se ergueu em apoio.43

“Tenho o grande desejo de que, como povo, sejamos unidos de coração, tenhamos fé nas revelações de Deus e contemplemos as coisas que nos foram prometidas”, disse Wilford aos santos mais tarde naquela reunião. Ele, então, prestou testemunho de Jesus Cristo.

“Com mansidão e humildade de coração, Ele trabalhou fielmente enquanto habitava na carne para levar a efeito a vontade de Seu Pai”, disse ele. “Acompanhem a história de Jesus Cristo, o Salvador do mundo, desde a manjedoura à cruz, passando pelos sofrimentos, mesclados com sangue, ao trono da graça, e verão um exemplo para os élderes de Israel, um exemplo para todos os que seguem o Senhor Jesus Cristo.”44

Capítulo 38

Em meu próprio tempo e a meu modo

dois homens em um pequeno barco a vela

No início de 1889, Joseph Dean estava com dificuldades para encontrar pessoas para ensinar em Samoa. Pouco depois de ele e sua esposa Florence terem chegado à ilha de Aunu‘u, no verão anterior, o trabalho progredira rapidamente, e a ilha logo tinha santos suficientes para formar um ramo, com uma Escola Dominical e uma Sociedade de Socorro. Também haviam sido enviados novos missionários de Salt Lake City para auxiliar a família Dean e os santos samoanos.

Mas Samoa estava no meio de uma guerra civil, e perigosas batalhas irrompiam pelas ilhas, com facções lutando para assumir o controle. Para piorar as coisas, o rei se opunha à Igreja. Espalharam-se rumores de que ele tornara ilegal o batismo santo dos últimos dias e que todos os que fossem batizados seriam lançados na prisão. Agora, cada vez menos pessoas pediam para ser batizadas.1

Apesar dessas dificuldades, os santos samoanos construíram uma capela, cobrindo-a com folhas de coqueiro e forrando o chão de conchas e cascalho branco. Florence Dean e Louisa Lee, outra mulher que servia missão com o marido, realizavam as reuniões da Sociedade de Socorro todas as sextas-feiras. Os élderes, enquanto isso, compraram um pequeno barco a vela para poderem pregar o evangelho em outras ilhas samoanas. Deram ao novo barco o nome de Faa‘aliga, uma palavra samoana que significa “revelação”.2

No final de 1888, Joseph, Florence, seu filho pequeno e vários missionários se mudaram de Aunu‘u para uma ilha vizinha maior, Tutuila. Mas a ilha tinha uma população pequena, e a maioria dos homens estava fora lutando na guerra. Poucas pessoas se interessavam pelo evangelho, e Joseph logo sentiu que ele e os outros missionários não estavam mais tendo progresso. Ele decidiu ir para a ilha de Upolu e visitar Apia, a cidade onde ficava a sede do governo e que era o centro de comércio dos samoanos.3

Em Upolu, Joseph planejou contatar o cônsul americano e discutir as alegadas ameaças do rei contra os santos. Também queria se encontrar com um homem chamado Ifopo, que fora batizado pelo missionário havaiano Kimo Belio, uns 25 anos antes. Ifopo já tinha enviado duas cartas a Joseph, estando ansioso para se encontrar com os missionários que poderiam ajudar a estabelecer a Igreja em sua ilha.4

Na noite de 11 de março, Joseph e seus dois companheiros, Edward Wood e Adelbert Beesley, navegaram até Upolu, uma viagem de mais de 100 quilômetros. Eles sabiam como era perigoso três marujos inexperientes viajarem em um pequeno barco por águas potencialmente turbulentas. Ainda assim, Joseph sentiu que o Senhor queria que eles fizessem aquela viagem.

Depois de uma noite velejando por águas agitadas, os missionários se aproximaram de Upolu. Perto da praia, porém, uma rajada de vento os pegou de surpresa. O barco virou e imediatamente se encheu de água. Os homens tentaram se agarrar a remos, caixas e baús que ficaram boiando em meio às ondas. Quando avistaram outro barco a uns 400 metros dali, gritaram e assobiaram até que ele finalmente se voltou na direção deles.

Os samoanos que foram resgatar os missionários passaram quase uma hora endireitando o barco, mergulhando sob as ondas para recuperar as velas e a âncora, e ajudando os missionários a reunir seus pertences. Joseph ficou sentido por não ter dinheiro para dar aos homens pelo serviço deles, mas eles bondosamente aceitaram seu aperto de mão, e ele pediu ao Senhor que os abençoasse.

Quando Joseph e seus companheiros chegaram à cidade de Apia, estavam exaustos. Fizeram uma oração de agradecimento a Deus por protegê-los durante a viagem. Nos dias que se seguiram, saíram para procurar o cônsul americano e Ifopo.5


De volta a Utah, Lorena Larsen, de 29 anos, estava grávida de seu quarto filho. O marido, Bent, tinha recentemente terminado de cumprir uma pena de seis meses na cadeia por coabitação ilegal. Como Lorena era uma esposa plural, sua gravidez poderia ser usada como prova de que Bent violara a lei novamente. Para manter a família segura, ela decidiu se ocultar.6

Lorena, a princípio, procurou refúgio servindo no Templo de Manti. O templo ficava a quase 100 quilômetros de sua cidade natal, Monroe, e um pedido fora feito à sua ala para que fornecesse oficiantes para o templo. Lorena se mudou para Manti e serviu no templo por algum tempo, mas era difícil ficar separada dos filhos, que tinham sido deixados aos cuidados de Bent e de outros familiares. Após quase sofrer um abordo espontâneo, Lorena foi desobrigada honrosamente pelo presidente do templo, Daniel Wells.7

Lorena e Bent decidiram, então, alugar uma casa para ela e os filhos na cidade de Redmond, na metade do caminho entre Monroe e Manti. Como havia informantes por toda parte, Lorena teve de manter sua identidade secreta. Seu nome passou a ser Hannah Thompson, e ela disse aos filhos que, caso o pai deles fosse visitá-los, deveriam chamá-lo de “tio Thompson”. Lorena salientou repetidas vezes a importância de não revelarem seu nome verdadeiro.8

Quando a família chegou a Redmond, Lorena evitava lugares públicos e passava a maior parte do tempo em casa. Certa tarde, porém, ela se reuniu com um grupo de irmãs da Sociedade de Socorro muito cordiais que lhe contaram que, ao perguntarem à sua filha de 2 anos qual era o nome dela, a menina respondera: “Tio Thompson”.

Os bondosos santos de Redmond foram rápidos em prestar serviços à família de Lorena. No domingo de Páscoa, ela encontrou um balde com ovos frescos e meio quilo de manteiga junto à sua porta. Ainda assim, tinha saudades de sua casa em Monroe. Grávida e sozinha, todos os dias eram uma luta para cuidar das três crianças em uma cidade desconhecida.9

Então, certa noite, Lorena teve um sonho. Viu seu gramado em Monroe coberto de arbustos silvestres e trepadeiras. Foi doloroso ver sua casa em ruínas, por isso ela imediatamente se pôs a arrancar as ervas daninhas do quintal. Ao começar a puxar as profundas raízes, Lorena de repente se viu ao lado de uma bela árvore, carregada dos melhores frutos que ela já tinha visto. Ouviu uma voz dizer: “A árvore do lugar em que você se esconde produz frutos muito bons também”.

No sonho, Lorena se viu rodeada de entes queridos. Seus filhos, então plenamente crescidos, foram até ela levando pratos, bacias e pequenos cestos. Juntos, encheram as bacias de frutos deliciosos e os distribuíram para a multidão, alguns dos quais Lorena percebeu serem seus descendentes.

Lorena sentiu regozijo no coração e acordou tomada de gratidão.10


Pouco depois de chegar a Apia, Joseph Dean e seus companheiros foram falar com o vice-cônsul americano em Samoa, William Blacklock, e perguntaram se eram verdadeiros os rumores de que santos dos últimos dias samoanos tinham sido presos. “Isso não passa de um blefe”, assegurou-lhes o vice-cônsul. Um tratado entre as facções em guerra nas ilhas permitia que as pessoas adorassem como bem desejassem.11

Ainda assim, a ameaça de guerra pairava sobre as ilhas. Sete navios de guerra estavam ancorados no porto de Apia — três da Alemanha, três dos Estados Unidos e um da Inglaterra. Cada uma das nações estava determinada a defender seus interesses no Pacífico.12

Ansiosos para encontrar Ifopo, os missionários planejaram em seguida viajar de barco até a vila dele, Salea’aumua, no extremo leste da ilha.13 Mas uma tempestade caiu sobre Apia. Ventos uivantes e ondas gigantescas fizeram Joseph e seus companheiros correrem para procurar abrigo. Depois de se abrigarem no sótão acima do estábulo de um comerciante local, os missionários sentiram a precária construção chacoalhar sob a tempestade que se avolumava e temeram que a estrutura desabasse.

A tormenta se intensificou, e os missionários ficaram junto a uma janela, vendo horrorizados o ciclone fustigar os enormes navios de guerra no porto. Imensas ondas se quebravam sobre o convés de um dos navios, varrendo homens para o mar. Alguns marinheiros de outro navio subiram nos mastros e nas velas, agarrando-se às cordas como aranhas, ao passo que outros pulavam no mar turbulento, tentando nadar para um lugar seguro. Os navios estavam a apenas 100 metros da praia, mas nada podia ser feito para ajudar aqueles homens. Tudo o que Joseph podia fazer era orar por misericórdia.14

Após a tempestade, a praia ficou apinhada de detritos e destroços dos navios de guerra, e cerca de 200 pessoas haviam perecido.15 Os missionários estavam temerosos de enfrentar o mar novamente. Durante a estação de ciclones, outra tempestade poderia se abater sem aviso.16 Deixando os temores de lado, porém, os missionários navegaram para Salea’aumua a fim de se encontrar com Ifopo.

Quando lá chegaram, um grupo de samoanos remou ao encontro deles, e um samoano se apresentou como sendo Ifopo. Por duas décadas, ele permanecera fiel a seu testemunho do evangelho restaurado mesmo sem saber se novos missionários chegariam um dia à sua ilha. Agora Joseph e seus companheiros tinham chegado, e era hora de comemorar. Conheceram a esposa de Ifopo, Matalita, e saborearam um banquete de porco assado e frutas.17

Nos dias que se seguiram, os missionários conheceram os amigos e vizinhos de Ifopo. Durante uma reunião, cem pessoas se reuniram para ouvir Joseph falar, e o Espírito foi poderoso. As pessoas eram sinceras em suas perguntas, ávidas para conhecer mais sobre o evangelho.

Em certa tarde, Ifopo e os missionários caminharam até um riacho próximo. Embora Ifopo já tivesse sido batizado, muitos anos haviam se passado, e ele pediu para ser batizado novamente. Joseph entrou nas águas com seu novo amigo e o imergiu nelas. Ifopo, então, ajoelhou-se na margem do riacho, e os missionários o confirmaram membro da Igreja.

Poucos dias depois, o vento mudou, permitindo que Joseph e seus companheiros iniciassem a viagem de volta a Tutuila. Ifopo os acompanhou até passarem os recifes para lhes mostrar o caminho. Quando chegou o momento de se despedirem, ele apertou o nariz contra o nariz de cada um dos missionários, um por vez, despedindo-se deles com um beijo samoano.18


Na primavera de 1889, o marido de Lorena Larsen, Bent, decidiu escapar dos delegados federais fugindo para a relativa segurança do Colorado, um estado vizinho onde a lei Edmunds-Tucker não se aplicava. Sua primeira esposa, Julia, poderia ficar com o restante da família dela em Monroe. Mas ele queria que Lorena e os filhos ficassem em Utah, com o irmão dela, até que Bent estivesse suficientemente estabelecido no Colorado para mandar buscá-los.19

Lorena não gostou desse plano. O irmão era pobre, ela lembrou Bent, e a cunhada tinha recentemente se recuperado de febre tifoide. Não estavam em condições de ajudar Lorena e os filhos. Lorena estava também chegando aos meses finais de sua gravidez e queria o marido ao lado dela.

Bent concordou, e Lorena e os filhos logo partiram para o Colorado com ele. Era uma jornada de mais de 800 quilômetros, atravessando desertos e montanhas. Eram terras selvagens, e os homens que encontravam pelo caminho com frequência aparentavam ser perigosos. Em certo ponto da trilha, a única água disponível era tirada de buracos na encosta rochosa das montanhas. Bent procurava água enquanto Lorena lentamente conduzia o carroção pelo desfiladeiro, chamando o nome dele periodicamente para garantir que não o perderia na escuridão.

Lorena ficou grata quando a família finalmente chegou a Sanford, Colorado, unindo-se a uma pequena comunidade de santos que havia ali. Quando chegou a hora de Lorena dar à luz, ela ainda estava fraca da viagem. Seu trabalho de parto foi tão difícil que ela ficou com medo de morrer. O filho de Lorena, Enoch, finalmente nasceu em 22 de agosto, e a parteira disse que aquele era o maior bebê que ela ajudara a nascer em 26 anos.20

Enquanto isso, as leis e práticas que visavam a prejudicar a Igreja continuavam a oprimir famílias como a dos Larsen. Até os santos que não praticavam o casamento plural eram afetados.

Em Idaho, a assembleia legislativa territorial aprovara uma lei que exigia que os eleitores em potencial jurassem que não pertenciam a uma igreja que ensinasse ou encorajasse a poligamia. Não importava se os eleitores participavam ou não da prática eles mesmos. Isso praticamente impedia que todos os santos de Idaho, ou quase um quarto da população, votassem ou tivessem cargo público. Os imigrantes santos dos últimos dias que chegavam aos Estados Unidos também eram tratados de maneira diferente dos demais pelas autoridades governamentais e juízes, que se recusavam a permitir que se tornassem cidadãos.

Processos que questionavam a legalidade dessas medidas tramitavam pelo sistema jurídico dos Estados Unidos, mas o sentimento público contrário à Igreja era forte, e poucos eram os veredictos a favor dela. No entanto, os advogados da Igreja haviam contestado a legalidade da lei Edmunds-Tucker assim que o congresso a aprovou, e os santos estavam esperançosos de que a suprema corte a derrubasse. A suprema corte começara recentemente a estudar o caso, mas ainda não tinha emitido seu parecer, deixando os santos em suspense.21

Mesmo em uma cidade remota como Sanford, Lorena sabia que sua família e a Igreja continuariam fragmentadas e temerosas enquanto o governo continuasse a negar aos santos seus direitos religiosos.22


Enquanto a família Larsen e outros membros da Igreja se ocultavam para preservar suas famílias e praticar sua religião, a Primeira Presidência procurava novas maneiras de proteger a liberdade religiosa dos santos. Determinado a conquistar aliados em Washington, D.C., e a conseguir que Utah se tornasse um estado, Wilford Woodruff começara a incentivar os editores de jornais dos santos dos últimos dias a não mais atacar o governo em suas publicações. Pediu aos líderes da Igreja que parassem de falar publicamente sobre o casamento plural para não provocar os que se opunham à Igreja no governo. E pediu ao presidente do Templo de Logan que não mais realizasse casamentos plurais na casa do Senhor.23

Sob essas novas normas, um número cada vez menor de santos contraiu novos casamentos plurais. Ainda assim, alguns santos ainda esperavam seguir o princípio, como fora anteriormente ensinado. Estes eram geralmente incentivados a ir para o México ou para o Canadá, onde os líderes da Igreja discretamente realizavam casamentos fora do alcance do governo dos Estados Unidos. Ocasionalmente, porém, ainda eram realizados casamentos plurais no território de Utah.24

Em setembro de 1889, enquanto visitavam os santos no norte de Salt Lake City, Wilford Woodruff e George Q. Cannon se reuniram com um presidente de estaca, que perguntou se ele deveria emitir recomendações para o templo para os santos que quisessem contrair um casamento plural.

Wilford não respondeu de imediato à pergunta do presidente da estaca. Em vez disso, ele o lembrou que os santos tinham sido ordenados a construir um templo no condado de Jackson, Missouri, mas foram forçados a abandonar seus planos quando a oposição se tornou grande demais. O Senhor aceitara a oferta dos santos mesmo assim, e as consequências de não terem construído um templo caíram sobre as pessoas que os impediram disso.

“Portanto, agora depende desta nação”, disse Wilford, “e as consequências disso terão de cair sobre aqueles que tomarem o curso de procurar nos impedir de obedecer a esse mandamento”.

Ele, então, respondeu à pergunta do presidente de modo direto. “Sinto que não é adequado que qualquer casamento desse tipo seja realizado neste território no presente momento”, disse ele. Depois, apontando para George, acrescentou: “Aqui está o presidente Cannon. Ele pode dizer o que pensa a esse respeito”.

George ficou estupefato. Jamais ouvira Wilford falar tão claramente sobre o assunto — e não sabia se concordava com ele. Será que a Igreja deveria parar de realizar casamentos plurais no território de Utah? Pessoalmente, ele não estava tão pronto quanto Wilford para responder àquela pergunta, por isso não deu resposta, deixando a conversa passar para outros assuntos.

Mais tarde, porém, quando George registrou a conversa em seu diário, ele continuou a se debater com o que Wilford dissera. “Para mim, essa é uma questão extremamente séria”, escreveu ele, “e essa foi a primeira vez que esse tipo de coisa foi proferido, pelo que sei, por alguém que tem as chaves”.25


Em meio às crescentes dúvidas sobre o futuro da Igreja, Susa Gates publicou a primeira edição do Young Woman’s Journal em outubro de 1889.

Susa começou a promover a revista depois que ela e Jacob retornaram para Utah no início daquele ano. Em junho, sua irmã Maria Dougall, conselheira na presidência geral da Associação de Melhoramentos Mútuos das Jovens Damas, incentivou as moças da Estaca Salt Lake a darem seu apoio e contribuírem com a nova revista. Poucos meses depois, vários jornais imprimiram o anúncio de sua iminente publicação.26

Susa também convidou vários autores santos dos últimos dias a enviarem poesias e textos para o jornal. Por anos, os santos com talentos literários tinham aprimorado suas habilidades de escrita em jornais e periódicos patrocinados pela Igreja, como o Woman’s Exponent, o Juvenile Instructor e o Contributor. Na Europa, os santos também tinham enviado artigos para o Millennial Star, da Missão Britânica; o Skandinaviens Stjerne e o Nordstjarnan, da Missão Escandinava; e o Der Stern, da Missão Suíço-Germânica.27

Os santos, às vezes, chamavam esses escritos de “literatura doméstica”, um termo que trazia à mente o conceito citado por Brigham Young de “indústrias domésticas”, ou produtos produzidos localmente, como açúcar, ferro e seda. Em um sermão proferido em 1888, o bispo Orson Whitney incentivou os jovens da Igreja a criarem mais literatura doméstica para mostrar os maiores talentos literários que havia entre os santos e prestar testemunho do evangelho restaurado de Jesus Cristo.

“Escrevam para os jornais e para as revistas — principalmente nossas publicações domésticas”, pedira-lhes ele. “Façam seus próprios livros, que não apenas serão um crédito para vocês e para a terra e o povo que os produziram, mas também um grande benefício para a humanidade.”28

Na primeira edição do Young Woman’s Journal, Susa publicou obras de literatura doméstica escritas por algumas das mais famosas autoras da Igreja, incluindo Josephine Spencer, Ruby Lamont, Lula Greene Richards, M. A. Y. Greenhalgh e as irmãs Lu Dalton e Ellen Jakeman. Também incluiu alguns de seus próprios escritos, uma carta da presidência geral da A.M.M.J.D. e uma coluna sobre saúde e higiene, escrita por Romania Pratt.29

Em seu primeiro editorial para o jornal, Susa expressou esperança de que a revista em breve publicaria escritos das moças de toda a Igreja. “Lembrem-se, moças, de que esta é sua revista”, escreveu ela. “Que esse campo de utilidade se estenda desde o Canadá até o México, de Londres até às Ilhas Sandwich.”30


Mais tarde naquele outono, um juiz federal de Utah negou a cidadania americana a vários imigrantes europeus porque eles eram santos dos últimos dias e, portanto, na opinião do juiz, desleais aos Estados Unidos. Nas audiências, membros dissidentes da Igreja afirmaram que os santos faziam juramentos hostis contra o governo em seus templos. Os promotores distritais também citaram sermões da época em que os líderes da Igreja se manifestaram com veemência contra autoridades governamentais corruptas e pessoas que tinham saído da Igreja. Esses sermões, e outros ensinamentos da Igreja sobre os últimos dias e o reino de Deus, foram falsamente utilizados como prova de que os santos não respeitavam a autoridade do governo.31

Wilford e outros líderes da Igreja sabiam que tinham de responder a essas falsas alegações. Mas seria difícil responder a declarações feitas sobre o templo, a respeito do qual os santos tinham feito a solene promessa de não falar.32

No final de novembro, Wilford se reuniu com advogados que aconselharam os líderes da Igreja a fornecer mais informações ao tribunal a respeito do templo. Eles também recomendaram que ele fizesse um anúncio oficial de que nenhum outro casamento plural seria realizado pela Igreja. Wilford estava inseguro sobre como proceder em relação aos pedidos dos advogados. Será que essas medidas seriam realmente necessárias simplesmente para pacificar os inimigos da Igreja? Ele precisava de tempo para buscar a vontade de Deus.33

Já era noite quando os advogados deixaram Wilford sozinho. Por horas, ele ponderou e orou pedindo orientação sobre o que fazer.34 Ele e os santos tinham ido ao Vale do Lago Salgado em 1847, procurando outra chance de estabelecer Sião e coligar os filhos de Deus na paz e na segurança de suas fronteiras. Passados, então, mais de 40 anos, os opositores da Igreja estavam destruindo as famílias, privando mulheres e homens de seu direito ao voto, criando obstáculos para a imigração e a coligação, e negando os direitos de cidadania às pessoas pelo simples fato de pertencerem à Igreja.

Em pouco tempo, os santos poderiam perder ainda mais — inclusive os templos. O que aconteceria então à salvação e à exaltação dos filhos de Deus nos dois lados do véu?

Enquanto Wilford orava, o Senhor lhe respondeu. “Eu, Jesus Cristo, o Salvador do mundo, estou em vosso meio”, disse Ele. “Tudo o que revelei, prometi e decretei concernente à geração em que vives acontecerá, e nenhum poder deterá Minha mão.”

O Salvador não disse a Wilford exatamente o que fazer, mas prometeu que tudo ficaria bem se os santos seguissem o Espírito.

“Tem fé em Deus”, disse o Salvador. “Ele não te abandonará. Eu, o Senhor, livrarei meus santos do domínio dos iníquos em meu próprio tempo e a meu modo.”35

Capítulo 39

Nas mãos de Deus

telegrama anunciando o Manifesto

Em 14 de dezembro de 1889, o recém-chamado apóstolo Anthon Lund recebeu um telegrama da Primeira Presidência em sua casa, em Ephraim, Utah. Preocupada com os recentes casos de santos nascidos no exterior aos quais fora negada a cidadania americana, a presidência queria redigir uma resposta à acusação de que era impossível aos santos serem cidadãos leais. Os líderes da Igreja tinham esboçado uma declaração que negava essa e outras declarações falsas e queria anexar o nome de Anthon a ela como membro do Quórum dos Doze.1

Anthon defendia a Igreja de acusações falsas desde quando era criança. Depois de se filiar à Igreja ainda menino, em sua terra natal, a Dinamarca, ele fora espancado por colegas de classe por suas crenças. Mas, em vez de reagir com raiva, Anthon havia lhes demonstrado paciência e bondade, acabando por conquistar a amizade e o respeito deles. Anthon partiu da Dinamarca aos 18 anos para se unir aos santos de Utah e, nas décadas subsequentes, ele e a esposa, Sanie, e seus seis filhos tinham sacrificado muito para edificar o reino de Deus.2

Anthon respondeu imediatamente ao telegrama da Primeira Presidência, aceitando que seu nome fosse incluído na declaração deles. Embora tivesse ocupado muitos cargos de responsabilidade na Igreja, tendo inclusive servido na presidência do Templo de Manti, aquela era a primeira vez que seu nome seria levado ao mundo inteiro como apóstolo de Jesus Cristo.

Ao contrário de outros membros do Quórum dos Doze, Anthon nunca praticara o casamento plural. Era também o primeiro apóstolo dos dias modernos cujo idioma natal não era o inglês. Wilford Woodruff estava confiante de que aquelas diferenças seriam benéficas para o quórum e sabia que o chamado de Anthon era a vontade de Deus. Os modos educados de Anthon e sua fluência em vários idiomas poderiam ajudar a conduzir a Igreja para o novo século.3

Quando Anthon foi chamado para os Doze, Wilford pediu a George Q. Cannon que lhe desse o encargo apostólico para prepará-lo para suas novas responsabilidades. “Para cumprir esse chamado adequadamente, será necessário o trabalho de toda uma vida”, disse George a Anthon. “Você vai sentir, como provavelmente jamais sentiu antes, a necessidade de viver próximo de Deus e de invocar Seu poder e ter a proteção Dele por meio de Seus anjos a seu redor.”

Com esse encargo, Anthon aprendeu que tinha o privilégio, como apóstolo, de conhecer a mente e a vontade de Deus. Ele precisava se manter fiel às revelações que recebesse — mesmo quando isso parecesse contrário a seu juízo natural. “Você não pode ser demasiadamente modesto”, lembrou-lhe George. Anthon precisava expressar seu ponto de vista livremente, mas também ouvir mansamente o profeta do Senhor. “Devemos estar dispostos a nos sentar e a assistir às manifestações do Espírito de Deus nesse homem que Deus escolheu”, dissera George.4

No dia em que Anthon respondeu ao telegrama, a Primeira Presidência e o Quórum dos Doze publicaram sua declaração no Deseret News. Com uma linguagem clara, eles proclamaram que a Igreja abominava a violência e pretendia conviver em paz com o governo dos Estados Unidos apesar das dificuldades que haviam sofrido sob as leis contrárias à poligamia promulgadas pelo país.

“Não reivindicamos uma liberdade religiosa que não estejamos dispostos a conceder a outros”, afirmava a declaração. “Desejamos estar em harmonia com o governo e o povo dos Estados Unidos, como parte integral da nação.”5


Naquele inverno, enquanto os líderes procuravam esclarecer suas crenças para a nação, Jane Manning James escreveu para Joseph F. Smith procurando esclarecer algumas coisas para si mesma. Jane estava com mais de 60 anos e se preocupava com o que a vida futura lhe reservava. A maioria dos santos de Utah tinha recebido ordenanças do templo que os selava a entes queridos nesta vida e na vida futura. Mas Jane entendia que, sendo ela um santo dos últimos dias de raça negra, não lhe seria permitido participar dessas ordenanças mais elevadas.

Mesmo assim, Jane sabia que Deus prometera abençoar todas as nações da Terra por intermédio de Abraão. Sem dúvida, pensava Jane, essa promessa se aplicava a ela também.6

Algo que aumentava a ansiedade de Jane a respeito de sua vida futura era a situação atual de sua família. Ela e o marido, Isaac, divorciaram-se na primavera de 1870. Em 1874, ela se casara com Frank Perkins, outro santo dos últimos dias negro, mas o casamento deles não durou muito. Nesses anos, ela perdera três filhos e vários netos devido a doenças. Embora quatro de seus filhos ainda estivessem vivos, nenhum deles era tão devoto à Igreja quanto ela.7

Será que eles estariam com ela na vida futura? Se não, haveria um lugar e uma família para ela lá?

Quando jovem, Jane morou e trabalhou na casa de Joseph e Emma Smith, em Nauvoo. Durante aquele período, Emma a convidou para ser adotada como filha dela e de Joseph, mas Jane nunca deu uma resposta direta antes da morte de Joseph. Agora, porém, Jane entendia que os santos poderiam ser adotados nas famílias por meio de um selamento especial no templo. Ela acreditava que Emma a convidara para se unir à família deles dessa maneira.8

No início de 1883, Jane visitou o presidente John Taylor a fim de pedir permissão para receber sua investidura. O presidente Taylor discutiu a questão com ela, mas ele achava que ainda não chegara o momento para que os santos negros recebessem as elevadas ordenanças do templo. Ele analisara a questão vários anos antes quando outro santo negro, Elijah Able, pedira para receber suas ordenanças do templo. Embora sua pesquisa tivesse confirmado que Elijah recebera o Sacerdócio de Melquisedeque na década de 1830, o presidente Taylor e outros líderes da Igreja decidiram mesmo assim recusar o pedido de Elijah por motivo de raça.9

Quase dois anos após conversar com o presidente Taylor, Jane lhe fez um novo pedido. “Estou ciente da minha raça e cor e não posso esperar minha investidura”, declarou ela nessa época. Mas ela observou que Deus prometera abençoar toda a descendência de Abraão. “Como esta é a plenitude de todas as dispensações”, perguntou ela, “não haveria bênçãos para mim?”

“Você conhece minha história”, prosseguiu ela. “De acordo com o melhor que fui capaz de fazer, tenho cumprido todas as exigências do evangelho.” Ela voltou a narrar o convite que Emma lhe fizera e expressou seu desejo de ser adotada na família de Joseph Smith. “Se eu pudesse ser adotada por ele como filha”, observou ela, “minha alma ficaria satisfeita”.10

Pouco depois de Jane enviar sua carta, o presidente Taylor partiu de Salt Lake City para visitar os assentamentos do sul e o México, e não respondeu a ela antes de morrer. Quatro anos depois, o presidente da estaca de Jane emitiu uma recomendação para que ela realizasse batismos pelos mortos no templo. “Você deve se contentar com esse privilégio e esperar mais instruções do Senhor para Seus servos”, escreveu ele. Pouco depois, Jane viajou até o Templo de Logan e recebeu o batismo por sua mãe, sua avó, sua filha e outros parentes falecidos.11

Na carta que estava enviando para Joseph F. Smith, Jane novamente solicitava a oportunidade de receber as ordenanças do templo, incluindo a adoção na família Smith. “Isso pode ser feito? E quando?”, perguntou ela.12

Jane não recebeu resposta para sua carta, por isso escreveu de novo em abril. Novamente não recebeu resposta. Jane continuou a ter fé no evangelho restaurado e nos profetas, orando para que pudesse receber a salvação no reino do Senhor. “Sei que esta é a obra de Deus”, disse ela certa vez a sua Sociedade de Socorro. “Nunca houve uma ocasião em que tive vontade de recuar.”

Ela também confiava nas promessas que havia recebido recentemente em uma bênção patriarcal dada por John Smith, o irmão mais velho de Joseph F. Smith.

“Mantém sagrados os teus convênios, porque o Senhor ouviu tuas petições”, assegurava-lhe a bênção. “As mãos Dele têm estado sobre ti para o bem, e verdadeiramente receberás tua recompensa.

Concluirás tua missão e receberás tua herança entre os santos”, prometia a bênção, “e teu nome será transmitido para a posteridade em honrosa lembrança”.13


Em uma tarde lamacenta, no final de abril de 1890, Emily Grant foi até a casa de sua amiga Josephine Smith. As duas mulheres moravam em Manassa, uma cidadezinha do Colorado que ficava vários quilômetros ao sul da casa de Lorena e Bent Larsen, em Sanford. Longe dos grandes assentamentos dos santos em Utah, Manassa tinha se tornado um refúgio para as “viúvas polígamas”, ou seja, as esposas plurais que viviam ocultas. Emily se sentia solitária ali, mas estava se esforçando para criar um lar, naquela cidade varrida pelo vento, para si mesma e para suas filhas, Dessie, de 4 anos, e a bebê Grace.

Durante o curto trajeto de charrete até a casa de Josephine, Dessie ficou inquieta e chorou, triste por seu amado “tio Eli” não poder estar com elas. Emily estava triste também. “Tio Eli” era o codinome dado por Emily ao apóstolo Heber Grant, seu marido e pai de Dessie e Grace. Sendo a terceira esposa de Heber, Emily usava esse nome nas cartas e com as crianças a fim de proteger a identidade de Heber.

Mais cedo naquele dia, Heber partira para sua casa em Salt Lake City, após ter passado dois dias com Emily e as meninas. Emily esperava que a visita a Josephine a animasse. Mas assim que ela e as meninas lá chegaram, Emily rompeu em prantos. Josephine entendia os sentimentos da amiga. Ela própria era uma esposa plural do apóstolo John Henry Smith, que acabara de chegar à cidade para uma breve visita.14

Emily nunca achava que as visitas de Heber fossem longas o suficiente. Os dois cresceram juntos na Ala Salt Lake City XIII e se casaram na primavera de 1884, após um longo namoro. Como esposa plural, Emily não pôde tornar seu casamento de conhecimento público e se mudara com frequência nos seis anos que se seguiram, passando um tempo no sul de Idaho, na Inglaterra e em um apartamento oculto na casa de sua mãe, em Salt Lake City.15

Emily estava agora em Manassa, esperando que um dia sua longa separação de Heber chegasse ao fim. Acostumada à vida na cidade grande, ainda estava se adaptando à vida em uma cidade pequena e, às vezes, sentia estar a centenas de quilômetros da civilização. Heber procurou ajudar oferecendo-lhe uma casa mobiliada, uma parelha de cavalos, algumas vacas e galinhas, uma ajudante contratada e uma assinatura do Salt Lake Herald. Sua sogra, Rachel Grant, também fora passar um tempo com ela na cidade isolada.16

“Tenho agora tudo o que gostaria de ter”, disse Emily certa vez a Heber em uma carta escrita de Manassa. “Exceto você.”17

Quase duas semanas após a visita de Heber, Emily escreveu para ele a respeito de uma reunião realizada em Manassa, na qual dois líderes da Igreja disseram que as “viúvas” da cidade talvez jamais conseguissem voltar para Utah. “Disseram que a próxima medida do congresso seria confiscar as propriedades dos líderes da Igreja”, contou ela, “e, então, ficaríamos muito felizes se você viesse morar aqui”.

Mas Emily não estava convencida de que conseguiria ser feliz morando na cidade.18 “Continuo a orar para me contentar, mas ainda me sinto desanimada e triste”, escreveu ela a Heber poucos meses depois. “Não se esqueça de orar por mim, querido, porque sem a ajuda de meu Pai Celestial não conseguirei suportar isso por muito tempo e permanecer sã.”19

No domingo, 17 de agosto, Wilford Woodruff e seus conselheiros visitaram o pequeno assentamento. Nessa época, a suprema corte dos Estados Unidos tinha emitido seu parecer sobre a legalidade da lei Edmunds-Tucker. A corte estava dividida no caso, mas uma pequena maioria de juízes votou pela manutenção da lei apesar das reivindicações dos santos de que ela violava sua liberdade religiosa. O parecer deu às autoridades governamentais plena liberdade para colocar em prática as sanções da lei, abrindo-lhes a possibilidade de confiscar mais propriedades da Igreja.20

Em uma reunião com os santos, em Manassa, George Q. Cannon advertiu as famílias a serem cautelosas. Alguns dos homens da cidade estavam morando com mais de uma esposa, disse ele, e esses homens se arriscavam a atrair problemas e perseguição sobre toda a comunidade. O comentário deixou alguns homens zangados, e eles foram procurar George no dia seguinte para dizer como era difícil para suas famílias morarem separadas.21

Antes de Wilford e seus conselheiros partirem, Emily os recebeu em sua casa com outros amigos para o desjejum. Depois disso, ela e umas poucas mulheres acompanharam os visitantes até a estação ferroviária. O trem estava atrasado, dando a Emily a chance de conversar um pouco mais com a Primeira Presidência. Quando o trem finalmente chegou, ela agarrou a mão de cada homem, um por vez. “Deus vos abençoe”, disseram uns aos outros. “A paz seja convosco.”

Emily ansiava por partir de Manassa também. “Eles foram embora bem rápido”, escreveu ela a Heber, “e nós voltamos para este lugar desolado”.22


A Primeira Presidência retornou a Salt Lake City no final de agosto, bem a tempo para o aniversário de um ano de Iosepa, o primeiro assentamento de santos havaianos em Utah. O nome Iosepa era a versão havaiana do nome Joseph.23

Quando os havaianos começaram a se filiar à Igreja no final da década de 1850, o reino do Havaí proibira seu povo de sair das ilhas, levando os líderes da Igreja a estabelecer Laie como local de coligação dos santos havaianos. Mas as leis foram abrandando com o tempo, e alguns havaianos, ávidos por receber as bênçãos do templo, tinham começado a se coligar no território de Utah, na década de 1880.

Em 1889, a Primeira Presidência organizou um comitê, que incluía três homens havaianos, para encontrar um lugar adequado em Utah onde os santos havaianos pudessem estabelecer casas e fazendas. Depois de avaliar diversas áreas, o grupo propôs vários lugares, incluindo uma fazenda de quase 770 hectares, quase 100 quilômetros a sudoeste de Salt Lake City. A Primeira Presidência analisou os achados do comitê e decidiu comprar a fazenda para estabelecer o novo assentamento.24

Durante todo o ano seguinte, os santos de Iosepa trabalharam arduamente para construir casas, cultivar plantações e cuidar dos rebanhos. O primeiro inverno tinha sido inclemente, em especial se comparado com o clima tropical do Havaí. Mas os colonos perseveraram, esperançosos de que o rico solo de Iosepa e o farto suprimento de água das montanhas próximas provesse uma colheita abundante no verão.25

No dia da comemoração, fazia calor, e o céu estava límpido. Enquanto os membros da Primeira Presidência, todos acompanhados das respectivas esposas, aproximavam-se do assentamento, Iosepa parecia um oásis verdejante em meio à paisagem desértica. Os pés de milho dos campos ao redor estavam altos, com grandes espigas despontando dos talos, e o feno colhido nos campos estava ajuntado em grandes montes amarelos.

Os santos havaianos rodearam os visitantes, ávidos para cumprimentar seu profeta e os conselheiros, George Q. Cannon e Joseph F. Smith, ambos tendo servido missão no Havaí quando jovens. A noite foi repleta de alegres músicas, com os santos de Iosepa cantando e tocando violão, mandolim e violino.

A comemoração prosseguiu no dia seguinte com uma parada seguida de um almoço, no qual foi servido carne assada em uma vala. Quando George abençoou o alimento, fez a oração em havaiano — a primeira vez que orava nessa língua em 36 anos.

Mais tarde, no mesmo dia, todos compareceram a uma reunião especial. Solomona, um homem com mais de 90 anos que George batizara décadas antes, proferiu uma fervorosa oração de abertura. Um dos santos, Kaelakai Honua, falou da misericórdia de Deus em coligar o povo das ilhas do mar em Sião. Outro homem, Kauleinamoku, lamentou o fato de alguns do povo terem deixado Iosepa para retornar ao Pacífico. Ele advertiu os santos a serem fiéis e a não cederem ao espírito de insatisfação.

Em todo o assentamento de Iosepa, as pessoas comemoraram juntas, e Wilford, George e Joseph se deleitaram com a felicidade deles. Embora George não tivesse mantido sua fluência no havaiano, maravilhou-se por compreender quase tudo o que era dito nas festividades.26


Poucos dias após a Primeira Presidência ter retornado de Iosepa, receberam a notícia de que Henry Lawrence, o novo funcionário federal nomeado para confiscar as propriedades da Igreja pela lei Edmunds-Tucker, estava então ameaçando confiscar os Templos de Logan, Manti e St. George.

Tendo sido membro da Igreja no passado, Henry foi um feroz opositor dos santos por mais de duas décadas. Ele pertenceu ao Novo Movimento, de William Godbe e Elias Harrison, e testemunhou contra a Igreja no recente julgamento que impedia os santos imigrantes de receberem a cidadania.

Henry sabia que a lei Edmunds-Tucker protegia os edifícios usados “exclusivamente para o propósito de adorar a Deus”, mas pretendia mostrar que os templos eram usados para outros propósitos, podendo, assim, confiscá-los com outras propriedades.

Em 2 de setembro, a Primeira Presidência ficou sabendo que Henry conseguira um mandado intimando Wilford a depor no tribunal sobre as propriedades da Igreja. Procurando evitar a intimação, a presidência viajou para a Califórnia a fim de consultar vários homens influentes que eram favoráveis à causa dos santos. Mas esses homens não puderam dar muita esperança de que o governo dos Estados Unidos ou o povo americano mudasse de ideia em relação à Igreja enquanto os santos continuassem a praticar o casamento plural.27

Wilford e seus conselheiros retornaram a Utah algumas semanas depois, ficando sabendo, então, que a comissão de Utah, um grupo de autoridades federais que administrava as eleições de Utah e monitorava o cumprimento por parte dos santos das leis contrárias à poligamia, tinha acabado de enviar seu relatório anual ao governo federal. Naquele ano, o relatório afirmava falsamente que os líderes da Igreja ainda estavam incentivando e sancionando o casamento plural. Também declarava sem provas que 41 casamentos plurais tinham sido realizados em Utah no ano anterior.

A fim de eliminar o casamento plural de uma vez por todas, a comissão recomendava que o congresso aprovasse leis ainda mais rígidas contra a Igreja.28

O relatório deixou Wilford furioso. Embora não tivesse feito uma declaração pública sobre a situação do casamento plural na Igreja, ele já havia determinado que nenhum casamento plural fosse realizado em Utah ou em qualquer outro lugar dos Estados Unidos. Além disso, muito fizera ao longo do ano anterior para desencorajar novos casamentos plurais a despeito das alegações em contrário do relatório.29

Em 22 de setembro, Wilford se reuniu com seus conselheiros na Gardo House, a residência oficial do presidente da Igreja em Salt Lake City, para discutir o que fazer em relação ao relatório. George Q. Cannon propôs que fosse publicado algo que refutasse essas afirmações falsas. “Talvez não nos seja oferecida melhor oportunidade”, disse ele, “de oficialmente, como líderes da Igreja, levar a público nossos pontos de vista referentes à doutrina e à lei que foi promulgada”.30

Mais tarde, depois das reuniões daquele dia, Wilford orou pedindo orientação. Se a Igreja não parasse de realizar casamentos plurais, o governo continuaria aprovando leis contra os santos, cuja grande maioria nem sequer praticava o princípio. Reinariam o caos e a confusão em Sião. Mais homens iriam para a cadeia, e o governo confiscaria os templos. Os santos haviam realizado centenas de milhares de ordenanças pelos mortos desde a dedicação dos novos templos. Se o governo tomasse posse desses edifícios, quantos filhos de Deus, vivos e mortos, seriam impedidos de receber as sagradas ordenanças do evangelho?31

No dia seguinte, Wilford disse a George que ele acreditava ser seu dever como presidente da Igreja emitir um manifesto, ou declaração pública, para a imprensa. Depois, pediu que seu secretário fosse com ele até uma sala particular, deixando George esperando do lado de fora.

Nesse ínterim, o apóstolo Franklin Richards chegou à Gardo House procurando o profeta. George lhe disse que Wilford estava ocupado e que não poderia ser interrompido. Pouco tempo depois, Wilford saiu da sala particular com uma declaração que acabara de ditar. Sua intranquilidade em relação ao relatório da comissão de Utah se dissipara. Seu rosto parecia brilhar, e ele aparentava estar contente e satisfeito.

Wilford fez com que o documento fosse lido em voz alta. A declaração negava que tivessem sido realizados novos casamentos plurais no ano anterior e reafirmava a disposição da Igreja de trabalhar com o governo. “Como a nação promulgou leis proibindo o casamento plural”, declarava o documento, “sentimos que devemos obedecer a essa lei e deixar os acontecimentos nas mãos de Deus”.

“Sinto que será bom”, disse George. Ele não achava que a declaração estivesse pronta para ser publicada, mas as ideias contidas nela estavam certas.32

No dia seguinte, a Primeira Presidência pediu a três talentosos escritores — o secretário George Reynolds, o editor de jornal Charles Penrose e o conselheiro no Bispado Presidente John Winder — que refinassem a linguagem da declaração e a preparassem para publicação. Wilford, então, apresentou o documento revisado aos apóstolos Franklin Richards, Moses Thatcher e Marriner Merrill, e eles recomendaram alguns refinamentos adicionais.

Depois de revisado, o Manifesto, como passou a ser chamado, declarava o fim de futuros casamentos plurais e salientava a decisão de Wilford de obedecer às leis do país e de persuadir os santos a fazer o mesmo.

“Não estamos ensinando a poligamia, ou seja, o casamento plural, nem permitindo que qualquer pessoa adote tal prática”, dizia um trecho do documento. “Eu aqui declaro minha intenção de submeter-me a essas leis e de usar minha influência junto aos membros da Igreja que presido, para que eles façam o mesmo.”33

Os apóstolos presentes aprovaram o documento e o enviaram por telegrama para a imprensa.34

“Esse assunto foi totalmente encabeçado pelo presidente Woodruff”, anotou George Q. Cannon naquele dia em seu diário. “Ele declarou que o Senhor definiu que essa tarefa era sua e sentiu de modo claro em sua mente que era a coisa certa a fazer.”35

Wilford também anotou suas reflexões a respeito do Manifesto em seu diário. “Cheguei a um ponto na história da minha vida como presidente de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias”, escreveu ele, “em que tenho a necessidade de agir em favor da salvação temporal da Igreja”.36

Ele sabia que o governo tinha assumido uma postura contrária ao casamento plural. Por isso, Wilford tinha orado e recebido inspiração do Espírito, e o Senhor revelou Sua vontade para os santos.

Capítulo 41

Há tanto tempo imerso

martelo de juiz

Na tarde de 25 de fevereiro de 1891, Jane Richards, a primeira conselheira na presidência geral da Sociedade de Socorro, estava se preparando para discursar em Washington, D.C., na primeira conferência do Conselho Nacional de Mulheres. Nos dois dias e meio anteriores à conferência, ela apreciara ouvir mulheres de todos os Estados Unidos falarem sobre seus esforços na educação, no serviço de caridade, na reforma moral e na cultura. Era então chegada a hora de seu discurso, e o auditório estava repleto de centenas de pessoas que tinham comparecido para ouvir o que os santos dos últimos dias tinham a dizer.1

Durante a maior parte dos 50 anos anteriores, a Sociedade de Socorro tinha se concentrado em suprir as necessidades dos santos. A presidente geral da Sociedade de Socorro, Zina Young, sentia fortemente, porém, que as organizações femininas da Igreja deveriam trabalhar com outros grupos a fim de promover causas como o sufrágio feminino. A participação no Conselho Nacional das Mulheres era uma oportunidade para que as líderes da Sociedade de Socorro e da Associação de Melhoramentos Mútuos das Jovens Damas se reunissem e trabalhassem com outras que compartilhavam valores e metas semelhantes.2

Jane foi escolhida para participar da conferência porque Emmeline Wells queria enviar mulheres instruídas e bem informadas sobre as questões femininas de Utah. Também queria enviar alguém corajoso, uma qualidade que ela acreditava que Jane tinha em abundância.

Acompanhando Jane a Washington foram Emmeline, Sarah Kimball e outras líderes femininas da Igreja. Antes de partirem, aquelas mulheres foram abençoadas e designadas por imposição de mãos por um apóstolo ou um membro da Primeira Presidência para representarem suas respectivas organizações.

Ao contrário das visitas anteriores de preeminentes mulheres santos dos últimos dias a Washington, elas não estavam indo a fim de conquistar apoio para os santos. Estavam indo como líderes de organizações de mulheres que desejavam se expressar em relação a seu trabalho, não apenas em Utah, mas também em todos os outros lugares em que a Sociedade de Socorro e a AMMJD estavam estabelecidas.3

Antes que Jane e as outras representantes de Utah pudessem se unir ao conselho, um comitê decidiria se as aceitaria ou não. A maioria das mulheres do comitê reconhecia os esforços da Sociedade de Socorro para promover o sufrágio feminino, para organizar as mulheres em escala nacional e internacional, e para estabelecer um bom relacionamento com líderes importantes dos movimentos femininos nacionais.4 Mas uma mulher se opôs à inclusão delas, achando que tinham vindo para pregar a poligamia.

Outras integrantes do comitê se manifestaram em defesa dos santos, citando o Manifesto como prova de que a delegação de Utah era confiável. No final, o comitê decidiu unanimemente aceitar a Sociedade de Socorro e a AMMJD em seu meio.5

Quando chegou a vez de Jane falar, ela foi breve em seus comentários. Disse à assembleia que a Sociedade de Socorro acreditava em oferecer amor, boa vontade, paz e alegria a todos. Também expressou gratidão pelas mulheres de todos os lugares que acreditavam no mesmo.

“Podemos divergir de opinião em algumas coisas”, disse ela, “mas nosso grande objetivo é fazer o bem a todos”.6

Enquanto estava em Washington, Jane falou a muitas pessoas sobre a Sociedade de Socorro e os santos. Admirou as mulheres que conheceu e o trabalho que realizavam, desejando ter 500 cópias do Manifesto para entregar às pessoas que tinham perguntas em relação ao casamento plural. Antes de voltar para casa, ela convidou muitas de suas novas amigas a visitarem Utah.

Se quisessem conhecer os santos dos últimos dias, disse ela, a melhor coisa a fazer seria passar um tempo entre eles.7


Naquele inverno, Emily Grant viu que era cada vez mais difícil suportar os ventos gélidos e uivantes do Colorado sozinha.8 Desde que a Igreja promulgara o Manifesto, seu relacionamento com o governo dos Estados Unidos começou a melhorar. Autoridades de Washington, inclusive o presidente, já não estavam interessadas em tirar o direito de voto dos santos nem em confiscar seus templos. E a corte suprema dos Estados Unidos determinou que os filhos de casamentos polígamos podiam novamente herdar propriedades.

Mas as leis federais contrárias à poligamia continuavam em vigor. Os delegados ainda estavam prendendo pessoas sob a acusação de poligamia e coabitação ilegal, porém em menor número.9 Se Emily saísse da relativa segurança de Manassa, seu casamento plural com Heber Grant poderia se tornar público, colocando sua família em risco.10

O pai de Emily, Daniel Wells, havia falecido em março de 1891. Ela e as filhas, Dessie e Grace, retornaram a Salt Lake City para o funeral, e Heber concordou que ela deveria se mudar de volta para a cidade. Ele acreditava que, desde que ele e Emily mantivessem em segredo seu casamento, morando em casas separadas e sem serem vistos juntos em público, a família poderia morar mais perto uns dos outros.11

Familiares e amigos quiseram realizar uma festa para comemorar o retorno de Emily a Salt Lake City, mas ela preferiu ficar fora da vista das pessoas. “Quero apenas conversar com meus amigos e parentes sem aparecer muito em qualquer lugar”, disse ela a Heber.12 Ela se mudou para a casa da mãe, a poucos quarteirões de onde Heber morava, e continuou a se comunicar com ele principalmente por meio de cartas. Essa vida não era exatamente o que Emily queria, mas estava bem melhor do que morando a centenas de quilômetros dali.13

Naquela primavera, a filha de Emily e Heber, Dessie, fez 5 anos. Além de chamar a si mesma de “Mary Harris” e Heber de “tio Eli”, Emily chamava Dessie de “Pattie Harris” para proteger a ela e à família dos delegados. Como a situação deles estava melhor, Emily e Heber tinham em grande parte deixado de lado o disfarce e começado a usar seus nomes verdadeiros nas cartas que trocavam.

No aniversário de Dessie, Emily a vestiu com um vestido novo, enrolou seu cabelo e o prendeu com uma nova fita azul. “Agora que você já está ficando grande”, disse Emily. “Vou lhe contar um grande segredo.” Ela revelou o verdadeiro nome de Dessie e lhe disse que o tio Eli era, na verdade, o pai dela.14

Pouco depois, Dessie também ficou sabendo que duas de suas novas amigas, Rachel e Lutie, eram suas irmãs, filhas do pai com a esposa dele Lucy. Um dia, Lutie, de 10 anos, foi à casa de Emily com seu pônei baio, Flaxy, puxando um carrinho. Ela queria levar as irmãs para passear. Emily não tinha certeza se era seguro deixar as meninas saírem, mas cedeu. Dessie e Grace subiram no carrinho e logo as irmãs partiram.15

Emily estava grata por finalmente estar de volta à sua casa em Salt Lake City. Ela não gostava de ter que ocultar seu relacionamento com Heber, desejando que a família dela tivesse a liberdade de andar pela cidade como bem quisesse. Mas via a mão de Deus em seu reencontro com o marido e sabia que estavam felizes com o amor que tinham um pelo outro.

“O fato de eu ter suportado tudo isso me parece extraordinário”, escreveu ela, “e oro por forças para suportar o que o futuro me reserva”.16


Naquela primavera, John Widtsoe, de 19 anos, comemorou sua formatura no Brigham Young College, em Logan. Na cerimônia de formatura, ele recebeu um reconhecimento especial por sua excelência em retórica, alemão, química, álgebra e geometria.17

Durante o tempo que passou na escola, John ficava entusiasmado toda vez que adquiria um novo conhecimento. A escola ainda era nova, e não havia muitos livros na biblioteca nem equipamentos no laboratório. Nem seus professores tinham um nível muito elevado de instrução embora fossem excelentes instrutores que sabiam simplificar um assunto e ensiná-lo aos alunos.

O diretor da escola, Joseph Tanner, tinha sido aluno de Karl Maeser, o famoso reitor da Academia Brigham Young, de Provo, que servia então como superintendente de quase 40 escolas da Igreja. Tendo sido missionário na Europa e no Oriente Médio, Joseph também dava aulas de religião, instruindo John e seus colegas sobre o plano de salvação e a Restauração do evangelho. A teologia se tornou um dos assuntos preferidos de John. Ela moldou seu caráter e sua visão da vida, tornando-o mais sensível às diferenças entre o certo e o errado.18

Por volta da época de sua formatura, Joseph convidou John a se unir a ele e a um grupo de estudiosos santos dos últimos dias que se matriculariam em um curso de verão na Universidade Harvard, a mais antiga e respeitada dos Estados Unidos. Joseph queria que os estudiosos tivessem uma formação educacional de primeira classe, podendo utilizá-la depois para melhorar a qualidade do ensino nas escolas de Utah.19

Harvard era justamente o tipo de lugar que a mãe de John, Anna, sempre sonhara que ele frequentasse, e ela apoiou sua decisão de ir para lá, confiante de que se sairia muito bem nos estudos. Para pagar o custo do curso, John fez um empréstimo em um banco local. Cinco amigos da família, incluindo Anthon Skanchy, o missionário que tinha batizado Anna na Noruega, também lhe deram auxílio financeiro.

John partiu para Harvard menos de um mês após sua formatura. Pouco tempo depois, Anna negociou um empréstimo referente à sua casa, alugou-a e se mudou para Salt Lake City, onde ela e o filho caçula, Osborne, poderiam encontrar mais trabalho para sustentar a família e pagar os estudos de John.

Anna escrevia com frequência para John. “Você provavelmente terá muitas pequenas dificuldades e pequenos desapontamentos a princípio”, disse-lhe ela em uma carta, “mas essas coisas podem ser de grande utilidade para você no futuro”.

“Deus está com você e Ele vai abençoá-lo em dobro do que você ousa pedir em oração ou sequer imaginar”, prometeu ela. “Simplesmente se incline perante o Senhor em oração no momento designado, e sempre que sentir vontade, com um coração grato e humilde.”20


Em Salt Lake City, Joseph F. Smith continuava oculto, mesmo que a ameaça de prisão e condenação tivesse diminuído. Ao contrário dos casamentos plurais de Heber Grant, os de Joseph eram de conhecimento público, e seu cargo na Primeira Presidência há muito o tornara um alvo dos delegados federais.

Nos dias de semana, Joseph visitava suas esposas e seus filhos após escurecer e retornava a seu escritório na Gardo House para dormir. Nos fins de semana, ele se arriscava a ficar mais tempo e passar a noite com a família, rodiziando a cada semana as casas de suas cinco esposas.21 Viver como fugitivo era desanimador. “Até que o Senhor me alivie de alguma forma que não vejo agora”, escreveu ele para sua tia Mercy Thompson, “estou fadado a permanecer oculto por algum tempo ainda”.22

Em junho de 1891, Joseph escreveu uma carta ao presidente dos Estados Unidos, Benjamin Harrison, pedindo anistia, ou a remoção de todas as acusações criminais contra ele. Como havia mais boa vontade entre a Igreja e o governo dos Estados Unidos, Joseph acreditava que poderia receber o perdão.23

Ao buscar anistia, porém, Joseph não estava prometendo abandonar suas esposas. O Manifesto não dera instruções sobre como os santos que já viviam o casamento plural deveriam agir, mas Wilford Woodruff tinha aconselhado as presidências de estaca e as autoridades gerais em particular sobre como interpretar sua mensagem. “Este manifesto somente se refere aos casamentos futuros e não afeta as condições passadas”, disse ele. “Eu não disse nem poderia lhes dizer que abandonassem suas esposas e seus filhos. Vocês não podem fazer isso com honra.”24

Umas poucas pessoas decidiram encerrar seus casamentos plurais, mas a maioria procurava cumprir o Manifesto de modo menos drástico. Alguns homens continuavam a fazer o melhor que podiam para sustentar suas famílias plurais, tanto financeira quanto emocionalmente, sem morar com elas. Outros continuavam a morar com as famílias, como se nada tivesse mudado, mesmo que ao fazerem isso se arriscassem a ser condenados e presos.

De sua parte, Joseph decidiu continuar a cuidar de sua família como sempre, acreditando que estava cumprindo o Manifesto e ao mesmo tempo obedecendo à lei que proibia a coabitação.25

No início de setembro, Joseph ficou sabendo por uma notícia de jornal que o presidente Harrison lhe concedera a anistia. Ele não quis comemorar nem sair em público, porém, até que tivesse os documentos em mãos. “Estou há tanto tempo imerso na enxurrada dos acontecimentos”, escreveu ele em uma carta para um amigo, “se eu alcançar algum tipo de liberdade, vou me erguer como alguém que se levanta dentre os mortos, ou nascer de novo, com novas experiências para obter e aprender tudo de novo”.26

A carta de anistia chegou pouco tempo depois. Cheio de gratidão, Joseph esperava que esse perdão resultasse em uma anistia geral para todos os santos que tinham contraído um casamento plural antes do Manifesto. Mas também sabia que esse perdão não impediria o governo de fazer novas acusações contra os homens que continuassem a viver com as esposas com quem se casaram há muito tempo. Por segurança, ele decidiu permanecer à noite no escritório da Primeira Presidência, enquanto ensinava seus filhos e dava apoio à sua grande família. Ele e suas cinco esposas continuaram a ter mais filhos.27

Um domingo após o recebimento da anistia, Joseph compareceu à Escola Dominical da Ala Salt Lake City XVI. Falou para as crianças na classe e conversou depois com vários amigos e conhecidos. Mais tarde, naquele dia, participou de uma reunião vespertina, no tabernáculo, na qual foi convidado a falar.

Enquanto olhava para os santos, Joseph se sentiu quase dominado pela emoção. “Passaram-se uns sete anos desde que tive pela última vez o privilégio de me colocar diante de uma congregação de pessoas neste tabernáculo”, disse ele. Tantas coisas haviam mudado em sua ausência que ele se sentiu como uma criança que ficara fora de casa por muito tempo.

Ele prestou testemunho da Restauração, afirmando que era a obra do Senhor. “Agradeço a Deus, o Pai Eterno, por ter colocado esse testemunho em meu coração e minha alma”, declarou ele, “porque ele me dá luz, esperança, alegria e consolo que ninguém pode conceder ou tirar”.

Também orou para que Deus ajudasse os santos a fazer o que era certo e honroso perante o Senhor e perante a lei. “Temos que viver no mundo como somos”, disse ele. “Temos que fazer o melhor que podemos nas circunstâncias em que fomos colocados. É isso que o Senhor exige das mãos dos santos dos últimos dias.”28


Pouco depois de Joseph F. Smith receber a anistia, Wilford Woodruff declarou que era a mente e a vontade de Deus que os santos terminassem a construção do templo. Os trabalhadores tinham colocado o telhado do edifício dois anos antes, permitindo que os carpinteiros e outros artesãos trabalhassem o ano inteiro. Mas ainda faltava muito a ser feito na parte externa do edifício, incluindo a instalação de uma grande estátua de um anjo na torre mais alta do templo. A estátua seria esculpida pelo renomado artista Cyrus Dallin, que havia sido criado em Utah e recebera extensa instrução artística no leste dos Estados Unidos e em Paris.

No início de outubro, dezenas de líderes da Igreja concordaram em ajudar a levantar 100 mil dólares para a construção embora provavelmente custaria bem mais para concluir o edifício.29 Por volta dessa época, a Primeira Presidência e vários apóstolos também pediram a devolução de propriedades da Igreja no valor de aproximadamente 400 mil dólares que o governo havia confiscado devido à lei Edmunds-Tucker.30

A reivindicação das propriedades da Igreja confiscadas poderia aliviar significativamente a dívida financeira dos santos, mas também exigiria que alguém da Primeira Presidência e dos Doze participasse de uma audiência e respondesse às perguntas dos advogados do governo referentes ao comprometimento da Igreja em relação à obediência às leis contra a poligamia.31

Nas semanas que antecederam a audiência, os advogados da Igreja apresentaram à Primeira Presidência e aos membros dos Doze as perguntas que os advogados do governo poderiam fazer. Vários apóstolos se preocuparam em como responder às perguntas sobre o futuro do casamento plural na Igreja. A prática seria encerrada para sempre, ou o Manifesto seria uma medida temporária? E como deveriam responder à pergunta se os maridos deveriam ou não continuar a viver com as esposas plurais e a sustentá-las?

Dependendo de como respondessem, os líderes da Igreja corriam o risco de perder a boa-fé que o governo estava tendo e confundir — ou até ofender — os santos.32

No dia da audiência, 19 de outubro de 1891, Charles Varian, um advogado do governo dos Estados Unidos, interrogou Wilford por várias horas.33 Suas perguntas visavam a fazer com que Wilford esclarecesse a postura da Igreja em relação ao casamento plural e ao propósito do Manifesto. Wilford, por sua vez, procurou responder aos advogados com sinceridade, sem se pronunciar de modo definitivo sobre a situação das uniões existentes.

Depois do início do interrogatório, Charles perguntou a Wilford o que o Manifesto significava para as pessoas que já estavam em um casamento plural. Era esperado que deixasse de se associar um com o outro, como marido e mulher?

Wilford não respondeu diretamente à pergunta. “Minha intenção era a de que a proclamação fosse universalmente aplicável”, disse ele, “de modo a obedecer totalmente às leis da terra”. Ele sabia que os santos que participavam de casamentos plurais tinham feito convênios sagrados com Deus e jamais poderia lhes pedir que violassem seus votos conjugais. Mas cada pessoa era individualmente responsável por obedecer às leis da terra de acordo com sua consciência.34

“O único motivo dessa declaração foi devido a essas leis?”, perguntou Charles, tentando mensurar a sinceridade dos líderes da Igreja ao emitir o Manifesto.

“Quando fui nomeado presidente da Igreja, analisei cuidadosamente essa questão”, respondeu Wilford, “e já faz um bom tempo que estou convencido em minha mente de que o casamento plural deve ser encerrado nesta Igreja”.

Wilford, então, descreveu como as leis contra a poligamia puniam não apenas a pequena porcentagem de santos que praticavam o casamento plural, mas também as dezenas de milhares de santos que não o faziam. “Foi com base nisso que promulguei o Manifesto — eu diria por inspiração”, explicou ele.35

“Por que você não declarou esse Manifesto à sua igreja como uma revelação, em vez de um conselho pessoal seu?”, perguntou Charles.

“A meu ver, essa inspiração é revelação”, respondeu Wilford. “Ela vem da mesma fonte. Não acho que seja preciso que alguém diga: ‘Assim disse o Senhor’.”

Charles, então, perguntou a Wilford se o Manifesto era resultado direto das dificuldades impostas aos santos pela lei.

“O Senhor exige, como já o fez muitas vezes, que Seu povo realize um trabalho que eles não podem executar sob certas circunstâncias que os impeçam de fazê-lo”, declarou Wilford. “É com base nisso — se eu conseguir me fazer entender — que vejo a postura que assumimos hoje.”36


No dia seguinte à audiência, o Deseret News e outros jornais locais publicaram uma transcrição do depoimento de Wilford no tribunal.37 Algumas pessoas, sem conseguir perceber o esforço contido do profeta para esclarecer o significado do Manifesto, erroneamente interpretaram suas palavras como se quisessem dizer que ele esperava que os maridos abandonassem suas esposas plurais.38

“Esse anúncio feito por ele, como presidente da Igreja, causou uma inquietação entre o povo”, escreveu um homem de St. George, “e alguns acham que ele recuou em relação à revelação sobre o casamento plural e seus convênios e suas obrigações”. Uns poucos homens da cidade até usaram o depoimento como desculpa para abandonar suas esposas plurais.39

Em reuniões privadas, Wilford admitiu a natureza vaga de suas repostas, mas insistiu que não poderia ter respondido às perguntas do advogado de qualquer outra maneira. Também reiterou aos Doze que todo homem que desertasse ou negligenciasse suas esposas ou seus filhos por causa do Manifesto não era digno de ser membro da Igreja.40

Wilford não condenou homens como Joseph F. Smith e George Q. Cannon, que continuaram a ter filhos com suas esposas plurais. Mas também acreditava que os homens poderiam obedecer à lei e guardar seus convênios vivendo separados de suas famílias plurais, mas lhes provendo o sustento de modo a garantir seu bem-estar. Dentro de sua própria família, Wilford morava publicamente com sua esposa Emma, mas continuava a sustentar suas outras esposas, Sarah e Delight, e seus filhos, e a cuidar deles.41

Quando Wilford ficou sabendo que algumas pessoas se perguntavam se ele estaria desviando a Igreja do caminho certo, ele decidiu falar mais sobre o assunto. Em uma conferência de estaca realizada em Logan, ele reconheceu que havia muitos santos que estavam tendo dificuldade para aceitar a mudança. Fez uma pergunta: “Seria mais sábio continuar a realizar casamentos plurais a despeito das consequências? Ou viver de acordo com as leis do país para que os santos pudessem desfrutar das bênçãos do templo e se manter fora da prisão?

Se não tivéssemos interrompido essa prática”, disse ele, “as ordenanças seriam interrompidas em toda a terra de Sião. Reinaria confusão em Israel e muitos homens seriam encarcerados. O problema afetaria toda a Igreja, e seríamos obrigados a abandonar a prática”.

“Desejo, porém, dizer-vos isto”, acrescentou Wilford. “Eu teria deixado que os templos nos escapassem das mãos; teria ido eu próprio para a prisão e permitido que isso acontecesse a muitos de vós, não tivesse o Deus do céu me ordenado fazer o que fiz; e quando chegou a hora em que isso me foi ordenado, tudo ficou claro para mim. Dirigi-me ao Senhor e escrevi o que Ele ordenou que eu escrevesse.”42

Capítulo 42

Inspiração na fonte divina

estátua de anjo tocando trombeta

No início de janeiro de 1892, Zina Young e Emmeline Wells se encontraram em Salt Lake City com outras irmãs da junta geral da Sociedade de Socorro para planejar a comemoração de um “jubileu” em homenagem ao aniversário de 50 anos da Sociedade de Socorro. A junta queria que as mulheres santos dos últimos dias do mundo inteiro se unissem na celebração, por isso elas enviaram uma carta a todas as Sociedades de Socorro da Igreja, incentivando-as a realizarem seu próprio jubileu.1

Após enviarem “sinceras saudações” a todas as irmãs, a carta pedia que a presidência de cada Sociedade de Socorro convidasse suas integrantes e seus líderes do sacerdócio para o jubileu local e designasse um comitê de organização para planejar o evento. Cada celebração deveria começar às 10 horas da manhã do dia 17 de março, o dia em que a Sociedade de Socorro foi organizada pela primeira vez em Nauvoo, e se unir duas horas depois em uma “oração universal de louvor e gratidão a Deus”.2

Zina dependia muito de Emmeline para ajudar a organizar o jubileu em Salt Lake City de modo a agradar a todos. No início de março, Emmeline estava muito atarefada nos planejamentos. “Estou tentando fazer tudo o que me é possível nos preparativos para o jubileu”, escreveu ela em seu diário. “Estou mais atarefada do que nunca.”3

A junta da Sociedade de Socorro planejava realizar o jubileu de Salt Lake City no tabernáculo. Para decoração, elas queriam pendurar grandes retratos de Joseph Smith, Emma Smith, Eliza R. Snow e Zina Young atrás do púlpito.4

Como Emma Smith, a primeira presidente da Sociedade de Socorro, havia permanecido em Illinois e se filiado à Igreja Reorganizada de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, algumas pessoas acreditavam que não era apropriado pendurar um retrato dela no tabernáculo. Quando o debate se intensificou, Zina perguntou ao presidente Wilford Woodruff qual era a opinião dele em relação ao retrato. “Qualquer pessoa que se opuser a isso”, disse ele, “sem dúvida deve ter a mente bem estreita”.5

No dia do jubileu, todos os quatro retratos foram pendurados nos tubos do órgão do tabernáculo. Ao lado deles, havia um arranjo floral em forma de chave, simbolizando a chave que Joseph Smith havia entregue às mulheres em 1842.6 Zina e Emmeline se sentaram ao púlpito, com Bathsheba Smith, Sarah Kimball, Mary Isabella Horne e outras mulheres que levaram adiante a missão da Sociedade de Socorro ao longo dos últimos 50 anos. Milhares de irmãs da Sociedade de Socorro lotavam o tabernáculo. Muitos homens também estavam presentes, inclusive Joseph F. Smith e dois membros dos Doze.7

Zina deu início ao jubileu, ciente de que as mulheres de toda a Igreja estavam comemorando a ocasião. “Quisera que minhas palavras fossem ouvidas por todas as pessoas”, disse ela, “não apenas por vocês, meus irmãos e minhas irmãs que estão neste tabernáculo e em todo o Utah, mas que fossem ouvidas e entendidas por todas as pessoas deste continente, e não apenas deste continente, mas dos continentes da Europa, Ásia, África e das ilhas do mar.

Como irmãs nesta organização, fomos designadas a confortar e consolar os enfermos e aflitos, os pobres e necessitados”, acrescentou ela. “Se continuarmos a fazer essas coisas nesse espírito, o Senhor, na ocasião em que Ele vier para recolher suas joias, há de nos aprovar.

O que significa este jubileu das mulheres?”, perguntou Emmeline à congregação no final da reunião. “Não somente significa que há 50 anos esta organização foi fundada por um profeta de Deus, mas também que essa mulher está se tornando emancipada do erro, da superstição e das trevas, que a luz veio ao mundo, e o evangelho a libertou, a chave do conhecimento foi girada, e ela bebeu inspiração na fonte divina.”8


Por volta dessa época, Charles Eliot, reitor da Universidade Harvard, visitou Salt Lake City em uma viagem pelo oeste dos Estados Unidos. Charles ficara impressionado com o pequeno grupo de santos dos últimos dias que fora para Harvard no ano anterior e tinha aceitado um convite para falar no tabernáculo.

Sete mil pessoas compareceram quando ele fez seu breve discurso. Charles defendeu a liberdade religiosa e elogiou o trabalho árduo e a industriosidade dos santos, comparando-os de modo favorável com os colonizadores ingleses que fundaram Harvard.9 Mais tarde, depois que o Salt Lake Tribune e outros jornais criticaram sua visão favorável dos santos, Charles continuou a defendê-los.

“Acho que eles devem ser agora tratados, em relação a seus direitos de propriedade e sua liberdade de pensamento e adoração, exatamente como os católicos romanos, os judeus, os metodistas ou qualquer outra denominação religiosa”, declarou ele.10

Na congregação estavam Anna Widtsoe, sua irmã Petroline e o filho de 14 anos de Anna, Osborne. Quase um ano havia se passado desde que John, o filho mais velho de Anna, tinha ido para Harvard, e Anna ficou impressionada com o distinto orador que tinha uma visão tão positiva dos estudantes santos dos últimos dias que lá foram estudar.11

A família Widtsoe estava então morando com Petroline, na Ala Salt Lake City XIII, que tinha um número suficiente de santos escandinavos de modo a tornar as reuniões de testemunho um acontecimento multilíngue. Osborne trabalhava na loja da Zion’s Cooperative Mercantile Institution, na rua principal da cidade, ao passo que Anna e Petroline eram costureiras. Osborne e sua mãe também frequentavam as palestras semanais na academia local da estaca.12

No primeiro fim de semana de abril, nevou em Salt Lake City como se estivessem no meio do inverno. Mas, na manhã da quarta-feira, 6 de abril, o céu estava límpido e claro quando Anna e Osborne se reuniram com mais de 40 mil pessoas, na Praça do Templo e nos arredores, para ver a colocação da pedra da cumeeira do Templo de Salt Lake, no alto da torre central leste. A pedra em forma de domo tinha sido desenhada para suportar a escultura de quase 4 metros de altura de um anjo, que nela seria instalada no dia seguinte. Depois que a pedra de cumeeira e o anjo estivessem instalados, o exterior do templo seria concluído, restando apenas o interior para ser terminado antes da dedicação.13

As ruas ao redor do templo estavam congestionadas com charretes. Alguns espectadores ficaram em cima de carroções, subiram em postes telegráficos ou escalaram o telhado das casas para ver melhor.14 Em meio à multidão entusiasmada, a família Widtsoe podia ver o presidente Wilford Woodruff e outros líderes da Igreja sobre uma plataforma, junto ao templo.

Depois que uma banda tocou e o Coro do Tabernáculo cantou, Joseph F. Smith proferiu a oração de abertura. O arquiteto da Igreja Joseph Don Carlos Young, filho de Brigham Young e Emily Partridge, gritou do andaime colocado no alto do templo: “A pedra de cumeeira está agora pronta para ser instalada!”15

O presidente Woodruff foi até a beira da plataforma, olhou para os santos e ergueu os braços bem alto. “Ó vós, todas as nações da Terra!”, disse ele. “Colocaremos agora a pedra de cumeeira do templo de nosso Deus!” Ele apertou um botão, e uma corrente elétrica soltou uma trava que posicionou a pedra de cumeeira em seu devido lugar.16

Depois disso, os santos deram o brado de hosana e cantaram o hino “Tal como um facho”. O apóstolo Francis Lyman se ergueu então diante da multidão. “Proponho”, disse ele, “que esta assembleia se comprometa, coletiva e individualmente, a fornecer, de acordo com as necessidades, todo o dinheiro que for necessário para concluir este templo o mais breve possível a fim de que a dedicação possa ocorrer em 6 de abril de 1893”.

A data proposta seria o aniversário de 40 anos do dia em que Brigham Young instalou as pedras de esquina do templo. George Q. Cannon pediu um voto de apoio para a proposta, e os santos ergueram a mão direita e gritaram: “Sim!”17

Francis se comprometeu a doar um grande valor para terminar a construção do templo. Anna se comprometeu a doar cinco dólares por ela e dez dólares por Osborne. Sabendo que John desejaria se comprometer a doar também, ela contribuiu com dez dólares em nome dele.18


Naquela primavera, Joseph F. Smith foi visitar James Brown, de 63 anos, na casa dele. Quando era bem mais jovem, James tinha marchado com o Batalhão Mórmon e servido missão no Taiti e nas ilhas adjacentes com Addison e Louisa Pratt, Benjamin Grouard e outros. Enquanto trabalhava no atol Anaa em 1851, porém, James tinha sido preso por acusações falsas de perturbação da ordem pública e levado para o Taiti, onde foi colocado na cadeia e mais tarde banido das ilhas.19 O governo obrigara outros missionários a partirem também, e a missão tinha sido fechada desde aquele tempo.

Naquela ocasião, 40 anos depois, os líderes da Igreja tinham começado a expandir o trabalho missionário no sul do Pacífico. Em julho de 1891, a missão samoana enviara dois jovens élderes, Brigham Smoot e Alva Butler, para começarem a pregar em Tonga. Seis meses depois, dois outros missionários da missão samoana, Joseph Damron e William Seegmiller, reiniciaram o trabalho missionário na Polinésia Francesa, ministrando aos santos ilhéus que há muito estavam isolados no Taiti e nos arredores.20

Mas Joseph Damron não estava bem de saúde, e ele e William haviam descoberto que quase todos os santos dos últimos dias da região tinham se filiado à Igreja Reorganizada de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, que enviara missionários para o sul do Pacífico vários anos antes. Os dois acreditavam que a missão precisava de alguém com mais experiência para liderar o trabalho na região.21

Na casa de James, em Salt Lake City, Joseph F. mostrou uma carta que recebera dos missionários do Taiti. “Como você se sentiria em relação a servir outra missão nas Ilhas Sociedade?”, perguntou ele a James.

“Não quero que nenhum homem me chame para missão alguma”, disse-lhe James.22 Ele já era um homem idoso com três esposas e muitos filhos e netos. Estava com a saúde debilitada e tinha perdido a perna em um acidente com arma de fogo alguns anos antes. Uma viagem ao sul do Pacífico seria uma tarefa muito árdua para alguém em suas condições.

Joseph F. entregou a carta a James e pediu que ele a lesse. Saiu dali, então, com a promessa de voltar no dia seguinte para saber o que James pensava a respeito daquilo.23

James leu a carta. Os jovens missionários estavam realmente passando por dificuldades. Como o único dos antigos missionários que ainda estava vivo, James conhecia o povo e a língua, o que lhe permitiria fazer muitas coisas boas. Se a Primeira Presidência pedisse a ele que fosse ao Pacífico, decidiu, ele iria. Ele tinha fé que Deus não lhe pediria que fizesse algo sem lhe dar a capacidade de cumprir a tarefa.24

Quando Joseph F. Smith voltou no dia seguinte, James aceitou o chamado para a missão. Poucas semanas depois, despediu-se da família e partiu da cidade com seu filho Elando, que foi chamado para servir com ele.

James, Elando e outro missionário chegaram ao Taiti no mês seguinte. Os élderes Damron e Seegmiller acompanharam os novos missionários até a casa de um homem taitiano chamado Tiniarau, que providenciou uma cama onde James e seu filho pudessem dormir. Depois da viagem exaustiva, James não saiu de seu quarto por vários dias.25

Em breve, porém, começaram a aparecer visitantes a procurá-lo. Um veio de Anaa e disse que reconhecera James pela voz. Outros o identificariam do mesmo modo, disse o homem, mesmo que não o conhecessem de vista. Alguns visitantes tinham nascido depois que James zarpara de volta para casa, mas ainda assim estavam felizes em vê-lo. Uma mulher idosa o reconheceu e começou a lhe apertar a mão de modo tão persistente que ele se perguntou se ela iria largá-la. Ele ficou sabendo que ela estava em Anaa quando as autoridades francesas o prenderam e o levaram para fora do atol em um navio de guerra.

Certa noite, James se encontrou com outro homem de Anaa, Pohemiti, que se lembrava dele. Pohemiti tinha se filiado à Igreja Reorganizada, mas ficou muito feliz ao reencontrar James e lhe proveu alimentos. Se você for a Anaa, prometeu ele aos missionários, as pessoas ainda vão ouvi-lo.26


Na Universidade Harvard, John Widtsoe recebia inúmeras cartas de sua mãe e de seu irmão, que estavam em Salt Lake City. As palavras deles estavam sempre repletas de conselhos e incentivo. “A mãe disse que você precisa tomar cuidado com a química”, escreveu Osborne certo dia. “Ela leu a respeito de um professor que perdeu os dois olhos quando algo explodiu, ou coisa parecida.”27

“Tudo vai ficar bem com você”, escreveu Anna de modo mais tranquilizador. “Simplesmente se dedique a fazer o bem para todos, com tudo o que tem e terá, de modo a servir Aquele que é o Criador de todas as coisas boas e que nunca Se cansa de tornar tudo melhor e mais belo para Seus filhos.”28

Quando o bonde puxado a cavalo deixou John em Harvard pela primeira vez, um ano antes, ele estava maravilhado com a história e a tradição daquela escola. À noite, ele sonhava em adquirir todo o conhecimento do mundo sem ter que se preocupar com o tempo que levaria para dominar cada assunto.

Ao começar a estudar para os exames de admissão, que ele faria no outono, ficou assombrado com tudo o que teria de aprender. Retirou muitos livros da biblioteca do campus e se dedicou inteiramente ao estudo deles. Mas foi ficando desanimado ao se dar conta de como seria difícil dominar perfeitamente um único assunto sequer. Como ele, um pobre imigrante da Noruega, conseguiria competir com seus colegas de classe? Muitos deles tinham recebido uma educação de primeira classe em algumas das melhores escolas preparatórias dos Estados Unidos. Será que os estudos que fizera em Utah o prepararam para o que teria de enfrentar?

A saudade de casa apenas aumentou sua ansiedade naqueles primeiros meses, e John pensou em voltar para casa. Mas decidiu ficar e conseguiu passar nos exames de admissão, inclusive no de inglês, embora essa não fosse sua língua natal.

Então, tendo-se passado já um ano de estudos, John estava mais confiante. Morava numa casa alugada com alguns dos outros rapazes santos dos últimos dias que estudavam em Harvard e nas escolas vizinhas. Após muita oração, ele escolheu química como seu principal foco de estudo. Uns poucos santos dos últimos dias eram candidatos a cientistas, ao passo que outros estudavam engenharia, direito, medicina, música, arquitetura e administração. Como muitos estudantes universitários, aqueles rapazes com frequência gostavam de entrar em acalorados debates uns com os outros sobre assuntos acadêmicos.29

Em julho de 1892, James Talmage, que também era químico e um estudioso respeitado na Igreja, visitou Boston para pesquisar e coletar instrumentos laboratoriais para uma universidade da Igreja em Salt Lake City.30 A amiga e antiga colega de escola de James, Susa Gates, também foi para Harvard fazer um curso de verão em inglês.

John viu que Susa era uma boa oradora e escritora talentosa. Ela, por sua vez, ficou impressionada com a natureza refinada e artística dele, e logo se tornaram amigos. “Há um rapaz aqui, atraente e calado, estudioso e reservado”, escreveu Susa em uma carta para sua filha Leah, que tinha mais ou menos a mesma idade de John. “Ele tem um caráter excelente e é realmente um dos melhores alunos. Acho que você gostaria dele.”

“Duvido que ele saiba dançar”, lamentou Susa, “mas tem o cérebro tão brilhante quanto o de James Talmage, e para mim ele tem um belo rosto para acompanhar sua inteligência”.31


Depois de se ocultar por mais de dois anos, Lorena Larsen e seus filhos novamente tinham uma casa própria em Monroe, Utah, não muito longe de onde seu marido, Bent, morava com sua primeira esposa, Julia.32 Porém, mesmo sendo Monroe sua cidade natal, Lorena nem sempre se sentia bem-vinda ali.

Em toda a Igreja, muitas famílias plurais continuavam a viver como sempre fizeram, confiantes de que estavam fazendo a vontade de Deus. Alguns membros da Igreja em Monroe, porém, acreditavam que era pecado um homem continuar a ter filhos com suas esposas plurais. Quando ficou evidente que Lorena estava esperando outro filho, alguns de seus vizinhos e familiares começaram a desprezá-la abertamente.

A mãe de Bent temia que Lorena fizesse com que seu filho fosse preso. A irmã de Lorena disse que uma esposa plural grávida não era melhor do que alguém que tivesse cometido adultério. E um dia a própria mãe de Lorena, que era também a presidente da Sociedade de Socorro da ala, voltou para casa e a repreendeu por continuar a ter filhos com Bent.33

Naquela noite, depois que Bent cortou um pouco de lenha para ela e os filhos, Lorena disse a ele o que a mãe lhe dissera. Mas, em vez de se compadecer de Lorena, Bent lhe disse que concordava com sua sogra. Ele tinha conversado a respeito do assunto com amigos, e eles concluíram que um homem com esposas plurais não tinha escolha a não ser ficar com sua primeira esposa e deixar as outras partirem. Ele e Lorena permaneceriam selados, mas teriam que esperar até a vida futura para voltarem a ficar juntos.

Lorena mal conseguiu falar. Desde o Manifesto, Bent lhe dissera inúmeras vezes que jamais a abandonaria. Agora, ele a deixaria sozinha com os filhos, faltando poucas semanas para ela dar à luz.

O casal conversou durante a noite inteira. Enquanto Lorena chorava, Bent lhe disse que aquelas lágrimas não mudariam a realidade da situação deles.34

“Se eu não acreditasse que você acha que está realizando o serviço do Senhor”, disse Lorena a Bent, “jamais o perdoaria”.

Depois que Bent foi embora, Lorena orou pedindo forças e sabedoria. Assim que o sol começou a raiar sobre as montanhas, ela encontrou Bent trabalhando em um estábulo atrás da casa de Julia e lhe disse que ele tinha que ficar com ela pelo menos até que o bebê nascesse. Depois disso, ela disse, ele poderia ir para onde quisesse. Deus era então seu único amigo, e ela se voltaria para Ele a fim de obter ajuda.35

Lorena deu à luz uma menina duas semanas mais tarde. Quando o bebê estava com cinco dias de idade, Lorena sonhou que estava morrendo e acordou apavorada. Será que ela poderia confiar que Bent cuidaria de seus filhos caso ela morresse? Ele tinha sustentado a ela e aos filhos durante toda a gravidez, como prometera. Mas raramente interagia com as crianças e, quando o fazia, suas visitas rápidas e ansiosas geralmente os deixavam sentindo que um estranho os visitara à noite.

Quando Lorena contou sua premonição a Bent, ele não deu importância. “Foi só um sonho”, disse ele. Ainda se sentindo ansiosa, ela orou muito no mês seguinte, prometendo que suportaria as provações e as dificuldades com paciência e faria tudo o que pudesse para levar a obra Dele adiante, inclusive o trabalho no templo.36

Cinco semanas depois do sonho de Lorena, um delegado prendeu Bent e ela por coabitação ilegal. O tribunal os liberou sob fiança com a expectativa de que Lorena testificaria no julgamento contra Bent mais tarde naquele ano.

A prisão e o desprezo que Lorena sentiu dos familiares e amigos foram mais do que ela podia suportar. Sem saber o que fazer, ela desabafou com o apóstolo Anthon Lund, que era o presidente do Templo de Manti. Anthon chorou ao ouvir a história dela. “Ande em retidão em meio às zombarias e ao escárnio de todos”, aconselhou ele. “Você está fazendo tudo certo.”37

Seguindo o conselho do apóstolo, Lorena seguiu em frente com sua vida. Seu sonho alarmante e as orações que se seguiram a ajudaram a se tornar mais paciente, mais capaz de suportar as provações e mais grata ao Senhor por sua vida. Bent também reconheceu que sua negligência causara intenso sofrimento a Lorena, e ele e Lorena decidiram por fim que continuariam a viver juntos embora não fosse fácil.

Em setembro daquele ano, Bent se declarou culpado de coabitação ilegal, e o juiz o sentenciou a ficar um mês na cadeia. A punição não foi tão severa quanto tinha sido alguns anos antes, quando Bent ficara seis meses na cadeia por acusação semelhante. De fato, desde o Manifesto, as sentenças por coabitação ilegal eram geralmente mais curtas do que antes. Mas aquele era um lembrete de que, se Lorena e Bent continuassem seu relacionamento, as consequências seriam difíceis de suportar.38

Ainda assim, aquele era um risco que o casal estava agora disposto a assumir.

Capítulo 43

Uma necessidade maior de união

Dois homens apertando a mão

Em setembro de 1892, Francis Lyman e Anthon Lund chegaram a St. George, Utah. Por várias semanas, os dois apóstolos tinham visitado as alas e aconselhado os santos em toda a região central e do sul de Utah. Quando o Templo de Salt Lake estava quase concluído, a Primeira Presidência e os Doze começaram a incentivar os santos a serem mais unidos. No entanto, em vez de encontrar harmonia e boa vontade em suas viagens, Francis e Anthon encontraram com frequência alas e ramos repletos de discórdia. St. George não era diferente.1

Grande parte da contenda surgiu da política. Por décadas, os santos de Utah tinham votado em candidatos locais do People’s Party, um partido político formado principalmente por membros da Igreja. Mas, em 1891, os líderes da Igreja dissolveram o People’s Party e incentivaram os santos a se unirem aos democratas ou aos republicanos, os dois partidos que dominavam a política dos Estados Unidos. Os líderes esperavam que uma diversidade política maior entre os santos pudesse aumentar sua influência nas eleições locais e em Washington, D.C. Também acreditavam que a diversidade ajudaria a Igreja a alcançar metas como a condição de estado para Utah e a anistia geral dos santos que contraíram casamentos plurais antes do Manifesto.2

Mas agora, pela primeira vez, os santos estavam envolvidos em contendas inflamadas uns contra os outros em relação a diferentes opiniões políticas.3 O conflito afligia Wilford Woodruff, e ele exortara os santos, na Conferência Geral de Abril de 1892, a que encerrassem suas brigas.

“Todos os homens — profetas, apóstolos, santos e pecadores — têm tanto direito a suas convicções políticas quanto em relação a suas opiniões religiosas”, declarou Wilford. “Não façam alegações depreciativas ou maliciosas nem declarações falsas uns contra os outros devido a qualquer diferença de opinião em assuntos políticos.

Esse espírito vai nos levar à ruína”, advertiu ele.4

Em St. George, como em outros lugares, a maioria dos santos acreditava que deveria se filiar ao partido democrata, uma vez que o partido republicano fora aquele que, em geral, liderara os esforços antipoligamia contra a Igreja. Em muitas comunidades, a atitude predominante era a de que um bom santo dos últimos dias jamais poderia ser republicano.5

Wilford Woodruff e outros líderes da Igreja questionavam essa postura, especialmente porque os Estados Unidos estavam sendo governados na época por uma administração republicana.6 Quando Anthon e Francis se inteiraram melhor da situação em St. George, quiseram ajudar os santos a entender que eles poderiam diferir politicamente sem criar inimizades ou divisão dentro da Igreja.

Durante uma reunião do sacerdócio realizada à tarde, Francis lembrou aos homens que a Igreja precisava de membros nos dois partidos políticos. “Não queremos que ninguém que seja democrata mude”, tranquilizou-os ele. Mas disse que os santos que não tivessem fortes vínculos com o partido democrata deveriam cogitar a possibilidade de se filiarem aos republicanos. “Há bem menos diferença entre os dois partidos do que a princípio se imaginava”, observou ele.7

Francis, então, expressou seu amor a todos os santos, fossem quais fossem seus pontos de vista políticos. “Não devemos permitir que haja qualquer amargura em nosso coração uns contra os outros”, salientou ele.8

Dois dias depois, Francis e Anthon foram ao Templo de St. George. Auxiliaram nos batismos, nas investiduras e em outras ordenanças. Um espírito edificante prevalecia no edifício.9

Era o tipo de espírito que os santos precisavam ter ao se prepararem para dedicar outro templo ao Senhor.


Em Salt Lake City, carpinteiros, eletricistas e outros hábeis artesãos estavam trabalhando rapidamente para garantir que o interior do Templo de Salt Lake estivesse pronto para a dedicação em abril de 1893. Em 8 de setembro, a Primeira Presidência visitou o edifício com o arquiteto Joseph Don Carlos Young e outros. Ao caminharem de sala em sala, inspecionando o trabalho em andamento, os membros da presidência ficaram satisfeitos com o que viram.

“Tudo está sendo feito em estilo muito refinado”, comentou George Q. Cannon em seu diário.

George ficou particularmente impressionado com os recursos modernos do templo. “É surpreendente ver as mudanças que ocorreram graças ao que foi inventado desde que a primeira planta do templo foi projetada”, escreveu ele. Truman Angell, o arquiteto original do templo, planejara aquecer e iluminar o templo com fogões e velas. Agora, as novas tecnologias permitiam que os santos instalassem luzes elétricas e um sistema de aquecimento movido a vapor por todo o edifício. Os trabalhadores também estavam instalando dois elevadores para ajudar os usuários a se moverem facilmente de um andar para outro.10

Contudo, os fundos para a construção estavam esgotados, e algumas pessoas duvidavam que a Igreja tivesse recursos para concluir o templo nos seis meses antes da dedicação. A partir de 1890, a Primeira Presidência investira muito em uma fábrica de beterrabas ao sul de Salt Lake City, na esperança de criar um meio de levantar fundos para os fazendeiros locais e gerar novos empregos para as pessoas que, de outra maneira, poderiam se mudar de Utah em busca de melhores oportunidades de trabalho caso o empreendimento não desse certo. Aquele investimento, com a perda das propriedades da Igreja confiscadas pelo governo federal, deixou os líderes da Igreja carentes de recursos valiosos que eles poderiam ter usado para terminar o templo.11

As Sociedades de Socorro, as Associações de Melhoramentos Mútuos, as Primárias e as Escolas Dominicais procuraram aliviar o ônus financeiro coletando doações para o fundo do templo. Contudo, mais providências precisavam ser tomadas.

Em 10 de outubro, a Primeira Presidência e o Quórum dos Doze se reuniram com outros líderes da Igreja, incluindo presidentes de estaca e bispos, no grande salão de assembleia parcialmente terminado no andar superior do templo. O propósito da reunião era recrutar líderes locais para ajudar a arrecadar fundos para o templo.12

Pouco depois de George Q. Cannon ter iniciado a reunião, John Winder, um conselheiro no Bispado Presidente, informou à assembleia que seria preciso, no mínimo, mais 175 mil dólares para terminar o templo. O mobiliário interno custaria ainda mais.

Wilford Woodruff falou de seu sincero desejo de fazer com que o templo fosse concluído no prazo previsto. George, então, exortou os homens ali presentes a usar sua influência para levantar os fundos necessários. Era esperado que cada estaca coletasse uma determinada quantia com base no tamanho e nos recursos de cada família.

Os homens ali presentes sentiram fortemente o Espírito e concordaram em ajudar. Um homem, John R. Murdock, recomendou que todos os presentes falassem o quanto estavam pessoalmente dispostos a doar ao templo. Um por um, os líderes da Igreja se comprometeram generosamente, prometendo fazer uma contribuição total de mais de 50 mil dólares.

Antes do término da reunião, George disse: “Nunca houve uma época desde que a Igreja foi organizada, em minha opinião, em que houvesse uma necessidade maior de união na Igreja do que agora”. Ele testificou que a Primeira Presidência estava unida e que constantemente procurava conhecer a mente e a vontade do Senhor sobre como dirigir a Igreja.

“O Senhor tem nos abençoado e reconhecido nossos labores”, declarou ele. “Ele tem nos deixado claro, dia após dia, o curso que devemos tomar.”13


Entre os carpinteiros que trabalhavam no templo estava Joseph Dean, antigo presidente da missão samoana. Joseph voltara do Pacífico dois anos antes. Por algum tempo, ele tivera dificuldade para encontrar um emprego fixo para sustentar suas duas esposas, Sally e Florence, e sete filhos. Quando foi contratado para trabalhar no templo em fevereiro de 1892, aquele emprego foi uma grande bênção. Mas seu salário e a renda de Sally como costureira mal davam para manter a grande família alimentada, abrigada e vestida.14

No outono de 1892, a Primeira Presidência aprovou um aumento de 10 por cento no salário dos trabalhadores do templo a fim de assegurar que recebessem o mesmo que o mercado pagava a outros trabalhadores. Para alguns homens, aquele era o salário mais alto que já tinham recebido.15 Joseph e suas esposas ficaram gratos pelo aumento, mas continuavam a ter dificuldades para suprir suas despesas.

Porém, pagavam o dízimo fielmente e até doaram 25 dólares para o fundo do templo.16

Em 1º de dezembro, Joseph retirou seu pagamento mensal de 98,17 dólares. Depois do trabalho, foi até uma loja próxima para pagar uma dívida de 5 dólares. O dono da loja era o bispo de Joseph. Em vez de simplesmente aceitar o pagamento, o bispo lhe disse que o presidente da estaca pedira recentemente a cada família da estaca que doasse uma quantia específica para a Igreja para a construção do templo. Joseph e sua família tinham sido convidados a contribuir com 100 dólares.

Joseph ficou perplexo. Sally tinha dado à luz recentemente, e Joseph ainda precisava pagar o médico. Ele também devia dinheiro para outras cinco lojas, além do aluguel da casa de Florence. Somados, o pagamento de todas as dívidas excedia seu salário mensal, que era menor do que a doação solicitada pela estaca. Como ele poderia contribuir com tanto — especialmente depois que sua família tinha acabado de doar 25 dólares com grande sacrifício?

Por mais difícil que fosse cumprir sua obrigação, Joseph concordou em encontrar uma maneira de conseguir o dinheiro. “Farei o melhor que puder”, escreveu ele naquela noite em seu diário, “e confio no Senhor para me ajudar”.17


Naquele mês de janeiro, Maihea, um líder idoso dos santos das ilhas Tuamotu, convocou uma conferência em Faaite, um atol que ficava cerca de 300 quilômetros a nordeste do Taiti. Choveu muito nos dias que antecederam a conferência, mas os santos determinados não permitiram que as condições climáticas os impedissem de comparecer.18

Certa manhã, pouco antes da conferência, uma brisa rápida trouxe quatro barcos a Faaite, procedentes do atol Takaroa, que ficava dois dias ao norte dali. Entre os santos recém-chegados, Maihea ficou sabendo haver quatro homens brancos que afirmavam ser missionários da Igreja, com autoridade para ensinar o evangelho restaurado.19

Maihea ficou desconfiado. Sete anos antes, um missionário da Igreja Reorganizada de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias tinha ido à sua aldeia no vizinho atol Anaa. O missionário convidou os santos do atol Anaa a se unirem a ele em adoração, alegando que Brigham Young e os santos de Utah tinham se afastado da verdadeira Igreja de Cristo. Muitos santos tinham aceitado seu convite. Mas Maihea e outros haviam recusado, relembrando que fora Brigham Young quem enviara os missionários que lhes tinham ensinado o evangelho.20

Sem saber se aqueles novos missionários eram verdadeiros representantes da Igreja, Maihea e os santos de Tuamotu os cumprimentaram friamente, dando-lhes somente um coco maduro para comer. Em pouco tempo, porém, Maihea ficou sabendo que o missionário mais velho era um homem de uma perna só chamado James Brown, ou Iakabo, que era o nome de um dos missionários que lhe ensinara o evangelho. Até os santos que eram muito jovens para terem conhecido James Brown pessoalmente tinham ouvido a geração mais velha mencionar seu nome.

Como Maihea era cego e não conseguia reconhecer o missionário de vista, confrontou-o com perguntas.21 “Se você é o mesmo que já esteve entre nós, então perdeu uma perna”, disse Maihea, “porque o Iakabo que eu conheci tinha duas pernas”.

Maihea, então, perguntou a James se ele ensinava a mesma doutrina que o homem que o havia batizado muitos anos antes.

James respondeu que sim.

As perguntas de Maihea continuaram: Você veio de Salt Lake City? Quem é o presidente da Igreja agora que Brigham Young está morto? Que mão você levanta ao batizar? É verdade que você acredita no casamento plural?

James respondeu a cada pergunta, mas Maihea ficou insatisfeito. “Qual era o nome da vila onde os franceses prenderam você?”, perguntou ele. Mais uma vez, James respondeu corretamente à pergunta.

Por fim, o medo de Maihea desapareceu e, com alegria, apertou a mão de James. “Se você não tivesse vindo e me convencido de que era o mesmo homem que esteve aqui antes, teria sido inútil enviar aqueles jovens para cá”, disse ele, referindo-se aos missionários que estavam com James, “porque não os teríamos recebido”.

“Mas agora”, disse Maihea, “damos boas-vindas a você. Damos boas-vindas a esses rapazes também”.22


Naquele mesmo mês, Anthon Lund, Francis Lyman e B. H. Roberts visitaram Manassa, Colorado, a pedido da Primeira Presidência. Quatro meses haviam se passado desde que Anthon e Francis pediram aos santos de St. George que parassem de brigar por questões políticas. Desde aquela época, conflitos semelhantes tinham continuado a irromper em Manassa e em outras comunidades de santos. Agora, faltando pouco mais de dois meses para a dedicação do Templo de Salt Lake, os líderes da Igreja temiam que aquelas comunidades não estivessem preparadas para a dedicação caso não pudessem se unir em solidariedade e amor.23

Em Manassa, vários santos se reuniram com os três líderes da Igreja para expressar suas reclamações. Anthon passou cerca de dez horas por dia ouvindo acusações e contra-acusações referentes a questionamentos políticos, comerciais e pessoais. Ele contou um total de 65 conflitos individuais que os santos de Manassa queriam que os líderes da Igreja solucionassem.24

Depois de analisar cada caso, ele e seus companheiros tentaram resolver as queixas que mais causavam discórdia. Alguns santos resolveram seus desacordos em particular ou concordaram em pedir desculpas publicamente pelas coisas que tinham dito e feito. Outros, embora infelizes com as soluções recomendadas, humildemente prometeram segui-las.25

Depois de duas semanas, Anthon, Francis e B. H. acharam ter feito tudo o que podiam para ajudar os santos de Manassa. No entanto, eles sabiam que muitos conflitos menores permaneciam. “Exortamos vocês a exercer toda a sua energia para resolver quaisquer dificuldades que ainda possam existir”, instruíram eles à presidência da estaca local, “e unir as pessoas no espírito do evangelho”.26

B. H. acompanhou Anthon e Francis ao trem, mas não retornou com eles. Sua segunda esposa, Celia, e os filhos moravam em Manassa, e ele queria passar mais alguns dias com eles.27

Quando voltou para Utah, B. H. anotou no diário suas reflexões sobre os esforços que fizera para superar os conflitos e encontrar paz em sua própria vida. Por mais de um ano, tinha sido atormentado pela dificuldade pessoal em apoiar o Manifesto. Seu coração se abrandou pouco a pouco ao se lembrar da confirmação espiritual que recebera como um clarão de luz quando ficou sabendo da mudança.

“Talvez eu tenha transgredido ao rechaçar o primeiro testemunho que recebi em relação a isso, permitindo que meus próprios preconceitos, minha falta de entendimento e minha própria razão humana contrariassem a inspiração de Deus e o testemunho que me fora prestado de que o Manifesto estava correto.

Não compreendi os propósitos para os quais o Manifesto fora promulgado. Ainda não compreendo até o dia de hoje”, prosseguiu ele. “Mas tenho certeza de que está tudo bem. Que Deus tem um propósito nele, disso tenho certeza, e no devido tempo ele se manifestará.”28


Em 5 de janeiro de 1893, Joseph Dean ficou sabendo que o presidente dos Estados Unidos, Benjamin Harrison, assinara uma proclamação de anistia geral, concedendo perdão aos santos que praticavam o casamento plural, mas tinham deixado de coabitar após o Manifesto.29

O presidente notificara os líderes da Igreja, alguns meses antes, de que assinaria a proclamação. No mesmo despacho, ele pediu à Primeira Presidência que orasse por sua esposa, Caroline, que estava em seu leito de morte. Depois de anos de conflito entre os santos e o governo, a Primeira Presidência se surpreendeu com o pedido — mas se sentiu honrada em cumpri-lo.30

Para Joseph, a proclamação da anistia teve pouco impacto, já que ele não abandonara sua família plural depois do Manifesto. Mas o Deseret News e outros jornais de Utah reconheceram a importância simbólica da proclamação, publicando artigos que exortavam os santos a serem gratos ao presidente Harrison por promulgá-la de boa-fé.31

Enquanto isso, Joseph e outros trabalhadores haviam estendido em duas horas o turno de trabalho para conseguirem concluir o Templo de Salt Lake até 6 de abril. A Primeira Presidência visitava o local da construção regularmente, verificando detalhes e incentivando os trabalhadores em seus esforços.32

Joseph, por sua vez, estava determinado a fazer o melhor possível para construir o templo e cumprir sua promessa de doar 100 dólares para o término da obra. Em fevereiro, o apóstolo John W. Taylor cancelou os juros no valor de 100 dólares de um empréstimo que ele fizera a Joseph, e Joseph imediatamente viu aquilo como uma bênção. “Acho que o Senhor me reembolsou”, escreveu ele em seu diário.33

Em meados de março, Joseph doou 75 dólares para a construção do templo e esperava pagar os 25 dólares restantes em abril, pouco antes do término da construção do templo. Além disso, ele levou dois de seus filhos para ver o interior do templo. No batistério, mostrou-lhes uma grande fonte que repousava nas costas de 12 bois de ferro fundido — uma visão que assustou o filho de 5 anos, Jasper, que achou que os animais eram reais.34

Em uma sala de investidura no subsolo do templo, artistas estavam pintando belos murais representando o Jardim do Éden, com cachoeiras, prados gramados e colinas onduladas. Uma escadaria subia dessa sala levando a outra sala de investiduras, onde outros murais de desertos, penhascos escarpados, animais ferozes e nuvens negras retratavam a vida após a Queda. Antes de começar os murais, a maioria dos artistas que ali trabalhava foi designada pela Primeira Presidência e recebeu treinamento de primeira classe com professores de arte em Paris.35

Perto do final de março de 1893, o bispo John Winder reuniu os trabalhadores e os exortou a resolver quaisquer queixas ou sentimentos negativos que houvesse entre eles. O templo precisava estar fisicamente pronto para a dedicação, mas os trabalhadores também precisavam estar espiritualmente preparados.36

Para ajudar todos os santos a se reconciliarem com Deus e uns com os outros, a Primeira Presidência conclamou um jejum especial de toda a Igreja, que deveria acontecer 12 dias antes da dedicação.

“Antes de entrarem no templo para se apresentarem perante o Senhor em assembleia solene”, escreveram eles em uma carta a todos os membros da Igreja, “vamos nos desfazer de todos os sentimentos rudes e indelicados que tivermos uns contra os outros”.37

No dia do jejum, um sábado, Sally e Florence Dean se reuniram com outros santos para cantar, discursar e orar. Mas Joseph não pôde estar com elas. Havia muito trabalho a ser feito no templo, e ele e seus companheiros de trabalho se empenharam o dia inteiro, jejuando o tempo todo.38

Nos dias que se seguiram, Joseph ajudou a instalar as tábuas do assoalho enquanto as equipes de colocadores de tapetes e cortinas, pintores, douradores e eletricistas corriam para terminar as tarefas de última hora. Um comitê de homens e mulheres ornamentou, então, as salas com móveis elegantes e outras decorações. Entre os artigos à disposição do comitê estavam coberturas de seda para os altares e outros artesanatos doados por mulheres das alas de toda a cidade.

Mais trabalho ainda precisaria ser feito depois da dedicação, mas Joseph tinha certeza de que o templo estaria pronto para abrir as portas no dia designado. “As coisas estão indo muito bem até certo ponto, finalmente”, escreveu ele.39


No dia do jejum de toda a Igreja, Susa Gates recebeu uma carta de sua filha de 19 anos, Leah, procurando uma reconciliação. Nessa época, Susa morava em Provo, ao passo que Leah frequentava a faculdade em Salt Lake City. “Mal suspeitava eu”, escreveu Leah, “que minha própria mãe querida seria a pessoa cujo perdão eu devo implorar pelos sentimentos e pelas queixas passadas”.40

No início daquela semana, Susa tinha discutido com Leah sobre o pai de Leah, Alma Dunford. Anos antes, Susa se divorciara de Alma quando não conseguia mais suportar seu alcoolismo e maus-tratos. Mas Alma ficara com a custódia de Leah, e ela crescera com a família do pai, longe de Susa.

Alma se casou novamente e teve mais filhos. Embora continuasse a ter dificuldades em cumprir a Palavra de Sabedoria, Alma se tornara um marido e pai bondoso, cuidou bem de sua família e criou os filhos na Igreja. Leah o amava e tinha uma visão dele diferente do que a da mãe dela. “Você conhece meus sentimentos, e não posso deixar de compartilhá-los”, disse Leah a Susa. “Amo minha mãe mais do que posso expressar, mas também amo meu pai.”

Ainda assim, depois da discussão, Leah sentiu que precisava pedir desculpas. “Sinto-me humilde e verdadeiramente arrependida, e imploro que me perdoe e esqueça”, escreveu ela.41

Quando Susa leu a carta, lamentou que sua filha estivesse tomada de remorso. O pai de Susa, Brigham Young, aconselhara-a a sempre colocar a família em primeiro lugar, prometendo que todas as coisas grandiosas que ela realizasse depois aumentariam sua glória. Desde aquela época, Susa tivera sucesso dentro e fora do lar. Aos 37 anos de idade, ela tinha um casamento cheio de amor, seis filhos vivos e outro a caminho, e o reconhecimento como uma das escritoras mais talentosas e prolíficas da Igreja.42

Mas, com todo o seu sucesso, Susa ainda, às vezes, sentia que estava aquém de suas grandiosas expectativas do que seria uma mãe ideal. Seu relacionamento com Leah tinha sido particularmente difícil. Por muitos anos depois do divórcio, elas não puderam interagir pessoalmente. Quando Leah tinha 15 anos de idade, no entanto, Susa organizou uma reunião na Lion House, onde elas se abraçaram e choraram de alegria. Daquele momento em diante, Susa e Leah tinham desfrutado um relacionamento amoroso e carinhoso e, às vezes, sentiam-se mais como irmãs do que mãe e filha.43

No sábado, 25 de março, Susa participou da reunião especial de jejum com os outros santos, em Provo. Leah nunca estava longe de seus pensamentos. Susa se deu conta de que o adversário faria tudo o que pudesse para romper os laços de amor que haviam se desenvolvido recentemente entre ela e sua filha mais velha, e ela não permitiria que isso acontecesse.

Assim que pôde, respondeu à carta de Leah. “Minha querida menina”, escreveu ela, “saiba que a cada dia que passa amo você cada vez mais”. Por sua vez, pediu perdão a Leah e prometeu melhorar. “Sei que estou longe de ser perfeita”, admitiu ela. “Talvez o maior aguilhão de suas palavras tenha sido, para mim, o fato de que, em certa medida, eu o merecesse.”

“Por meio da oração e de um pequeno esforço de nossa parte, podemos aprender a deixar essas coisas de lado”, escreveu ela. “Dê-me um beijo e esqueçamos isso para sempre.”44

Capítulo 44

Paz abençoada

Templo de Salt Lake

Os dias que antecederam a dedicação do Templo de Salt Lake foram cheios de energia e agitação. O trabalho no templo ainda estava em andamento na véspera do dia programado para a inauguração. As ruas da cidade, enquanto isso, estavam repletas de visitantes que chegavam a toda hora de trem, de charrete e a cavalo.1 Os líderes da Igreja tinham decidido realizar duas sessões de dedicação por dia, até que todos os membros da Igreja que quisessem participar pudessem fazê-lo. Dezenas de milhares de santos estavam planejando ir a Salt Lake City naquela primavera para ver a casa do Senhor com os próprios olhos.2

Na véspera da primeira sessão dedicatória, os líderes da Igreja realizaram uma visitação pelo templo com repórteres locais e nacionais, bem como com dignitários que não eram membros da Igreja. Muitos dentre os convidados elogiaram a obra artesanal do templo, desde suas elegantes escadas em espiral até seu piso delicadamente ladrilhado. Até os críticos mais ferrenhos da Igreja ficaram impressionados.

“O interior foi uma revelação de beleza”, escreveu um repórter do Salt Lake Tribune, “tanto que os visitantes se detiveram e permaneceram involuntariamente imóveis, totalmente absortos em admirar o ambiente”.3

Na manhã seguinte, 6 de abril de 1893, o céu estava límpido, mas fazia muito frio. Mais de 2 mil santos com recomendação para a primeira sessão dedicatória começaram a fazer fila do lado de fora dos portões do templo, horas antes do horário de início da reunião. Depois que os portões se abriram e os santos começaram a entrar, o tempo ficou ainda mais frio e uma forte brisa começou a soprar. Logo, caiu uma chuva fria, e a brisa se tornou um vento uivante, açoitando os santos que se aglomeravam pacientemente em fila.4

Assim como o Templo de Kirtland não pudera acomodar todos os que desejavam assistir à sua dedicação, o espaçoso salão de assembleia do Templo de Salt Lake era pequeno demais para acomodar todos os que estavam na fila. Mesmo depois que os portões se fecharam, multidões de santos permaneceram perto do templo. Por volta das 10 horas, quando a sessão estava marcada para começar, o vento voltou a soprar, levantando cascalhos e detritos. Para alguns, o próprio diabo parecia estar enfurecido contra os santos e o templo que construíram.5

No entanto, aqueles que estavam do lado de fora do edifício viram um sinal que os fez lembrar de uma manifestação anterior do zelo vigilante de Deus. Erguendo os olhos para o alto, vislumbraram um grande bando de gaivotas fazendo piruetas no céu, circulando as torres do templo em meio à tempestade.6


Dentro do templo, Susa Gates se sentou à mesa do registrador na extremidade leste do salão de assembleia. Como uma das repórteres oficiais das reuniões dedicatórias, Susa faria as atas estenografadas da reunião. Embora estivesse apenas a algumas semanas de dar à luz, planejava estar presente em cada uma das dezenas de sessões programadas e fazer um relatório delas.7

Centenas de lâmpadas elétricas, dispostas em cinco lustres, iluminavam esplendidamente a sala. O salão tinha 2.200 assentos e ocupava todo o andar. Entre as pessoas presentes, estavam o marido de Susa, Jacob, e sua mãe, Lucy Young. Poltronas forradas de veludo vermelho ocupavam todo o setor principal de assentos, e havia fileiras de púlpitos elevados para os líderes da Igreja nas extremidades leste e oeste da sala. Todos os assentos disponíveis estavam ocupados e algumas pessoas estavam de pé.8

Pouco depois, os 300 membros do Coro do Tabernáculo ficaram de pé, os homens trajando um terno escuro e as mulheres de branco. A voz deles ressoou ao cantarem “Que todo o Israel se una e cante”, um hino composto por Joseph Daynes, organista do coro.9

O presidente Wilford Woodruff, então, levantou-se para falar aos santos. “Aguardei ansiosamente por este dia nos últimos 50 anos de minha vida”, disse ele. Quando jovem, ele tivera uma visão de si mesmo dedicando um templo magnífico nas montanhas do Oeste. Mais recentemente, sonhara que Brigham Young lhe dera um par de chaves do Templo de Salt Lake.

“Vá e abra o templo”, disse Brigham, “e deixe o povo nele entrar — todos os que desejam a salvação”.10

Depois de relatar essas visões aos santos, Wilford se ajoelhou em um banquinho almofadado para ler a oração dedicatória. Com uma voz forte e clara, ele implorou a Deus que aplicasse o sangue expiatório do Salvador e perdoasse os santos de seus pecados. “Conceda que as bênçãos que buscamos nos sejam concedidas, sim, cem vezes mais”, orou ele, “se procurarmos com pureza de coração e plenitude de propósito fazer Tua vontade e glorificar Teu nome”.

Por mais de 30 minutos, Wilford deu graças e louvou a Deus. Apresentou o edifício ao Senhor, pedindo-Lhe que cuidasse dele e o protegesse. Orou pelos quóruns do sacerdócio, pela Sociedade de Socorro, pelos missionários, pelos jovens e pelas crianças da Igreja. Orou pelos governantes das nações e pelos pobres, aflitos e oprimidos. E pediu que todas as pessoas tivessem o coração abrandado e fossem livres para aceitar o evangelho restaurado.

Antes de encerrar, pediu ao Senhor que fortalecesse a fé dos santos. “Fortaleça-nos com as lembranças da gloriosa salvação do passado, com a lembrança dos convênios sagrados que fizeste conosco”, orou ele, “para que, quando o mal nos ofuscar, quando a angústia nos envolver, quando passarmos pelo vale da humilhação, não vacilemos nem duvidemos, mas com a força do Teu santo nome venhamos a cumprir todos os Teus justos propósitos”.11

Após a oração, Lorenzo Snow, presidente do Quórum dos Doze, liderou a congregação em um brado de Hosana. O coro e a congregação, então, cantaram “Tal como um facho”.12

A dedicação tocou profundamente Susa. O pai dela conduzira a abertura de terra do templo alguns anos antes de ela nascer, de modo que, por toda a vida, ela viu mulheres e homens fiéis consagrarem dinheiro, recursos e trabalho para a construção do templo. Recentemente, sua própria mãe doara anonimamente 500 dólares para o fundo do templo.

Todos tinham certeza de que receberiam bênçãos, acreditava Susa, por oferecerem suas dádivas sobre o altar do sacrifício e do amor cristão.13

Joseph F. Smith falou mais tarde na reunião, com lágrimas escorrendo pelo rosto. “Todos os habitantes da Terra são o povo de Deus”, disse ele, “e é nosso dever levar as palavras de vida e salvação a eles e redimir os que morreram sem o conhecimento da verdade. Esta casa foi erigida em nome de Deus para esse propósito”.14

Um brilho radiante parecia emanar de Joseph, e Susa achou que um raio de sol tivesse atravessado a janela para lhe iluminar o rosto. “Que efeito singular da luz do sol”, sussurrou ela ao homem a seu lado. “Veja só!”

“Não há luz do sol lá fora”, sussurrou o homem, “nada além de nuvens e escuridão”.

Susa olhou pelas janelas e viu céus tempestuosos. Deu-se conta, então, de que a luz que brilhava no semblante de Joseph era o Espírito Santo, que descia sobre ele.15


No mesmo dia, Rua e Tematagi, um jovem casal do atol Anaa, participavam de uma conferência com outros santos das ilhas Tuamotu. Com o presidente da missão James Brown presidindo, a conferência começou às 7 horas da manhã, ao mesmo tempo em que se iniciava a primeira sessão dedicatória em Salt Lake City.16

Por vários dias antes da conferência, os missionários e outros membros da Igreja se reuniram em Putuahara, o mesmo lugar do atol Anaa onde Addison Pratt estivera com mais de 800 santos havia quase 50 anos. Recentemente, ventos fortes haviam açoitado o mar, mas as condições climáticas tempestuosas estavam mais brandas e um cálido sol brilhava sobre a vila.17

Rua e Tematagi se filiaram à Igreja poucos meses depois de James Brown chegar às ilhas. Ao chegar a Anaa, James encontrou o atol amargamente dividido no tocante à religião, mas ele e seu filho Elando batizaram alguns santos novos. Ao aceitarem o batismo, Rua e Tematagi estavam se unindo à religião da irmã caçula de Rua, Terai, e de seu marido, Tefanau, que haviam se filiado à Igreja nove anos antes. O pai de Rua, Teraupua, também era membro da Igreja e fora recentemente ordenado ao Sacerdócio de Melquisedeque.18

Após o início da conferência, James Brown falou sobre a dedicação do templo e sua importância. Joseph Damron, um dos élderes que reabrira a missão do Taiti, falou sobre a construção de templos nos últimos dias. Embora o Templo de Salt Lake estivesse a milhares de quilômetros de distância, os santos de Tuamotu podiam comemorar o dia histórico e aprender mais sobre o papel dos templos na redenção dos vivos e dos mortos.

Quando a reunião terminou, os santos seguiram por um caminho até o mar para ver Elando batizar cinco novos conversos nas águas cálidas do Pacífico. Entre os santos batizados estava Mahue, a filha de 9 anos de Rua e Tematagi. Após o batismo, ela foi confirmada por seu tio Tefanau. Rua foi então ordenado élder no Sacerdócio de Melquisedeque por Terogomaihite, um líder local da Igreja. Dois outros santos das ilhas foram ordenados élderes e designados como presidentes de ramo.19

A conferência terminou dois dias depois, e os santos concordaram em se encontrar novamente dali a três meses. Joseph Damron e outras pessoas das ilhas vizinhas se despediram dos amigos do atol Anaa. Antes de Joseph partir, Rua lhe deu de presente uma pequena pérola.20


A neve cobria o terreno da Praça do Templo em 9 de abril, quando cerca de 50 santos havaianos do assentamento Iosepa se reuniram na porta do templo para apresentar sua recomendação.21

Mais de dois anos se passaram desde que a Primeira Presidência visitara Iosepa para comemorar a fundação do assentamento. Os santos continuavam a trabalhar arduamente para cultivar suas terras. Embora tivessem comprado mais de 300 hectares de terras adicionais, e cultivado com sucesso uma grande variedade de plantações, o dinheiro ainda era escasso. Mesmo assim, quando a Primeira Presidência pediu doações para terminar a construção do templo, os santos de Iosepa doaram 1.400 dólares.22

Quando souberam que uma data tinha sido agendada para que eles participassem da dedicação do templo, os membros de Iosepa se encheram de uma nova energia. Trabalharam incansavelmente para cultivar suas plantações de primavera antes da viagem de dois dias até Salt Lake City. Todos os arados, as niveladoras, as grades de aragem e as semeadoras foram colocados em uso até que os santos estivessem prontos para partir.23

Embora uma recomendação para a dedicação não exigisse mais do que o fato de ser membro da Igreja e o desejo de participar, os santos de Iosepa queriam ter certeza de que estavam espiritualmente preparados para entrar no templo. Quase 30 deles quiseram ser batizados novamente, e uma reunião batismal especial foi realizada no reservatório da cidade.24

Depois de apresentarem sua recomendação nas portas do templo, os santos de Iosepa entraram no edifício e caminharam por suas muitas salas. Os santos de Laie tinham enviado uma mesinha de madeira havaiana para o templo, e dois totens decorados com penas de pássaros havaianos estavam em exibição em um canto da sala celestial. As mulheres das Sociedades de Socorro havaianas tinham confeccionado os totens, chamados kāhili, que simbolizavam a realeza e a proteção espiritual.25

Logo, os santos de Iosepa e mais de 2 mil outros santos se sentaram no salão de assembleia. Juntos, cantaram, ouviram a oração dedicatória e deram o brado de Hosana. Depois de outro hino, Wilford Woodruff agradeceu as pessoas por suas contribuições ao templo e testificou de Jesus Cristo.26

Wilford, então, chamou George Q. Cannon para falar. “Nossa missão é bem maior do que a daqueles que nos precederam”, disse George. “Os santos estão lançando o alicerce de uma obra, cuja extensão não podem compreender.”

Antes de concluir, dirigiu-se aos santos de Iosepa no próprio idioma deles.

“Há milhões de espíritos que morreram e não podem voltar à presença de Deus porque não têm a chave”, disse ele. Fez alusão aos havaianos do outro lado do véu que aceitariam o evangelho e testificou que a Igreja precisava que os santos havaianos fizessem o trabalho do templo por seus parentes falecidos.27

Posteriormente, em uma reunião de ramo em Iosepa, um homem chamado J. Mahoe falou sobre a experiência pessoal que teve na dedicação e a importante lição que ele aprendera ali. “Regozijo-me por ter podido estar no templo e testemunhar o que ali aconteceu”, disse ele. “Precisamos cuidar de nossa genealogia.”28


Às 10 horas da manhã de 19 de abril, a Primeira Presidência realizou uma reunião especial no templo para todas as autoridades gerais e presidências de estaca. Assim que os homens se reuniram, a presidência os convidou a compartilhar seus sentimentos sobre a dedicação do templo e a obra de Deus na vida dos santos.29

Durante toda a manhã, um após outro, os homens prestaram vigoroso testemunho. Quando terminaram, Wilford se levantou e acrescentou seu testemunho ao deles. “Senti mais o Espírito Santo aqui nesta dedicação do que jamais senti até agora, exceto em uma determinada ocasião”, disse ele. Em seguida, falou sobre a ocasião em que Joseph Smith deu seu último encargo aos apóstolos em Nauvoo.

“Ele se levantou e fez um discurso de três horas para nós”, testificou Wilford. “A sala pareceu se encher de fogo ardente, e o rosto de Joseph brilhava como âmbar.”30

Wilford também relatou ter visto Brigham Young e Heber Kimball em uma visão, após a morte deles. Ambos estavam indo para uma conferência em uma carruagem e convidaram Wilford para se unir a eles. Wilford fez isso e pediu que Brigham falasse.

“Terminei minha pregação na Terra”, disse Brigham, “mas vim para gravar em sua mente o que Joseph me disse em Winter Quarters, que foi o seguinte: Busque sempre ter o Espírito de Deus, que vai guiá-lo no caminho certo”.31

Agora, a mensagem de Wilford às autoridades gerais era a mesma. “Queremos que o Espírito Santo nos lidere e nos guie”, disse ele. “Ensinem as pessoas a receber o Espírito Santo e o Espírito do Senhor, e mantenham-No com vocês e prosperarão.”32


Quando jovem, a presidente geral da Sociedade de Socorro, Zina Young, tinha ouvido anjos cantarem no Templo de Kirtland. Décadas depois, ela servira fielmente na casa de investiduras, em Salt Lake City, e nos Templos de St. George, Logan e Manti. Agora, ela supervisionava todas as oficiantes de ordenanças do Templo de Salt Lake.33

Na noite seguinte à primeira sessão dedicatória, Zina prestou testemunho do templo em uma conferência lotada da Sociedade de Socorro. “Nunca houve um dia como esse em Israel até agora”, disse ela às mulheres. “A obra do Senhor continuará a progredir mais rapidamente a partir de hoje.”34

Sua secretária Emmeline Wells prestou um testemunho semelhante nas páginas do Woman’s Exponent. “Nenhum acontecimento dos tempos modernos é tão importante”, escreveu ela, “como a inauguração desse edifício sagrado para a realização de ordenanças relacionadas a vivos e mortos, ao passado e ao presente, às investiduras e aos convênios que unem as famílias e os parentes em laços inseparáveis”.35

Naquela primavera, depois de os santos terem realizado a última sessão dedicatória do templo, Zina e Emmeline fizeram os preparativos finais para viajar para o Leste a fim de assistir a uma conferência de mulheres na exposição mundial de Chicago, uma feira monumental que mostraria as maravilhas da ciência e a cultura de muitas nações. Tal como na primeira conferência do Conselho Nacional das Mulheres, realizada dois anos antes, a exposição proporcionaria uma oportunidade para que as líderes da Associação de Melhoramentos Mútuos da Sociedade de Socorro e das Jovens Damas representassem a Igreja e se reunissem com mulheres influentes de todo o mundo.36

As duas amigas partiram para Chicago em 10 de maio. Em questão de dias, o trem em que viajavam percorreu uma distância que teria levado semanas quase 50 anos antes, quando os santos foram pela primeira vez ao Vale do Lago Salgado. Ao cruzar o rio Mississippi, Emmeline ficou emocionada ao se lembrar do passado. Embora os santos tivessem suportado muitas provações ao longo dos últimos 50 anos, eles tinham vivenciado muitos triunfos também.37

Zina também se viu pensando no passado. “O manto do tempo está rapidamente envolvendo muitas de nós”, disse ela mais tarde a Emmeline. “Quando formos para o descanso, depois de nossos sacrifícios indescritíveis, que seja como o mais belo pôr do sol de Utah, que muitos no futuro tenham motivo para louvar a Deus pelas nobres mulheres desta geração.”38


Na época em que Zina Young e Emmeline Wells viajaram para a exposição mundial de Chicago, Anna Widtsoe recebeu uma carta de seu filho John, que estudava na Universidade de Harvard. Por aproximadamente um mês, John aguardara ansiosamente as cartas de sua mãe e de seu irmão mais novo, Osborne, sobre a dedicação do templo. Mas, até o momento, nada havia chegado.

“Estou cansado de ler notícias sobre a dedicação no jornal”, escreveu John. “Quero ouvir isso de modo mais pessoal, porque há mais vida em uma carta do que em um mundo inteiro de jornais.”39

A família evidentemente já tinha escrito a John sobre a dedicação, mas o serviço de correio, por mais rápido que tivesse se tornado ao longo dos anos, ainda não era rápido o suficiente para ele.

Anna e Osborne participaram de uma sessão dedicatória juntos. Mais tarde, Osborne participou de uma sessão especial para as crianças e os jovens da Escola Dominical. Ao caminhar pelo templo, ele viu uma pintura de três mulheres pioneiras, uma das quais era norueguesa.40 A pintura era um tributo à fé e ao sacrifício de muitas mulheres imigrantes, incluindo Anna, que deixaram sua terra natal para se reunirem em Sião.

Quase dez anos haviam se passado desde que a família Widtsoe viajara para Utah. Agora, em Salt Lake City, eles tinham um local pequeno e confortável para morar a apenas alguns quarteirões da loja onde Osborne trabalhava. Anna tinha um negócio de costura e participava das reuniões da Sociedade de Socorro da ala. Também se reunia regularmente com outros santos escandinavos no antigo salão social.41 Ela encontrara um lar entre os santos e apreciava sua fé no evangelho restaurado. Antes de aceitá-lo, ela tinha sido como uma pessoa cega de nascença. Agora ela podia ver.42

Mas Anna estava preocupada com John. Ele escrevera recentemente sobre a dificuldade que estava tendo para acreditar em alguns aspectos do evangelho. Em Harvard, ele aprendera muitas coisas grandiosas com seus professores. Mas as palestras deles também o levaram a questionar sua fé. As dúvidas dilaceravam sua alma. Em alguns dias, ele negava a existência de Deus. Em outros, ele a afirmava.43

Anna orava diariamente por seu filho, profundamente angustiada com as dúvidas dele. Mas ela sabia que ele precisava adquirir seu próprio testemunho do evangelho. “Se você ainda não obteve um testemunho por si mesmo, então agora é o momento de adquiri-lo”, escreveu ela a John. “Se buscar sinceramente e viver puramente, vai recebê-lo. Mas é preciso trabalhar para conquistar tudo o que temos.”44

Para Anna, o templo confirmou sua fé nas promessas de Deus a Seus filhos. Mesmo antes de partir de Nauvoo, os santos tinham depositado esperança na profecia de Isaías de que todas as nações se reuniriam na casa do Senhor, no cume dos montes. No final de abril de 1893, mais de 80 mil homens, mulheres e crianças — muitos deles imigrantes da Europa e das ilhas do mar — haviam entrado no templo para participar de uma sessão dedicatória. Um espírito de amor e união se manifestara em cada reunião, e os santos sentiam como se a palavra do Senhor tivesse sido cumprida.45

Agora, com um novo século se aproximando, os santos podiam ansiar por dias ainda mais brilhantes e destemidos. Os quatro templos de Utah, que representavam tanto sacrifício e fé, eram apenas o começo. “Que grande trabalho há diante de nós se formos fiéis”, já havia declarado Brigham Young. “Seremos capazes de construir templos, sim, milhares deles, em todos os países do mundo.”46

Quando Anna entrou no Templo de Salt Lake, sentiu a santidade daquele lugar. “Tentei ficar na sala celestial o máximo de tempo possível”, disse ela a John em uma carta. “Vi e senti como se uma luz estivesse brilhando sobre mim e soube que nenhum lugar na Terra teria mais valor para mim.”

“Tudo é extremamente glorioso ali”, testificou ela, “e uma paz abençoada preenche o local como nenhuma palavra pode descrever, a não ser aqueles que lá estiveram e receberam a santidade da santidade”.47

Notas sobre as fontes

Este livro é uma narrativa não fictícia com base em centenas de fontes históricas. Extremo cuidado foi tomado para garantir sua exatidão. A história da Igreja entre 1846 e 1893 é extremamente bem documentada, com fontes que variam de cartas e diários pessoais até matérias em jornais, registros institucionais e atas de reuniões. Os leitores não devem presumir, no entanto, que a narrativa aqui apresentada seja perfeita ou completa. Os registros do passado, e nossa capacidade de interpretá-los no presente, são limitados.

Todas as fontes de conhecimento histórico contêm lacunas, ambiguidades e opiniões preconcebidas. Com frequência transmitem apenas o ponto de vista do autor. Consequentemente, pessoas que testemunham os mesmos acontecimentos os vivenciam, lembram-se deles e os relatam de diferentes maneiras, e suas perspectivas diversas possibilitam várias maneiras de interpretar a história. O desafio do historiador é coletar os pontos de vista conhecidos e reuni-los de modo a gerar um entendimento preciso do passado por meio de cuidadosa análise e interpretação.

Santos é um relato verdadeiro da história de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, com base no que conhecemos e entendemos no presente a partir de registros históricos existentes. Não é a única maneira possível de contar a história sagrada da Igreja, mas os estudiosos que pesquisaram, redigiram e revisaram este livro conhecem muito bem as fontes históricas, usaram-nas de modo cuidadoso e as documentaram nas notas finais e na lista de fontes citadas. Os leitores são incentivados a avaliar as fontes por si mesmos. Muitas dessas fontes foram digitalizadas e o link para acesso a elas se encontra nas notas finais. É provável que a descoberta de mais fontes ou novas leituras das já existentes com o tempo suscitem outros significados, interpretações e possíveis pontos de vista.

A narrativa contida em Santos se baseia em fontes primárias e secundárias. As fontes primárias contêm informações sobre acontecimentos testemunhados em primeira mão pelos autores. Algumas fontes primárias, como cartas, diários e anotações de discursos, foram escritas na época dos acontecimentos nelas descritos. Essas fontes contemporâneas expressam o que as pessoas pensaram, sentiram e fizeram naquele momento, revelando como o passado foi interpretado na época em que aconteceu. Outras fontes primárias, como as autobiografias, foram escritas após o fato. Essas fontes reminiscentes revelam o que o passado veio a significar para o autor ao longo do tempo, com frequência tornando-as melhores do que as fontes contemporâneas no reconhecimento da importância dos acontecimentos passados. Como elas dependem de lembranças, porém, as fontes reminiscentes podem incluir imprecisões e ser influenciadas pelo entendimento e pelas crenças posteriores do autor.

As fontes históricas secundárias contêm informações provenientes de pessoas que não testemunharam em primeira mão os acontecimentos nelas descritos. Essas fontes incluem histórias de família e obras acadêmicas posteriores. Este livro tem uma grande dívida para com muitas dessas fontes, que se provaram muito valiosas devido ao contexto mais amplo e ao trabalho interpretativo que proporcionaram.

Todas as fontes de Santos foram avaliadas no tocante à credibilidade, e cada frase foi repetidamente verificada para garantir coerência com as fontes. As linhas de diálogo e outras citações provêm diretamente de fontes históricas. A ortografia, a utilização de maiúsculas e a pontuação nas citações diretas foram discretamente modernizadas para clareza. Em alguns casos, foram feitas modificações mais significativas nas citações, como a mudança da conjugação dos verbos do pretérito para o presente ou a padronização da gramática, de modo a torná-las mais fáceis de ler. Nesses casos, as notas finais descrevem as mudanças feitas. A escolha das fontes a serem usadas e do modo de usá-las foi feita por uma equipe de historiadores, escritores e revisores que basearam suas decisões na integridade histórica e na qualidade literária das fontes.

Algumas fontes antagonistas foram usadas para redigir este livro e estão citadas nas notas. Tais fontes foram usadas essencialmente para caracterizar a oposição à Igreja durante o século 19. Embora grandemente hostis à Igreja, esses documentos contêm detalhes que não foram registrados em nenhum outro lugar. Alguns desses detalhes foram utilizados quando outros registros confirmaram de modo geral sua exatidão. Os fatos contidos nesses registros antagonistas foram usados sem que se adotasse sua interpretação hostil.

Como narrativa escrita para um público geral, este livro apresenta a história da Igreja em formato coerente e acessível. Embora utilize técnicas populares de narração de histórias, restringe-se a informações encontradas nas fontes históricas. Quando o texto inclui até detalhes mínimos, como expressões faciais ou condições climáticas, é porque esses detalhes se encontram no registro histórico ou podem ser razoavelmente deduzidos a partir dele.

Para manter a facilidade de leitura, o livro raramente aborda problemas do registro histórico no texto propriamente dito. Por outro lado, tais debates com base nas fontes se encontram nos artigos sobre tópicos específicos, disponíveis em santos.ChurchofJesusChrist.org. Os leitores são incentivados a consultar esses artigos ao estudarem a história da Igreja.

Reconhecimentos

Centenas de pessoas contribuíram para esta nova história da Igreja, e somos gratos a cada uma delas. Temos uma grande dívida para com as gerações de historiadores empregados pela Igreja que meticulosamente coletaram e preservaram os registros nos quais este livro se baseia. Agradecemos especialmente a James Goldberg, David Golding, Elizabeth Mott, Jennifer Reeder e Ryan Saltzgiver por criarem os materiais suplementares online. Audrey Spainhower Dunshee conduziu a digitação das fontes, que foi levada a cabo pelo pessoal da Divisão de Conservação e da equipe de Melhoria de Processos, do Departamento de História da Igreja.

Todos os funcionários, missionários e voluntários do Departamento de História da Igreja contribuíram direta ou indiretamente com este livro. Em especial, agradecemos às seguintes pessoas pela avaliação do material de rascunho: Matthew Godfrey, LaJean Purcell Carruth, Chad Foulger, David Grua, Kate Holbrook, Jennifer Reeder e Brent Rogers, da Divisão de Publicações; Jenny Lund, Jacob Olmstead, Chad Orton, Benjamin Pykles, Emily Utt e Aaron West, da Divisão de Locais Históricos; Clint Christensen, Scott Christensen e Matthew Geilman, da Divisão Global de Suporte e Aquisições; e Christine Cox, Emily Marie Crumpton, Keith Erekson, Brandon Metcalf e Tyson Thorpe, da Divisão de Bibliotecas. Também agradecemos a James Goldberg e Angela Hallstrom por ajudarem a definir a estrutura literária da obra, e a Catherine Reese Newton, Alex Hugie, Lorin Groesbeck e Petra Javadi-Evans pelas contribuições editoriais. Os membros da junta editorial da Editora do Historiador da Igreja ofereceram apoio constante.

Os capítulos foram revisados por diversos leitores experientes, entre eles Allen Andersen, Jill Andersen, Ian Barber, Laurel Barlow, Richard Bennett, M. Joseph Brough, Claudia Bushman, Richard Lyman Bushman, Néstor Curbelo, Kathryn Daynes, Jill Mulvay Derr, Devin G. Durrant, Sharon Eubank, Christian Euvrard, J. Spencer Fluhman, Jennefer Free, Fiona Givens, Terryl Givens, Melissa Wei-Tsing Inouye, Khumbulani Mdletshe, Dmitry Mikulin, Marjorie Newton, Andrew Olsen, Bonnie L. Oscarson, Darren Parry, W. Paul Reeve, Carlos F. Rivas, Cristina Sanches, Jorge L. Saldivar, Russell Stevenson, Laurel Thatcher Ulrich, Marissa A. Widdison e Jared Yang. Também agradecemos a Dean Hughes, Jay A. Parry e Larry E. Morris por terem ajudado na pesquisa e na redação dos primeiros rascunhos deste volume. Sarah Clement Reed, Michael Knudson, Emily Brignone, Savannah Woolsey Larson, Heather Olsen, Kristlynn Roth e Annie Smith ofereceram uma contribuição inestimável ao traduzirem as cartas de Anna e John Widtsoe.

Greg Newbold criou as belas obras de arte. John Heath, Debra Abercrombie e Miryelle Resek contribuíram para o trabalho de difusão. Deborah Gates, Kiersten Olson, Jo Lyn Curtis, Cindy Pond e Debi Robins proveram assistência administrativa. Nick Olvera realizou o gerenciamento do projeto.

Membros de diversos departamentos da Igreja ofereceram sua contribuição, entre eles a equipe multidepartamentos composta por Irene Caso, Drew Conrad, Irinna Danielson, David Dickson, Norm Gardner, Paul Murphy, Alan Paulsen e Jen Ward. Eliza Nevin, do Departamento de Publicações, supervisionou o processo final de publicação, e Patric Gerber, Katrina Cannon, Heather Claridge, Hillary Olsen Errante, Stacie Heaps, Christopher Kugler, Lindsey Maughan, Benson Y. Parkinson, Heather Randall, Greg Scoggin e Kat Tilby foram assistentes de produção. Outros colaboradores foram Nic A. Benner, Alan Blake, Christopher Blake Clark, Matt Evans, Brooke Frandsen, Jeff Hatch, Jim McKenna, Jared Moon, Casey Olson, Benjamin Peterson, Paul VanDerHoeven, Gary Walton e Scott Welty. Os tradutores cuidadosamente prepararam o texto na íntegra em 13 idiomas.

Agradecemos à colaboração de Steven C. Harper, que serviu como editor geral de Santos; do élder J. Devn Cornish, de Reid L. Neilson e Richard E. Turley Jr., ex-executivos do Departamento de História da Igreja, que ajudaram a conduzir o projeto por muitos anos. Em especial, agradecemos ao élder Steven E. Snow, setenta autoridade geral emérita, que serviu por sete anos como historiador e registrador da Igreja, assim como diretor executivo do Departamento de História da Igreja. Sem sua ajuda, este livro não teria sido publicado.

Índice

mapa do oeste dos EUA

Com as turbas ameaçando tirá-los de sua casa, milhares de santos dos últimos dias fugiram de Nauvoo, seu local de reunião pelos últimos sete anos. Seguindo Brigham Young e o Quórum dos Doze Apóstolos, eles viajaram para o Oeste cruzando a planície e a pradaria, confiando em Deus a fim de preparar um lar para eles além dos picos extremamente altos das Montanhas Rochosas.

Encontrar um novo lar é somente o início da história deles. Em sua busca para servir a Deus e edificar Sião, os santos exilados se esforçam para superar os novos obstáculos e as grandes perseguições. Mulheres e homens fiéis trabalham juntos para criar comunidades em que os fiéis possam se reunir perto de templos estabelecidos para a glória de Deus e a redenção dos vivos e dos mortos. Ao mesmo tempo, centenas de missionários viajam para terras distantes a fim de convidar outras pessoas a se achegarem a Cristo e ajudarem a estabelecer Sião.

Nenhuma Mão Ímpia é o segundo livro de Santos, uma nova narrativa em quatro volumes da história de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. De ritmo rápido, meticulosamente pesquisado e escrito sob a direção da Primeira Presidência, Santos narra histórias verdadeiras de santos dos últimos dias do mundo inteiro e atende à conclamação do Senhor de escrever a história “para o bem da igreja e para as gerações vindouras” (Doutrina e Convênios 69:8).

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Sumário

santos.ChurchofJesusChrist.org

Arte da capa: Greg Newbold

Design da capa e layout da parte interna: Patric Gerber

Dados da publicação na catalogação da Biblioteca do Congresso

Nomes: A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, entidade emitente.

Título: Santos: A História da Igreja de Jesus Cristo nos Últimos Dias. Volume 2, Nenhuma Mão Ímpia, 1846–1893.

Outros títulos: A História da Igreja de Jesus Cristo nos Últimos Dias

Descrição: Salt Lake City, Utah: A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, 2020. | Inclui referências bibliográficas e índice. | Sinopse: “O segundo de uma série de quatro volumes que relatam a história de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias” — Fornecida pela editora.

Identificadores: LCCN 2019043996 | ISBN 9781629726489 (brochura)

Assuntos: LCSH: A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias—História—Século 19. | Igreja Mórmon—História—Século 19.

Classificação: LCC BX8611.S235 2020 | DDC 289.309/034—dc23

Registro LC disponível em https://lccn.loc.gov/2019043996

Impresso no Brasil.

10 9 8 7 6 5 4 3 2 1

Santos

1846–1893

Nenhuma Mão Ímpia

Santos

A História da Igreja de Jesus Cristo nos Últimos Dias

Publicado anteriormente

Volume 1, O Estandarte da Verdade, 1815–1846

Notas

Algumas fontes estão indicadas com uma citação abreviada. A seção “Fontes citadas” fornece informações completas sobre a citação de todas as fontes. Muitas fontes estão disponíveis digitalmente, e o link para elas se encontra na versão eletrônica do livro, disponível em santos.ChurchofJesusChrist.org e na Biblioteca do Evangelho. A sigla CHL se refere à Biblioteca de História da Igreja, A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Salt Lake City.

O texto em negrito nas notas indica os tópicos com artigos e outras informações online, disponíveis em santos.ChurchofJesusChrist.org e na Biblioteca do Evangelho, na seção “Tópicos da história da Igreja”.